FUGA PARA ODESSA
por Luiz Carlos Oliveira Jr.
(Little Odessa). 1994. New Line Cinema/Paul Webster Productions/Addis-Wechsler & Associates/Immigrant Pictures Inc. (98 minutos). Produção: Paul Webster. Produção executiva: Nick Wechsler, Claudia Lewis, Rolf Mittweg. Co-produção: Kerry Orent. Roteiro: James Gray. Fotografia: Tom Richmond (Super 35, Technicolor). Cenografia: Kevin Thompson (p.d.), Judy Rhee (a.d.), Charles Ford (s.d.). Montagem: Dorian Harris. Elenco: Tim Roth (Joshua Shapira), Edward Furlong (Reuben Shapira), Moira Kelly (Alla Shustervich), Vanessa Redgrave (Irina Shapira), Paul Guilfoyle (Boris Volkoff), Natalya Andreychenko (Natasha), Maximilian Schell (Arkady Shapira), David Vadim (Sasha), Mina Bern (vovó Tsilya), Boris McGiver (Ivan), Mohammed Ghaffari (Pahlevi), Michael Khmurov (Yuri), Dmitry Preyers (Victor), David Ross (Anatoly), Ron Brice (homem com uma perna), Jace Kent (mecânico), Marianna Lead (Clara), Gene Ruffini (zelador).
De onde veio James Gray, o melhor cineasta americano surgido nos últimos vinte anos? Uma cena no início de seu primeiro longa-metragem traz uma pista: num “cinema poeira”, o adolescente Reuben (Edward Furlong) assiste a um antigo western em cinemascope estrelado por Burt Lancaster. A sala está vazia, apenas uns gatos pingados. No meio do filme, a projeção trava e a película queima. Reuben vira para o projecionista e pergunta: “So, is that it?”. A resposta é um desencorajador “That’s it”. Ele levanta, pega seu casaco, sua mochila e vai embora. A coloquialidade com que se dirigiu ao projecionista e a tranqüilidade com que fumava seu cigarro enquanto assistia ao filme indicam que Reuben freqüenta assiduamente aquele cinema.
Seria isso um auto-retrato? Teria Gray formado seu olhar através de velhas cópias surradas de clássicos hollywoodianos exibidos numa pequena sala de repertório em Nova York? É bem plausível que sim, embora não se encontre em seus filmes uma tendência sistemática à citação ou à piscadela de olho cinéfila. Se Fuga para Odessa tende à estilização e ao virtuosismo em certos momentos, é porque revela um jovem cineasta que ainda busca - sem pose, mas sem falsa modéstia também - seu lugar em meio à tensão natural entre o que é da ordem da visão imediata e o que pertence à esfera da cultura (cinéfila, literária, musical etc). A solenidade da música de Arvo Pärt, o apuro pictórico de cada enquadramento e o uso recorrente do plano alongado podem soar como típicos caprichos de um estreante talentoso que já quer emplacar seu estilo. Que se note, no entanto, a verdadeira densidade de personagens que não parecem tirados de nenhum livro ou filme de cabeceira, mesmo que seus destinos espelhem o modelo inesgotável das tragédias clássicas.
O ator principal de Fuga para Odessa é Tim Roth, que interpreta Joshua, um criminoso que volta a seu bairro de infância para efetuar um assassinato sob encomenda. Ao reencontrar Reuben, que é seu irmão mais novo, Joshua pede sigilo quanto à sua presença na área. Ele deve agir em silêncio, pois é procurado por mafiosos locais com quem contraiu dívidas de sangue no passado.
Tim Roth acabara de se popularizar como ator-fetiche de Tarantino por conta de Cães de Aluguel e Pulp Fiction. Mas não poderia haver discrepância maior: o cinema de Gray se colocaria nas antípodas de tudo que Tarantino representava naquele momento. No lugar da cultura pop e da jukebox de imagens do diretor que mais tarde faria Kill Bill, Gray propunha um cinema rebatido pela complexidade da literatura russa (há uma influência manifesta de Dostoiévski), pela atmosfera grave de interiores sombrios e degradados, pela escolha dos atores em função de sua qualidade dramática e não de sua iconicidade. O que Fuga para Odessa revelava para o mundo era um jovem americano estudante de cinema curiosamente assombrado pelos fantasmas do “velho continente”, conforme algumas de suas escolhas artísticas indicam: elenco majoritariamente europeu (além de Tim Roth, ele pôs o austríaco Maximilian Schell como o pai de Joshua e a inglesa Vanessa Redgrave como a mãe que sofre de um câncer em estágio terminal), ambientação num bairro de imigrantes russos onde o inverno parece tão eterno quanto o da Sibéria, reverência ao estilo lento e rigoroso dos estetas do leste europeu (Béla Tarr, Tarkovski).
