ANATOMIA DO DRAMA
por Francis Vogner dos Reis


Shakespeare foi um deus mortal (como Vitor Hugo aspirou a ser), porque sua arte, não era, de forma alguma, uma mimese. Um modo de representação que sempre está à frente de qualquer realidade que se desenvolva no plano histórico por força nos contém mais do que somos capazes de contê-la.

Harold Bloom, Abaixo as Verdades Sagradas: Poesia e Crença Desde a Bíblia Até Nossos Dias

Será que não pensaste que ele (o Homem) acabaria questionando e renegando até tua imagem e tua verdade se o oprimissem com um fardo tão terrível como o livre arbítrio?

Os Irmãos Karamázov

Há no vocabulário acessório da crítica de cinema uma palavrinha que não escapa de ser usada como caminho fácil para encurtar a argumentação: “mundo”. Ou o vocabulário crítico é pequeno demais ou o conceito de “mundo” se tornou um valor virtual que serve somente para denotar a verdade dos filmes ou a falta dela: filmes que se relacionam com o mundo = bom; filmes que não se relacionam com o mundo = ruim. Se grosso modo é inevitável aceitar essa matemática, raramente fica clara qual é a concepção de mundo do escriba ou do filme em questão ou como esse suposto mundo tem sua coerência e verdade particular. Aqui se usará com alguma freqüência este termo-valor “mundo”. O esforço, entretanto, é o de dizer o que é esse mundo, como ele se apresenta e porque isso seria um valor em si. Isso é necessário na obra de James Gray, pois nela o mundo se impõe. É pegar ou largar.

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Comecemos cometendo uma heresia crítica (segundo alguns paladares): os filmes de James Gray não oferecem uma “discussão”, mas “se oferecem”. Só é possível afirmar isso porque James Gray é desses cineastas que estimulam, sabe Deus como, um atalho na nossa percepção que atinge diretamente nosso pathos, que estimula uma sensibilidade que não é só um prazer sensorial (deixemos isso para os cineastas new age), que nos chama à razão para, imediatamente na seqüência posterior, nos colocar à beira do abismo. Esse “mundo que se oferece” tem a vertigem do caos que nos tira provisoriamente a capacidade de avaliar nossos atos. Talvez excêntrico para o espectador contemporâneo, acostumado mais a entender o desespero por meio de um certo cinema moderno que tem em Antonioni matriz máxima - que certamente deve muito aos homens ocos de T. S. Elliot e aos angustiados de Camus - do que por meio de Tchekov e Dostoiévski, dois torturados a quem os filmes de Gray devem muita coisa. Ou seja: entre a dor e o vazio, os filmes de Gray optam pela dor. Não há uma tentativa por parte do diretor em camuflar a queda dos seus personagens por meio de psicologia barata ou de justificativas dramáticas que redimam os personagens de suas responsabilidades, sem que em contrapartida seja necessário transformá-los em demônios. A constatação é simples: eles são somente homens. Isso tem a sua beleza, mas também a sua tragédia. Quantos cineastas têm essa exigência (e generosidade) nos últimos cinqüenta anos? Alguns poucos. Talvez Jean-Claude Brisseau e Rainer Werner Fassbinder possuam temperamento semelhante. Não por acaso são todos eles radicais solitários.

Dizer que a obra de Gray “se oferece”, mas não oferece uma reflexão não quer dizer que não seja possível pensar sobre filmes como Fuga para Odessa e Os Donos da Noite. O que acontece é que a paradoxalmente pequena (em número de filmes) e grande (em estatura) obra de Gray tem o cuidado de nos introduzir em um mundo com uma destreza e uma franqueza que nos desarma: Fuga para Odessa (1994), Caminho Sem Volta (1999), Os Donos da Noite (2007) e Amantes (2008). Quatro filmes que pedem a adesão irrestrita. Não uma adesão de mera fruição estética - pois pactos de ilusão hoje não são mais possíveis - ou de mera fruição sensorial - que tem somente um discurso sobre a beleza. Mas o que se pede é uma adesão vigilante, que em um tom maior (Caminho Sem Volta) ou menor (Amantes) faz desses filmes perfeitos deslocados em sua época, não porque sejam demodés, mas porque estão nos antípodas do cinismo e da auto-complacência que uma boa parcela dos filmes amargou nos últimos quinze anos, em que o drama humano se reduziu a caricaturas psicológicas, análises de comportamento e lavagens cerebrais.

Por isso, as exigências do cinema de Gray têm uma integridade que só presta contas a si mesma e isso faz dele uma reserva moral no cinema americano ao lado de alguns poucos como Clint Eastwood e John Carpenter, cineastas que, como Gray, sempre pareceram estranhos aos seus contemporâneos. Ele, como Eastwood e Carpenter, é um cronista de uma terra devastada. Sua América é composta de estrangeiros, que são diferentes dos imigrantes tradicionais do cinema americano, que eram aqueles que vinham “tentar a vida”. Em Gray os descendentes de imigrantes estão integrados e adaptados à sociedade, porém herdaram uma América do tédio.

