NOTAS SOBRE UMA REVOLUÇÃO por Bruno Andrade
O céu pesado e sombrio derramava sobre a terra chuva tão miúda que a vista mal conseguia distinguir as gotas; dois salgueiros desnudos e estropiados e um bote, deixado de quilha para cima entre eles, como que agravavam o aspecto tristonho da paisagem.
O bote com seu fundo quebrado, as árvores despidas, velhas e dignas de lástima... tudo em torno, deserto e morto, e o céu a chorar, a chorar... Pareceu-me que tudo morria em volta de mim, que logo eu seria o único ser vivo, mas condenado a morrer devagar, de fome e frio...
Entretanto, eu estava no vigor dos meus dezessete anos, época boa de se viver.
Máximo Gorki, Certo Dia de Outono
Os espetáculos que me levavam para ver no Ópera, teatro por excelência das pessoas adultas, me pareciam naturalmente o reflexo da vida destas - ou, pelo menos, das que dentre elas eram as mais belas e as mais privilegiadas -, modo de existência prestigioso ao qual, com certo temor, mas das profundezas mais remotas do meu ser, eu aspirava. Assim, a partir dessa época tive um gosto muito pronunciado pelo trágico, pelos amores infelizes, por tudo o que termina de maneira lamentável, na tristeza ou no sangue. Decalcando minha representação da vida sobre o que eu via no Ópera e me preocupando acima de tudo com o amor (a cujo acesso eu achava não haver necessidade de ser adulto), era-me impossível conceber uma verdadeira paixão a não ser como algo que envolve a vida e a morte, e que acaba necessariamente mal, pois se acabasse bem não seria mais o Amor, belo como o erguer de uma cortina de teatro, quando se sabe perfeitamente que ela voltará a cair, lustres apagados e capas recolocadas sobre as poltronas.
Michel Leiris, A Idade Viril
Um hino litúrgico emana da escuridão que toma toda a tela. Uma luz de fim do mundo encontra os olhos de Tim Roth. A noite que consumia toda a imagem passa a se refugiar nas laterais do quadro; a ameaça de que tome todo o espaço novamente, contudo, permanece, e a sombra que insiste em esconder o lado direito de um rosto progressivamente aclarado pela luz não nos mente quanto a isso. Um eclipse: segundos antes de atingir uma brancura ofuscante, um corte interrompe a intensificação dessa luz que age sobre o rosto de Roth. Ainda assim não restam dúvidas: trata-se de um instante de verdadeira revelação, e intuímos que por detrás desses olhos sem expressão esconde-se algo (impressão reforçada, ademais, pelo canto que escutamos desde o início e que não se cala por toda a duração em que essa imagem quase beata se constitui). Os olhos aqui são menos a morada do ser ou uma janela da alma que o único abrigo possível, e sem essa luz jamais teríamos acesso ao refúgio de uma alma que, sem sabermos ainda o porquê, se perdeu.
1. “Estilo visual não é apenas o que está no quadro, é também o arranjo temporal do filme.” Como Michael Cimino e Maurice Pialat, James Gray pertence ao seleto grupo de cineastas que vieram da pintura. O que costuma caracterizar o trabalho desses cineastas é menos um estilo que um temperamento visual: o mobiliário da direção de arte, as tonalidades predominantes, as zonas escuras do décor, bem como a angulação e a disposição dimensional do espaço representam menos a proeza de um esforço de demonstração que uma forma de comunicar o sentimento preciso que orienta uma peça artística (no sentido que atribuímos à palavra “peça” em relação às artes: uma peça musical, uma peça teatral etc.). Necessariamente visual, o cinema de Gray não exclui a palavra como elemento primordialmente expressivo: exímio pintor, ele a entendeu como um notável meio de expressão das inclinações do corpo, dos gestos, dos desejos de reparo e dominação. Poderíamos falar ainda de Ford, Visconti, Guiguet e Oliveira, cineastas incapazes de confundir a potência do verbo com afetação verborrágica, que driblaram prodigiosamente a literalidade enfadonha que faz o pior teatro (e o pior cinema), mas seria igualmente necessário trazer à discussão a introspecção das personagens de Fantin-Latour, as conversas das de Daumier, os silêncios das de Lhermitte, a violência das de Canova, as tintas da tragédia shakespeariana, os céus carregados da literatura russa. Seria necessário falar, novamente, de arte, de como a acuidade da observação despoja o cineasta de tudo que possa vir a ser ineficaz ao seu trabalho, de como ele atinge uma exatidão orgânica na arte da descrição que é freqüentemente aspirada mas poucas vezes atingida por outros artistas; de como ele ultrapassa o falso impasse do maneirismo e do neoclassicismo, de como seus filmes injetam novas hipóteses à fluidez do antigo cinema, como respiram por organismos que lhes são próprios e não por estruturas emprestadas de outros filmes ou de quaisquer álibis que serão reconhecidos e celebrados como tais nos semanários culturais ou em comentários de páginas de relacionamento. Seria necessário falar, portanto, de revolução.
