TRÁS-OS-MONTES, António Reis & Margarida Cordeiro, 1976 por João Bénard da Costa Por um filme A única solidão é aquela que não tem passado. De Trás-os-Montes,
filme de António Reis e Margarida Cordeiro, disse Jean Rouch que
inaugurava um novo cinema. Coisa de um tipo se pôr de joelhos, terá dito
também. A coberto deste magister dixit as línguas dos críticos
foram-se, finalmente, desatando e a imprensa do fim da semana passada
começou, finalmente, a entoar as suas loas. Loas ou réquiens? Pode-se
perguntá-lo, porque, entretanto, o filme deixava a sala onde se a
exibira, durante uma semana, ignorado pelo público, esquecido pela
crítica. Esta, como de costume e, como a propósito de uma outra obra
grande notava Eduardo Lourenço, “deixa morrer antes para coroar depois”.
Tudo que agora se diga ou faça em favor dessa coroação - e esta tardia
iniciativa de O Expresso[1] é bem um exemplo - é mais produto do vosso
remorso do que medida da vossa atenção. E tanta gente viu o filme a
tempo de com tempo dele falar. Pede-se-me,
agora, um curto depoimento. Para que possa ter alguma utilidade, é
preciso que haja onde ver o filme, o que implica a sua reposição. Como
já se fez para Benilde ou Brandos Costumes. Há que teimar e
não deixar que se perca assim o que é um dos grandes atos de amor e
criação que a arte feita por portugueses nos tem dado. Para
que se não perca uma obra que é, também, para um povo e para um país à
procura de si próprios, uma das poucas pedras do caminho que nos pode
ajudar a reencontrar a direção. Não me aventurarei a tentar explicar porque, no curto espaço de que disponho. Mas usarei o resto dele a dar duas pistas: 1
- Falei das pedras do caminho. Lembram-se do conto em que as crianças
as deixavam cair no chão para não se perderem? Velhas sagas, velhas
lendas. Mas o essencial da busca de António Reis e Margarida Cordeiro
está por essas bandas e tem que ver com esses medos. Ir buscar ao tempo,
ao “era uma vez”, o que, contado, recupera na imaginação o que nela
sempre há de memória. Neste filme, deixa de ser possível dividir uma de
outra, como deixa de ser possível separar a imagem do imaginário, pela
dupla abertura e pela dupla evasão que cada plano introduz ao que está
antes (por vezes, muito antes) e depois (por vezes, muito depois) dele. A
imagem reentra no imaginário. Fugindo ao pitoresco, ao folclórico, à
redução etnológica, o que Trás-os-Montes nos propõe é o encontro com o real imaginário
de uma cultura em que esses dois termos nunca são antitéticos. É o
convite a uma viagem que vai até ao fundo dessa fusão, utilizando uma
linguagem - como é a cinematográfica - cujo mais fundo sentido nunca foi
outro senão o de a dizer. E utilizando-a com o mais obstinado rigor. 2 - Assumindo as duas vertentes do passado, Trás-os-Montes é, por via disso e em toda a acepção da palavra, um filme de resistência.
Na medida em que desarruma o campo das certezas ou idéias feitas (quer
sobre o discurso que usa, quer sobre o que esse discurso nomeia) e na
medida em que nos faz descobrir as vertiginosas possibilidades da
liberdade mais cercada e mais frágil. Se a primeira acepção é talvez
acessível a muito poucos, a segunda invade de tal forma cada plano deste
filme que a sua evidência provoca abundantemente as reações de quem já
não pode ou não quer reconhecer os muros da prisão e a espantosa beleza
da incessante luta para os derrubar. Nesta medida, a ternura deste filme
é tão grande como a sua violência e é isso que muitos poucos suportam.
Para falar dos que não renunciaram e da sua solidão, António Reis e
Margarida Cordeiro inventaram o cinema da memória, da solidariedade e da
não-abdicação. De quanto pode ser dito sobre a nossa morte-vida, por quem dela vive e morre, este filme nos fala. Peço desculpa de não ter conseguido ser mais claro. Nota: |
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