BOY MEETS GIRL
por Serge Daney


(Boy Meets Girl). 1984. Abilene (100 minutos). Produção: Patricia Moraz (não creditada). Produção executiva: Alain Dahan. Roteiro: Leos Carax. Fotografia: Jean-Yves Escoffier (P/B). Música: Jacques Pinault, Jo Lemaire, Serge Gainsbourg, Dead Kennedys, David Bowie. Cenografia: Serge Marzolff, Jean Bauer. Montagem: Nelly Meunier, Francine Sandberg. Elenco: Denis Lavant (Alex), Mireille Perrier (Mireille), Carroll Brooks (Helen), Maïté Nahyr (Maïté), Elie Poicard, Christian Cloarec (Thomas), Lorraine Berger (Pimprenelle), Marc Desclozeaux (Henri), Anna Baldaccini (Florence), Evelyne Schmitt (a estudante), Jean Duflot (Bouriana), P’tit Louis (Sacha), Dominique Reymond (a vizinha), Georges Castorp (o vizinho), Anne Dieumegard (a apaixonada), Puig Segur (o apaixonado), Remy Brozek (gêmeo), Georges Brozek (gêmeo), Christian (o gorila), Ardag Basmadjian (a criança), Gerard Colin (o acrobata), Laurent Chevalier (o seguinte), Jacques Pinault (o pianista), Timothée Janssen (o Q.I.), Hans Meyer (astronauta), Lolo Pigalle (Miss Universo), Elizabeth Emorine (a amiga), Albert Braun (o surdo-mudo), Frédérique Charbonneau (o intérprete), Lucie Morgan (a babá), Robert Langlois (Stan), Robert Benavente (o jogador), Jean-Jacques Rock (o patrão).

Boy Meets Girl. Libé meets Carax. Sim, ainda há jovens cineastas suficientemente orgulhosos para falarem de si na primeira pessoa. Em Cannes, nós gostamos muito do Boy Meets Girl de Leos Carax.

Um frágil fantasma assombra todo o festival, o do primeiro filme do jovem cineasta (talvez) genial. A “revelação”, como dizem na imprensa, a “esperança”, a segurança de que o cinema segue em frente, que ele produz os seus Rimbaud e os seus “poetas de sete anos” contra ventos e marés, que recomeça do zero, que não morre. Mas ao mesmo tempo, porque se elogiou em demasia talentos que não mantiveram suas promessas, porque chamou-se de “jovens cineastas” debutantes tardios que já não eram adolescentes havia muito tempo, porque os produtores de pouco tato extinguiram jovens talentos a golpes de orçamentos bem pesados, essa assombração não ousa mais ser tão dita. Há quem se contente em ver os jovens cineastas de hoje que carregam consigo a sensibilidade dos anos 80, que se “parecem” com a sua época, ainda que eles não possuam, evidentemente, nenhum mérito. Eles chegam agora, bastante amaneirados, freqüentemente nostálgicos, forçosamente agressivos, ignorantes ou muito cinéfilos. Eles sabem que é bem mais difícil fazer escândalo que seus anciãos e que há uma revolta, em algum canto, da qual os privaram. Mas eles chegam, necessariamente.

Ontem, assistimos a Boy Meets Girl, o primeiro longa-metragem de Leos Carax. Trata-se de um verdadeiro primeiro filme onde há (apostemos nele) um verdadeiro autor.

Assim como a sua idade, que é a de 23 anos, o filme é evidentemente irregular, instável e repleto de impasses, mas respira o cinema e data de 1984. Os atores são da mesma idade do seu cineasta; o herói, Alex, parece uma espécie de irmão de Carax, e eles só falam daquilo que os rodeia: a dor de viver, o desejo de já ter se extinguido, de ter deixado algo para trás, o gosto e o desgosto pelo mundo, o pudor, pensamentos obscuros e um ego a toda prova. Além disso, Carax possui, coisa rara, um dom para a poesia.

Um filme como Boy Meets Girl não ganha nada ao ser descrito. Não porque haveria um mistério a se guardar sobre essa velha história - bressoniana - de um jovem rapaz, na última noite antes de partir para o serviço militar, entre uma garota que o abandonou e uma outra que ele encontra, desde já “entre a dor e o nada.” É porque seu mistério está na segurança da mise en scène quando ela evoca esse sentimento insustentável de precariedade, na beleza dos monólogos enunciados com neutralidade, sem falsas seduções.

Há dois amigos discutindo sobre as margens do rio Sena à noite e um encurrala o outro, há confissões sexuais bastante ousadas e doces, em voz off, um fliperama aberto e que até pisca, uma criança que inicia um monólogo devastador no metrô, um homem mudo que culpa os jovens “de não falar”, as crianças esquecidas que choram num quarto numa noite de recepção, os discos roubados por amor, um quarto de empregada iluminado pela luz de uma geladeira aberta, o orgulho das dores de amores perdidos e uma ausência quase total de adultos.

Um jovem autor (Carax?) é alguém que sabe já ter visto muitos filmes, vivido poucas coisas (mas já com dificuldades) e que não tem muito tempo a perder para começar a falar disso tudo. Porque o cinema é feito com aquilo que se tem. Autobiografia e programa exaltado da vida por vir (fulgurante) e, em seguida, momentos de afasia onde a homenagem ao cinema mudo não é uma afetação cinéfila, mas um mau momento a ser superado. Horror de errar por um mundo “já visto” mas “ainda não vivido”. Um jovem velho que só pode rejuvenescer.

Há qualquer coisa de hoje no olhar obstinado de Alex e de Mireille, adolescentes nem mesmo perdidos, apenas “acomodados” ao mundo que lhes cerca. E há qualquer coisa de ontem nas suas maneiras de viver suas vidas como um destino, porém conjugada no “futuro anterior”, como num romance do século XIX. Na parede pálida do seu quarto Alex desenhou grosseiramente um mapa de Paris sobre o qual marca cuidadosamente os locais e datas de tudo o que para ele foi uma “primeira vez”. Bela imagem para um primeiro filme: o nascimento, o primeiro beijo, a primeira tentativa de assassinato etc.

Há também qualquer coisa de hoje nessa maneira de Carax retomar o cinema autobiográfico da nouvelle vague (de Godard a Garrel, mas também de Skolimowski a Bertolucci), não mais na Paris luminosa liberada dos estúdios que nos revelou Coutard, mas numa Paris noturna, obscura, contrastada, “entre cão e lobo”, estriada de luzes de néon e venezianas, a Paris de todos os cineastas de sua geração.

Quem é Leos Carax? Um duplo de Alex, mas o que mais? Leos também não é grande, usa casacos enormes que o fazem parecer ainda mais jovem, não fala muito, fez um curta-metragem (Strangulation Blues), vive apenas o cinema. Ele também lembra o Léaud que colecionava fotos de estrelas em Os Incompreendidos. É ele que, muitas vezes, pergunta à vendedora de uma grande livraria de cinema parisiense se ela não teria “coisas novas” de Godard. Cartazes ou fotos. Pois, o leitor terá compreendido, Godard é um deus para Carax.

(Libération, 25 de maio de 1984. Traduzido por Felipe Medeiros)

 

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