JAMES GRAY por Miguel Marías
Talvez Caminho Sem Volta (2000), seu segundo filme, seja ainda melhor (e que conste que acho admirável o primeiro, Fuga para Odessa, 1994, e o terceiro, Os Donos da Noite, 2007), mas no fundo o quarto e último a estrear, Amantes (2008), é provavelmente o mais valioso para avaliar o talento de James Gray. Ao mesmo tempo é mais “difícil” e o menos facilmente acessível de todos, pois prescinde do atrativo e das normas dramáticas que proporciona uma intriga de confronto mais ou menos violenta, entre grupos rivais e até mesmo dentro de uma família, e também não se sustenta na mitologia (atualizada) e no suporte formal de um gênero que, embora em declínio há muito tempo, conta todavia com muitos esperançosos seguidores.
Em contrapartida, Amantes é um filme que creio, parece-me, completamente realista (vejo muitas pessoas da idade de Leonard igualmente passivas e desorientadas, tão à deriva e instáveis como Michelle, ou tão resignadas e famintas como Sandra), que fala do mundo atual como ele é, sem carregar as tintas melodramaticamente nem soltar discursos apocalípticos ou sociológicos, e o faz, além de tudo, acompanhando atentamente, com generosa objetividade, a uns personagens bastante comuns, nada extraordinários nem sequer pitorescos, sem especiais valores, talentos ou virtudes, mas também não particularmente negativos ou sem esperança, que Gray examina de perto mas sempre mantendo uma distância respeitosa, sem voyeurismo, analisando sem grandiloqüência os sentimentos (também difusos, inconstantes, incertos, talvez insuficientemente enérgicos e concretos) e o variado mal-estar destes três seres (além daqueles que os rodeiam), e que para isso apenas se baseia mais que nos atores (admiravelmente escolhidos e dirigidos, em registros tão variados como os são os personagens) e na câmera, considerada de novo (como em Nicholas Ray, como em Rossellini, como em Preminger, como em Naruse, como no melhor Losey, como em Ida Lupino) como um aparato óptico de precisão que se limita e registrar gestos, movimentos, comportamentos externos - isoladamente ou em sociedade, na presença de conhecidos e familiares ou de estranhos -, e sobretudo os olhares, e só acessoriamente nos permite, talvez, mergulhar no seu interior, por aquilo que por este se revelam - embora tratem de dissimular - seus trejeitos, sua forma de se mover, sua maneira de andar, de sentar ou dançar; sempre sem que a câmera se exiba, sem buscar outros efeitos, sem enfatizar ou amplificar qualquer coisa, sem acelerar artificialmente o ritmo da história ou impor uma dinâmica descabida ao que acontece na tela.
Isto, que pode parecer muito clássico ou muito normal, que em si mesmo, no curso da história do cinema, não teria de extraordinário senão o nível e a nudez do acerto, é hoje, nas circunstâncias atuais do cinema americano, uma proeza, e ademais uma façanha perigosa para a futura carreira de Gray, porque não é certamente esse tipo de “neo-realismo” o que mais ocorre nesta temporada, o que parece garantir um possível sucesso comercial ou crítico. Não me lembro que tenha sido nomeada para um Oscar, embora meu interesse pelos prêmios seja tão pequeno que posso muito bem estar equivocado e me esquecer por completo; em todo caso, Gray faz um cinema demasiadamente modesto e preciso para chamar a atenção, que hoje parece necessária se você quer se destacar da multidão anônima e que se fixe em um cineasta que não é um personagem público chamativo uma crítica deslumbrada pelos efeitos especiais e os elevados custos de produção, ou ainda pelo sucesso de bilheteria ou grandes temas da atualidade tratados superficialmente.
Não que anteriormente o cinema de Gray tivesse se aproximado mesmo que remotamente desses fáceis e freqüentes erros, mas até Amantes contava com a vantagem de jogar em um território conhecido, baseado em um gênero forte e muito codificado, no qual cabia introduzir algumas variantes - máfias russas no lugar de gangsteres italianos, irlandeses ou judeus - que supunham certa novidade ou atualização, mas que se moviam dentro de esquemas semelhantes aos dos clássicos - Sangue do Meu Sangue de Mankiewicz, Uma Vida Marcada de Siodmak, Sindicato de Ladrões de Kazan -, que Coppola já havia atualizado e revitalizado na série O Poderoso Chefão. O alcance do seu cinema era mais modesto, mais limitado, e além do mais progredia com certa lentidão (cinco anos entre seus dois primeiros filmes, sete do segundo para a terceiro), ritmo que felizmente parece ter se acelerado com a chegada de Amantes no ano seguinte a Os Donos da Noite.
Nos três primeiros filmes, muito violentos e muito dramáticos, decidiam-se questões de vida ou morte, tinha que se optar por um caminho ou outro, e nenhum era fácil. Amantes é uma obra muito mais tranqüila, mais cotidiana, menos dramática, em que o que está em jogo é como sobreviver quando não há guerra entre quadrilhas ou entre bandidos e policiais, como conseguir, dia após dia, seguir vivendo quando as expectativas são baixas, o futuro parece pouco promissor e já existe uma vitória em se chegar à noite sem morrer de tédio ou monotonia.
Amantes, tão simples como perfeitamente inteligível, tão equilibrado em sua consideração dos personagens, tão pouco tópico e tão alheio a todos esquematismo, parece-me a mais segura confirmação do talento de James Gray, embora sua próxima estréia - já filmada - me preocupe um pouco e não esteja isenta de riscos, o que vejo como positivo que se disponha a correr, ao não limitar o seu mundo à máfia russa em Nova York e arredores. E creio que, veja como se veja, Amantes é o melhor que alguém fez nos EUA nos últimos dez anos. A conclusão do filme me parece um bom indício desse talento, porque não cai numa convenção para escapar do contrário, como tantas vezes acontece, nem a trapaceia comodamente, sendo simplesmente a mais lógica e real, sem pessimismos melodramáticos ou niilistas mais ou menos complacentes e sem optar por um (possível e até aceitável) final feliz em que ninguém teria acreditado, nem mesmo, no fundo, o personagem que mais teria desejado esse final, o que tão admiravelmente interpreta Joaquin Phoenix entre duas atrizes diametralmente opostas - Gwyneth Paltrow e Vinessa Shaw - que neste filme estão perfeitas, assim como, em papéis menores, estão Isabella Rossellini ou Elias Koteas. A chave está, talvez, no fato de que nem Leonard nem nós saberíamos com segurança qual final dentre os possíveis teria sido verdadeiramente feliz.
(Traduzido por Guto Gama)
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