O trabalho de Tim Roth em Fuga para Odessa impressiona pela ausência completa de emoção. Seu personagem é impenetrável e imprevisível. A única coisa que conseguimos ver no fundo do seu olhar é uma espécie de fagulha de apocalipse, tal como já ocorre no primeiro plano do filme, que mostra os olhos de Joshua em detalhe, com metade do seu rosto encoberto pela sombra. É como se as trevas tivessem filtrado ou concedido a ele um último raio luminoso, uma última possibilidade da graça, evocando o tema da redenção, da chance derradeira de fazer a coisa certa (o que efetivamente não irá se confirmar). Essa imagem existe de maneira autônoma dentro da narrativa, não é localizável temporal ou espacialmente. Pode ser um plano deslocado para o início do filme, porém já marcado por toda a tragédia familiar que virá ao final. Mas pode ser também um plano ajustado à cadeia cronológica dos eventos, antecipando o assassinato que Joshua irá cometer em seguida. De todo modo, trata-se de um olhar que contempla a morte.
Fuga para Odessa é uma tragédia desenvolvida à luz ancestral da mitologia. Gray toma tudo que se entende por sociedade - realidade empírica, paisagem, cor local, determinantes sociais - como uma simples massa de mundo real na qual ele modela sua narrativa de maneira a apresentar o bairro apelidado de “Little Odessa” como um espaço-tempo fechado, mítico, quase absoluto. Poucos filmes dos anos 90, entretanto, deram tanta atenção à dimensão intrinsecamente documental de uma cena filmada a céu aberto, ao movimento das ruas, ao lixo que se acumula em suas esquinas, à fumaça que sai das chaminés das casas, dos canos de descarga dos carros ou mesmo dos corpos das pessoas. Gray traz o peso do ambiente para o centro da cena. Entre a câmera e os atores, interpõe-se um campo atmosférico que impede uma ação ou um personagem de se apresentar isoladamente em relação ao restante do espaço. Mesmo o expressionismo de algumas composições - a exemplo daquele plano em que a sombra de Reuben manipula um revólver como a antecipar toda a desgraça que está por vir - integra uma lógica de consubstanciar a ação no ambiente, como se tudo tivesse a mesma origem e não fosse possível conceber uma ação fora de um contexto espacial e luminoso determinado. Gray traduz sentimentos existenciais em cenografia e quadro, algo que atinge a perfeição naquele inesquecível e impregnante plano geral em que Joshua humilha seu pai num lugarejo periférico, com uma vegetação morta ao redor, uma fábrica desativada e uma ponte ao fundo, sob um céu cinzento - paisagem invernal indiferente à degradação familiar que ali chega ao ápice.
O buraco que se abre na tela após o fotograma queimar, lá naquela cena do início, gera um motivo visual que Gray retomará de maneira brilhante na cena da morte de Reuben. Quando Sacha, o amigo de Joshua que tinha ido ao seu encontro, vê a silhueta de Reuben por trás de um lençol branco pendurado num varal, ele o confunde com um inimigo e atira. A câmera se aproxima então do lençol com um travelling para frente e, através do buraco deixado pela bala do revólver, enquadra o corpo de Reuben caído no chão, ensangüentado. O branco do lençol retoma o branco da tela do cinema; o buraco da bala substitui o buraco da película queimando. O círculo se completa. É como se o movimento narrativo se resumisse naquele travelling que a câmera faz na direção do buraco no lençol branco. Reuben havia visto, no fotograma queimado, o signo agourento de seu destino, ao qual inconscientemente se encaminharia por uma força impelente inelutável. Fuga para Odessa é uma primeira demonstração do que pode o cinema de James Gray.
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