O SEXO DO ANJO
por Jean-François Rauger


A cena de abertura deste Anjo Negro, que se anuncia como talvez o filme mais audacioso do ano, é ao mesmo tempo falsa e obscura. Uma mulher (Sylvie Vartan) mata um homem descarregando nele o cartucho de sua pistola e, em seguida, desmorona. Uma outra (Lisa Hérédia), testemunha muda do assassinato, levanta-a e a transporta a uma cama que se encontra em profundidade de campo, onde a espanca e arranca suas roupas, rasgando-as. Os gestos desajeitados, que imaginamos meticulosamente compostos para não quebrar a arquitetura do quadro, a composição das cores (o vestido branco de Vartan bloqueando o plano no momento em que ela desmorona), a luz, tudo aqui grita o artifício. Mas este artifício faz irresistivelmente pensar na teatralidade pela qual passou o cinema de Fassbinder quando este tentou refilmar os grandes melodramas hollywoodianos. Sente-se, de fato, desde os primeiros minutos que seguem esta confusa introdução na matéria, que essa falsidade é a condição inevitável para se chegar à verdade. Porque às vezes é necessário, no cinema (mas não somente nele), passar por um defeito para se expressar algo que não seria expresso de outra forma. Se há, dessa forma, uma desenvoltura ou uma feiúra expressivas, Brisseau inventa, aqui, o clichê expressivo. Os defeitos que poderíamos censurar em seus filmes se transformam assim em qualidades. Porque um clichê é menos uma falsa imagem do que uma imagem congelada, fixada aqui pela história dos grandes melodramas criminais do cinema (Hitchcock, por exemplo). O clichê é aquilo pelo que hoje se deve passar para se fazer um filme de gênero, a referência de onde se deve partir para se chegar a algum tipo de verdade. Anjo Negro faz-se, de fato, verdadeiramente uma regra, que acumula posturas já vistas, uma música à beira do pleonasmo ou da ênfase, uma luz de cartão postal. Há os cineastas que filmam integrando a consciência de que tudo já foi filmado antes deles e há aqueles que filmam como se fossem os primeiros. O cinema de Brisseau tem a inocência de um cinema que se desenrola sobre a perda de inocência das imagens.

O início de Anjo Negro é, portanto, ao mesmo tempo artificial e enigmático. O sentimento de obscuridade sentido pelo espectador não vai desaparecer ao final do filme, pois é verdadeiro que se trata menos aqui da resolução de um enigma policial que do conhecimento de um objeto cujo estatuto é o de justamente jamais poder ser conhecido. É assim que o último Brisseau dá in fine a sensação de desenhar uma espiral que, assim como a de Fraser (uma ilusão de óptica, onde círculos concêntricos em abismo diante de um fundo especial parecem formar espirais), nunca vai atingir o seu centro. A figura da espiral se refere, é claro, a uma referência maior do filme, Um Corpo Que Cai, e sua história de exumação e de repetição de um passado morto. Trata-se efetivamente, como no filme de Hitchcock, daquilo que Jean Douchet chamou de suspense esotérico. Cada anel da espiral desvela um pedaço de passado sob a forma de uma caça ao tesouro.

Responsável pela defesa da assassina, que alega ter agido em legítima defesa para evitar ser estuprada, um advogado (Tcheky Karyo) vai, pouco a pouco, fazendo emergir uma verdade que não a das aparências sociais desta esposa de um magistrado íntegro (Michel Piccoli). O filme foi provavelmente alimentado por fatos e personagens reais, mas insiste na pintura de um mundo sem lei, sem moral, onde o dinheiro permanece a principal determinação. Não se trata mais aqui dos subúrbios parisienses, mas das mansões de Bordeaux, onde a burguesia não respeita a legalidade que estabeleceu para si própria. Freqüentemente há em Brisseau um plano que parece cristalizar o reinado absoluto do mal na Terra. Em Céline era esta cena, ainda no início do filme, onde víamos uma adolescente chorando, sentada no meio-fio sob uma chuva torrencial, e, sobretudo, sob o olhar de estudantes zombeteiros; aqui poderia ser a felicidade dos policiais diante do cadáver de Aslanian (o homem baleado no início do filme). A satisfação ostensiva, diante deste assassinato, de homens encarregados de aplicar a lei, descreve um mundo sem moral onde o Estado de Direito é suplantado por uma relação de forças. A esse mundo poderia se opor a revolta do bandido Aslanian, espécie de Jacques Mesrine exaltado. Mas este não representa a desordem face à ordem: são apenas duas formas do caos, as quais Brisseau lucidamente mostra que se nutrem mutuamente. A revolta de Aslanian aparece assim irrisória e gesticulatória em face da desordem reinante.