Gray é um cineasta de Nova York como também Allen, Scorsese, Lee, e como eles, é um individualista que olha para uma comunidade. Entretanto, diferente dos olhares para a intimidade comunitária e italiana da Little Italy de Scorsese e da Manhattan intelectual e judaica de Allen, a geografia do seu Brooklyn é de um desolamento frio e desértico. É uma espectral Nova York russa, de uma luz fria, desoladora e que nos dá a ver, com clareza, a insinuação do mal e a intimidade com ele. Mas ainda assim é uma luz. E isso faz toda a diferença.

Uma dramaturgia da luz

Certamente James Gray não é o primeiro cineasta americano a adotar uma perspectiva sentimental da cidade e da arquitetura vernacular tal como a pintura realista americana, mais precisamente Edward Hopper (na solidão da intimidade) e Andrew Wyeth (na desolação da paisagem). Mas diferente de um Terrence Malick (em certa medida um herdeiro também desses pintores) que utiliza a luz de maneira quase alegórica, Gray prefere fazer da luz o princípio fundamental do drama. Ele não faz “imagens bonitas” e “belas composições”, mas o que é efetivamente belo em todos os seus filmes é que seus planos respiram, as emoções são verdadeiras, não há máscaras nos personagens porque Gray procura olhar para eles com demasiada proximidade. É como se todo o trabalho de “cena” fosse conduzido em um tom grave, porém com uma serenidade litúrgica. Os sentimentos são contraditórios e radicais, porém íntegros. Gray prefere sempre o caminho mais difícil pra chegar a esses sentimentos, na contramão de alguns de seus contemporâneos (como Paul Thomas Anderson e Wes Anderson) que optam pelos atalhos. Há de se notar que todos os seus atores (sobretudo as veteranas Ellen Burstyn, Faye Dunaway, Isabella Rossellini e Vanessa Redgrave) têm, em seus filmes, os papéis de suas vidas.

Como Manoel de Oliveira, Ingmar Bergman, F. W. Murnau e Kenji Mizoguchi, Gray realiza esse prodígio da “dramaturgia da luz” (definição de Julio Bressane), que não é uma condição do cinema, mas uma conquista: o cineasta faz da luz, da sombra e da inclinação da perspectiva a própria substância do drama, porque ela em si revela os personagens e situações na sua clareza relativa (conhecimento parcial dos sentidos das coisas) e na sua opacidade natural (a dificuldade de aferir sentido às coisas). A dramaturgia da luz não é a encenação de um roteiro previamente escrito com atores e uma luz expressiva (isso até as novelas, publicidade, séries de Luiz Fernando Carvalho fazem), mas sim a condição pela qual a luz dá peso e atmosfera às coisas e vemos nisso que aquilo que seria, digamos, abstrato e literário (valores, idéias e sentimentos), ganha corpo e proporção: a visão da mãe moribunda através da porta, o que faz do quarto uma antecâmara da morte, em Fuga para Odessa; Leo em Caminho Sem Volta cobrando da prima o seu direito de ver a mãe convalescente e que, com dois passos para trás, desaparece completamente no breu de um beco; a perseguição de carros em Os Donos da Noite onde o protagonista Bobby testemunha - literalmente - a curva do seu destino; em Amantes a silhueta sem rosto de Michelle que anda em direção a Leonard pelo corredor parcialmente iluminado, prenúncio de que ele não a entende, portanto não a tem. Essa luz é quase originária: uma pulsão que anima os corpos, dá-lhes movimento e nos dá a ver a agonia da vida e da morte, que se consomem uma à outra. Essa idéia talvez seja norteadora no cinema de James Gray. A vida e a morte que se consomem. Essa é a dialética fundamental.

Os apartamentos são assombrados pelos espectros do desperdício da vida e dos afetos. “Parece que as paredes estão se fechando ao meu redor”, diz Amada, a personagem de Eva Mendes em Os Donos da Noite. As circunstâncias afunilam as possibilidades de controle de suas próprias vidas e ao mesmo tempo os impele para uma atitude propositiva. Eles são definidos por sua impotência, não pela sua potência. O desconforto dos personagens não é com alguma coisa pontual (um trauma, um familiar, uma indisposição psíquica), mas sim com a própria forma que o tempo e as circunstâncias dão à vida.

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Falar em drama humano é chafurdar na generalidade? Talvez, sob certo aspecto. Mas se fizermos análises sintéticas e secas desses dramas eles realmente correm o risco de perder seu significado mais profundo, pois a linguagem e a razão analítica não conseguem dar conta do quão complexas são essas “generalidades”. Por isso o cinema de James Gray não lida com “questões”, mas com o “drama humano”.


 

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