BOUDU SALVO DAS ÁGUAS, Jean Renoir, 1932
por José Oliveira


Boudu Salvo das Águas conta uma história simples, conta uma história bela e comovente. A de um velho que embora não pareça lá muito desgostoso com o miserabilismo e a solidão da sua vida, decide pôr-lhe fim e dar-se às águas. Talvez por ter perdido o seu cão? Talvez porque qualquer enfermidade interior se tenha interposto a uma aparentemente furiosa vontade de desprendimento? Coisas dessas não se costumam saber... Depois... É uma história de amor, ou mais do que uma, entre a alma caridosa que o salvou e entre uma rapariga inocente, e, como em todas essas histórias, ou quase todas, a linha nunca vai ser reta. Boudu há de voltar às origens e a uma singular plenitude. O filme é surpreendente, puramente fresco e inclassificável a vários níveis. É preciso nos lembrarmos das sábias palavras de Rohmer - “todos os bons filmes são documentários” - para melhor entender a mestria e o olhar de Renoir. Parece um documentário porque acima de qualquer efeito ou “impressão” de cinema, o que lhe interessa é um homem e tudo o que à sua volta o envolve e pulsa. Interessa-lhe os seus instintos, a sua natureza, essa espécie de loucura dos livres. Interessa-lhe ver como tudo o que o envolve reage, abana, se comporta. E a forma como tudo isto é captado, apreendido, essa construção livre e de uma frescura retumbante, tem a um tempo a alvura dos primitivos e a audácia dos mais modernos. Ou será a mesma coisa? De planos intimistas e evadidos por um lirismo desencantado - um certo plano de um cão à beira rio… - logo se passa para planos que funcionam como pura descrição dos lugares e das ações; do puro controle de um esteta para a soltura da câmara sobre a bruitage do mundo; a estridência e vitalidade de toda a sonoridade do filme, esse oxigênio para os ouvidos - impressionante quando do dentro se sai para fora, e vice-versa - vai precisamente nesse sentido, o de se deixar enlevar pela imprevisibilidade e surpresa do mundo, ao invés de um qualquer fechamento sobre qualquer lógica falsamente cadencial ou coerente. É a distinção, é a marca dos grandes. Por isso qualquer dos planos do filme contém uma ardência e uma claridade que só pode remeter precisamente para o espanto e fascinação dos Lumière; para logo depois sermos atirados ao tapete e pensarmos em coisas do mais puro avant-garde, de Godard ou Cassavetes; Rossen ou qualquer um dessa linhagem que sobre realidade fez agitar o seu temperamento. Um filme doce, obviamente, tão doce como um dos planos finais, aquele em que Boudu, já pacificado, dá de comer ao animal junto ao rio.

 

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