2. O refinamento pictórico de Gray é levado a outras coisas: palavras, atmosferas, gestos, sentimentos, silêncios. Passemos ao “arranjo temporal” de que fala Gray, nada menos que o principal aporte de sua experiência com a pintura, implicada diretamente pela compreensão de que cada parte tem um ritmo e um modo particular de ser conduzida:
“Os verdadeiros retratos, ou seja, aqueles em que os elementos, assim como os sentimentos, parecem sair do modelo, são bastante raros. Na minha juventude, visitei muitas vezes o Museu Lécuyer, em Saint-Quentin. Estava aí reunida uma centena de esboços executados a pastel por Quentin-Latour, antes de fazer os seus grandes retratos suntuosos. Interessado por esses amáveis rostos, notei em seguida que cada um deles era muito pessoal. (...) Acabei por descobrir que a semelhança de um retrato resulta da oposição que existe entre o rosto do modelo e os outros rostos, em suma, da sua assimetria particular. Cada rosto tem o seu ritmo próprio e é esse ritmo que cria a semelhança.”
Em 1955 Jacques Rivette escreveu um texto, hoje célebre, intitulado Lettre sur Rossellini, marco limiar da crítica cinematográfica moderna, no qual estabelecia uma comparação entre o cineasta italiano e Matisse (autor das citações acima). É justamente no Rossellini da Pancinor, o realizador de Viva l’Italia!, A Tomada do Poder por Luis XIV e Blaise Pascal, que nos lembramos ao assistir Fuga para Odessa: Gray utiliza o zoom numa modulação perfeita das distâncias que afetam em praticamente todas as cenas o jogo dos atores, inicialmente isolando-os em espaços mais achatados e dimensões menos generosas (closes e planos médios fotografados na teleobjetiva) para mais tarde fazer com que o dispositivo óptico os integre lentamente a interiores opressivos ou a espaços urbanos milimetricamente geometrizados, repletos de objetos cuja ação do tempo incrustou de memórias e recordações dolorosas. Dá-se a sensação de que o mundo inteiro converge num drama absoluto da alteridade, das dimensões opostas e justapostas de uma tensão e das coalizões necessárias à coabitação das presenças em jogo, forças singulares que atuam nos limites de um universo que se reduzirá progressivamente à fração mais significativa de sua totalidade antes de se extinguir. É pela utilização ao mesmo tempo cósmica e nuclear do zoom que Gray submete a seu controle os gestos repentinos que afastam as personagens precisamente no momento em que anseiam uma proximidade maior, um alento, um repouso. O tempo é lentamente decantado pela sublimação desses gestos como em Rossellini, Visconti, Oliveira, Jerry Lewis, William Gedney, Dreyer, Cottafavi, Griffith, Mizoguchi, Hawks, a tal ponto que em Caminho Sem Volta tem-se a impressão de se assistir à primeira utilização real de uma câmera lenta na história do cinema, tamanha a coincidência do recurso com a interiorização a que Gray submete seus intérpretes. Em diversos momentos nos confundimos achando que o que assistimos está em movimento lento quando na realidade a desaceleração vem do desempenho físico dos atores, fruto de uma absorção do encadeamento inexorável de seus destinos pelas suas subjetividades. Pois, como veremos mais abaixo, as personagens de Gray são profundamente habitadas pelos seus passados.
3. Penso também em Marco Bellocchio, em Olhos na Boca especificamente. Lou Castel na estação de trem, descendo do vagão, passos firmes, o descontentamento que traz no rosto, única bagagem deste retorno forçoso à cidade natal e ao seio familiar. Uma história de dois irmãos, um morto e um sobrevivente, de um filho que reencontra a mãe para sentar e conversar; história de fantasmas, de um luto inalterável, de um ciclo ininterrupto contra o qual o protagonista luta com todas as suas forças, o limiar de uma vida invisível acessível apenas à câmara obscura da câmera cinematográfica. Castel e Tim Roth retornando aos seus lares, paragens cujas arquiteturas remetem tanto às conversation pieces do séc. XVIII como a Andrew Wyeth e Lesser Ury; a noite que os esconde dos familiares a que observam de longe, do pátio ou da rua; as curvas dos ombros que carregam passados turbulentos, revisitados em tudo o que vimos até agora...