Quando a câmera gira, através de ligeiros travellings circulares, ao redor de Sylvie Vartan, enquadrando seu pescoço, ela designa um personagem obtuso e indiferente. Há, de fato, um ponto cego no qual irá colidir o desejo de Paul Delorme, o advogado. À medida em que avança na sua investigação, ele se perderá na fascinação do que pensa descobrir: a hipótese de uma vida guiada pela compulsão pura, um desejo nu, um deleite sem entraves, para retomar uma antiga palavra de ordem. O passado da personagem de Sylvie Vartan abre o caminho para uma incrível fascinação. Durante o interrogatório do agente artístico interpretado por Claude Giraud na sede da Artmédia, Brisseau tem a audácia de mostrar, literalmente, a abertura de um espaço-tempo outro, fantasmagórico. Uma porta se abre e a câmera se desloca por um quarto onde várias garotas nuas se acariciam, um tableau vivant de bordel, um clichê, justamente, como todos os fantasmas. A investigação leva o investigador a desvendar sua própria neurose pelo seu prazer masoquista de não saber nada sobre Stéphane Feuvrier, a mulher. “Você fingia gozar?” ele pergunta a ela, em busca da verdade, mas sobretudo hipnotizado pela liberdade que seu passado sugere. Porque, na realidade, o que é a busca de Paul Delorme, senão a expressão de um desejo impossível? Ora, o desejo insaciável é o grande assunto do cinema de Brisseau. Em Céline era a morte como experiência, em Anjo Negro é a vontade de conhecer o orgasmo feminino. Este é o ponto inatingível do filme, o centro, justamente, da falsa espiral. É uma questão sem resposta que modelou extensamente, de Godard (Uma Mulher Casada, Prenome Carmen) a Antonioni (Identificação de uma Mulher), passando pelos maneiristas americanos (Peckinpah, De Palma), todo o cinema moderno. O conhecimento do gozo feminino é efetivamente o objeto impossível que selou, para sempre, o funcionamento do cinema clássico. Este terminou com a tomada de consciência de uma impossibilidade para o homem de conhecer os mecanismos do prazer das mulheres, questão doravante deixada aberta e indecifrada. Anjo Negro poderia ser até mesmo considerado como a teoria desta questão, à medida em que o filme se estende em direção a esta interrogação, à medida em que a fascinação que Sylvie Vartan exerce sobre todos os protagonistas masculinos do filme só pode se tornar em um emblema - congelado, tornado em estátua pelo quadro - desta vontade de saber, de se aproximar de um objeto que, talvez, não existe (“Stéphane Feuvrier talvez seja frígida por causa do seu passado, no qual ela foi forçada (...) a se prostituir”, declarou Brisseau na entrevista do press release).

É a frieza de uma imagem em vídeo que colocará fim ao mistério. A confissão final, de fato, que é difícil de discutir em detalhes, é transmitida através de um vídeo cassete, em uma televisão. O diálogo amoroso gravado é indecifrável. Será autêntico ou falso? A lembrança muito forte que evoca de uma troca de diálogos semelhante em Johnny Guitar (Minta para mim, diga-me que você amou apenas eu) torna duvidosa sua sinceridade.

Anjo Negro é indiscutivelmente um filme arriscado. Seu pressuposto de se arremessar, de cabeça para baixo, nos clichês, sua base que consiste em experimentar situações que podem, além do mais, tocar o ridículo, a incompletude de certos momentos (a seqüência final é, deve- se dizer, pouco convincente) o expõem sem duvida à incompreensão irônica. Isso tudo, no entanto, é a expressão indiscutível de uma alta idéia do cinema.

(Cahiers du Cinéma nº 485, novembro 1994, pp. 18-21. Traduzido por Marlon Krüger)

 

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