OS OLHOS SEM ROSTO, Georges Franju, 1960
por Felipe Medeiros


O Dreyer de Vampyr e Dias de Ira, Tourneur, mas também Murnau e os curta-metragens de Resnais, sobretudo Van Gogh e Toute la mémoire du monde. A mim, falando em Resnais, parece que tudo deságua em Noite e Neblina, esta serena foz do terror, da morte mais terrível que é a morte que não se sabe, ou diz.

A pulsão de morte é uma chaga silenciosa, algo que não se diz porque está além (aquém) da forma, é o informe, como dizia Freud; um fantasma, enfim... E nestes filmes só a imagem consegue capturar a coisa, a dita cuja, em suas malhas.

O que mais me horrorizou no Franju de Os Olhos Sem Rosto mas também Judex e na crueldade pré-adamita, inocente de Le sang des bêtes é esta confusão amoral de gêneros, de sentidos, de pontos de vista (o informe, ou primordial, chame como quiser): um conto de horror narrado como um conto de fadas, ou como um documento clínico, na cirurgia de Os Olhos Sem Rosto; um documento clínico narrado como um intermezzo lírico em Le sang des bêtes - bom lembrar que o matadouro é uma ponte entre o lirismo decadente, fascinado por coisas puídas, idas e vividas (bem ao gosto do surrealismo), que abre o filme, e o lado documental, instrumental de uma cidade funcional, apesar (ou na medida de) permanecer mágica e imemorial.

É bom ressaltar que esta confusão, esta correspondência (melhor dizendo) entre gêneros, formas e paisagens mentais se dá porque Franju, como vários surrealistas (ou superrealistas) sabe transpor com excelência em imagens o sentido do insólito através da metonímia. O enredo de Os Olhos Sem Rosto, por exemplo, é bastante ordinário: uma jovem mulher bonita tem seu rosto desfigurado em acidente e seu pai tentará obstinadamente achar um rosto compatível com o seu para realizar um transplante de pele. O que está sendo enfatizado em Os Olhos Sem Rosto é a situação dessa estrutura banal num contexto mais vasto.

Uma desfiguração arquetípica e primordial: o masoquismo é esta figura que permite a Franju trafegar da pulsão de morte ao desejo que ela recobre (e perverte), a aceitação do meio. O meio é o grande fantasma de Os Olhos Sem Rosto. A filha do cirurgião percorre a casa em solitária e tediosa proteção dos olhares do mundo; uma mansão trancada, quadros e objetos que reafirmam a lógica de uma imutável vida saudável do passado; está diante de um espelho nessa casa sem espelhos. É claro que ainda há um espelho, uma superfície brilhante onde a morte é edulcorada por projeções, fantasmas de toda sorte: o rosto deformado, o namorado que ficou para trás, o teatro de uma vida normal diante da série de assassinatos promovidos para a reconstituição do seu rosto, de um organismo compatível com o seu. Mas a “função” da ausência de espelhos acabou. Estamos a um passo de se descortinar a verdade, se verdade há.


 

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