Mas Bellocchio é um rebelde que insurgiu-se contra a sua fé, enquanto Gray é um católico que busca aceitá-la a despeito de todas as adversidades. Bellocchio é um excêntrico que retrata os dramas das encruzilhadas morais de artistas e de personagens notáveis da história política de seu país enquanto Gray nada mais faz que coincidir sua vocação verista a uma inclinação verdadeiramente trágica, filmando com nobreza e dignidade aristocrática uma classe operária abordada com um respeito e uma afeição exemplares. O que eles têm em comum, porém, é uma mesma compreensão do papel da rebelião como elemento norteador. É esta a proposta de ambos, exacerbada por Bellocchio e magnificada por Gray, e é desta forma que podemos ver neste último, mais até que em Fassbinder, o digno sucessor de um espólio de filmes que retrataram a inquietação e o desconsolo de jovens adultos diante dos tumultos e das dificuldades a que foram condenados pela sociedade, pela família ou por ambas, e contra as quais lutam. Noite Inolvidável, Mônica e o Desejo, Juventude Transviada, O Solar Maldito, O Túmulo do Sol, Rocco e Seus Irmãos, Uma Vida em Pecado, Clamor do Sexo, A Canção da Esperança, O Pranto de um Ídolo, O Pequeno Soldado, Antes da Revolução, O Round Decisivo, De Punhos Cerrados, O Desafio, A Vingança de um Pistoleiro, O Diabo, Provavelmente, Le rebelle, Aos Nossos Amores e mais recentemente De bruit et de fureur e O Sangue ofereceram cada um a seu tempo as narrativas críticas, oníricas, psicológicas, poéticas, políticas, objetivas e subjetivas das turbulências, dos meandros, dos acasos, dos impasses, das revoltas, das fatalidades, dos triunfos e dos fracassos de suas respectivas épocas. São os filmes que delineiam e apontam as vias pelas quais outros filmes, mais sucintos, mais equilibrados, podem mostrar a possibilidade concreta de uma síntese de todos esses elementos.
4. Fuga para Odessa é um desses filmes. Cumprindo seu papel de exceção, Gray renova o filão dos filmes de incitação à revolta através das magníficas personagens interpretadas por Tim Roth e Edward Furlong (sua atuação em particular é sincera, delicada e pungente como a de Mickey Rourke em O Selvagem da Motocicleta). O cinismo difuso dos anos 90 é rebatido aqui a socos, coronhadas, rebeliões diárias e errâncias. Sentimos novamente um calor humano feito de fraquezas, consternações e incertezas mas também de ações e resoluções. A operação realizada por Gray é fundamentalmente sintética porque introduz indícios das mudanças que decorrem de uma época a outra em todas as atividades humanas que retrata: é o ditado proferido por Maximilian Schell enquanto está na cama com sua amante, e é a reflexão desse ditado que orienta a ação e o tempo dramático do filme.
Seja narrando as grandes jornadas espirituais e filosóficas do homem ou ajustando-se ao movimento pacato e extraordinário da vida cotidiana, os filmes sintéticos - Solidão, Um Dia no Campo, Soberba, Viagem à Itália, Amor, Prelúdio de Morte, Suplício de uma Alma, O Desprezo, Classe Operária, Showgirls, A Hora da Religião, Coisas Secretas, Além da Vida - são antes de tudo trabalhos de ruptura. É deste ímpeto devastador (Rohmer: “Se pensasse em Hitchcock, acabaria provavelmente paralisado”) que surgem as grandes obras clássicas, as que oferecem às suas gerações e às gerações vindouras o espelho no qual elas podem ler suas próprias condições. Se Fuga para Odessa é um grande filme sintético é porque Gray entendeu que a expressão de um rosto pode ser tão verdadeira quanto a totalidade do universo, visto que o primeiro nada mais é que uma fração do segundo. No plano final do filme, lançados ao mesmo abismo que Tim Roth, afrontamos um mundo desprovido de conformismos fúteis e falsos pretextos. Um homem, sozinho, olha para o nada e vê a si mesmo. São as perspectivas insondáveis que se abrem uma vez que nossos demônios tenham sido exorcizados.
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