OLHOS DE SERPENTE, Brian De Palma, 1998
por João Palhares
Olhos de Serpente acaba e começa com planos-seqüência. Melhor dizendo, começa com um falso plano-seqüência e acaba com um plano-seqüência. Essa primeira “seqüência” introduz-nos na ação, é a representação distanciada do acontecimento que contamina todo o filme, a morte do ministro da defesa. Há dois cortes sutis, quase invisíveis, no trajeto do personagem de Nicolas Cage, Rick Santoro; e o terceiro plano (que dura desde a entrega da aposta de Santoro no andar de baixo, até ao “K.O.” de Tyler, o boxer), é o mais longo de todos. Começo por dizer isto porque a comoção que se segue só tem o poder que tem por causa da fluidez, diria até que calmaria absoluta, desses primeiros minutos. Quando a multidão desata a correr em pânico, nós sentimos a transição profundamente. De fato, atravessa-nos um grande desalento, mais intelectual, e enquanto os cortes se seguem uns atrás dos outros à grande velocidade, também estamos desnorteados.
O que se segue, ou o cerne do filme, é a dissecação obsessiva (narrativa, do som, da montagem) daqueles três primeiros planos, ou daquele falso plano. Repetem-se os “Tyler!” efusivos de Santoro, o “Here comes the pain!” e o tiro final, constantemente.
Rick Santoro é o otário que investiga o assassinato, percebendo as coisas aos poucos. E De Palma parece que ajusta o trabalho de câmera e de montagem ao QI da personagem. Slow motions, split screens, escalas em sintonia, música; nunca a arte de De Palma, parece-me, fez tanto sentido num filme seu, confundem-se a percepção e a dialética, constantemente.
E porque sempre achei que há um momento em filmes brilhantes em que percebemos que são brilhantes, falo da seqüência do flashback de Tyler, o boxer: confrontado por Santoro pelo K.O. duvidoso, conta a sua história, uma das primeiras peças do puzzle. A dificuldade em ser vencido por tão fraco adversário, está à nora; vêm então os acordes belíssimos da trilha sonora de Ryuichi Sakamoto. Tudo lentíssimo. Retenha-se o grande plano do homem (talvez o mais belo de toda a obra de De Palma), no chão, a sentir-se nu, sem dignidade, na sarjeta, vendido e vencido - tudo isto prova que De Palma também é humano, o momento é belíssimo, mas não se força a isso, flui extraordinariamente.
Ao ver o resto do filme, conforme Santoro vai decifrando o resto do puzzle, apercebemo-nos do gozo que deve ter dado a De Palma ter feito o filme, continuando a dividir minuciosamente aquele assassinato até as últimas conseqüências, encontrando novas câmeras e novos pontos de vista, novos ângulos e novos testemunhos - a história pela imagem - habilidosamente. Reviravolta atrás de reviravolta. Até ao plano final. Santoro e Julia (onde andas tu, Carla Gugino?).
Dos chamados “filmes com twist” (e para este filme acho que isso pouco interessa), só gosto dos de De Palma.
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