SERGIO SOLLIMA DEPOIS DE REVOLVER
Dia a dia cresce o meu nome de artista, mas por vezes passo três dias sem comer, o que me destrói a saúde e a energia... Quero recuperá-la, e vou para o Panamá viver à selvagem. Distante a uma légua de mar, conheço uma pequena ilha (Taboga) no Pacífico; é quase desabitada, livre e fértil. Levo comigo as minhas cores e os meus pincéis, e vou revigorar-me longe de todos os homens.
— Paul Gauguin à mulher, antes de partir para o Pacífico
Più crudele è la guerra e l’uomo sa cos’è la guerra
Caldo e tenero è l’amore e l’uomo sa cos’è l’amore.
— Da canção dos irmãos De Angelis,
composta para a minissérie Sandokan e com letra de Sergio Sollima
Paris era o cinema. Havia filmes por todo o lado, nas salas normais, nas cinematecas, fora de portas, em sessões contínuas, reprises, estreias, filmes mudos, filmes proibidos, clássicos, modernos, filmes. “Lá fora” era o mundo – e o mundo era o cinema.
— Jorge Silva Melo, O século passado
We feasted on Butterfingers and saw scores of double bills together, as many crackly, old-time pictures as semifresh ones. We shrieked in terror at The Mummy’s Tomb (A tumba da múmia, Harold Young, 1942) and wept like babes over Of Mice and Men (Carícia fatal, Lewis Milestone, 1939) and sang along with the bouncing ball. We talked about the heart-numbing suspense of Foreign Correspondent (Correspondente estrangeiro, Alfred Hitchcock, 1940) for days, and debated whether Jimmy Cagney had turned yellow on his way to the chair in Angels with Dirty Faces (Anjos de cara suja, Michael Curtiz, 1938). During The Petrified Forest (A floresta petrificada, Archie Mayo, 1936), LaZell dozed off amid the general talkiness, and I fell swooningly in love with the young Bette Davis. The old man and I sat through Red River (Rio Vermelho, Howard Hawks, 1946-1948) three times running, and LaZell clapped his hands raw at the start of the cattle drive: “Take ‘em to Missouri, Matt!” he would whoop in my ear at odd moments ever afterward...
— Grover Lewis, Old Movies in My Mind
Papà! C’è qualche altra cosa... C’è quello che uno sogna.
— Massimo Ranieri, como Nicola, em I ragazzi di celluloide
– Io la sceneggiatura te l’ho pagata, i diritti di usarla son gli miei.
– Pensava fossero tue anche gli doveri.
— Diálogo perto do fim de I ragazzi di celluloide
Em Itália, nos anos 1950 e 1960, a televisão foi palco, campo e razão para várias experiências, revoluções e discussões, pelo menos por parte de Roberto Rossellini e Vittorio Cottafavi, que perceberam logo grande parte do seu potencial (e que infelizmente não se cumpriu). À televisão, Cottafavi associou as ideias de Brecht, no seu texto L’estetica brechtiana e la TV[1], de 1964, dizendo que “o meio da televisão, conseguindo milhões de espectadores ao mesmo tempo, parece dirigir-se individualmente a cada um deles chegando à sua casa com uma intimidade na comunicação que estabelece uma relação inédita de confiança e amizade. Pelo que parece claro que a relação espectador-espetáculo televisivo, embora permanecendo nos limites das variações psicológico-emotivas próprias ao meio (por agora, não se pode falar de linguagem), condiciona e determina as características do espetáculo.
“Brecht diz: ‘A menor unidade social não é o homem, mas dois homens. Até na vida nos construímos mutuamente.’ Na TV um dos dois homens está em vídeo, o outro numa poltrona, mas a unidade social existe porque um fala para o outro, que o ouve. E ouve-o com tamanha intensidade de relação pessoal que desse rosto faz um amigo, e ao o reconhecer na rua sente-se obrigado a cumprimentá-lo com um gesto incondicional e que nos revela a persistência hipnótica própria do meio da TV.” Rossellini, em conversa com André Bazin e Jean Renoir[2], que também foi um dos primeiros grandes entusiastas da televisão, disse que “a TV, de repente, oferece uma imensa liberdade. É preciso tirar proveito desta liberdade. O público da televisão é completamente diferente do público do cinema. O público do cinema tem a psicologia das massas. A televisão dirige-se a dez milhões de espectadores que são dez milhões de indivíduos, um a seguir ao outro. O discurso torna-se portanto infinitamente mais íntimo, infinitamente mais persuasivo. Tu sabes quantos insucessos tive na minha vida, na minha carreira cinematográfica; ora bem, apercebi-me de que os espetáculos que tinham fracassado por completo entre o público eram aqueles de que mais gostávamos no laboratório, na sala de projeção, quando só havia dez ou quinze pessoas. É uma mudança total. Aquilo que se vê numa pequena sala de projeção, com quinze pessoas, tem um significado diferente de quando se vê numa sala cinematográfica com duas mil pessoas”.
Sergio Sollima talvez não achasse nada disto, tanto por não ver diferença entre um e outro meio de expressão (o realizador quis adaptar Salgari para o cinema no final dos anos 1960 e chegou mesmo a trabalhar num argumento para um filme com Toshirō Mifune no papel de Sandokan) como também pela mudança que a televisão italiana sofreu na transição dos anos 1960 para os anos 1970 (depois do sucesso retumbante de séries como Odissea, Franco Rossi/Mario Bava/Piero Schivazappa, 1968, e Eneide, Franco Rossi, 1971-1972), mudança essa análoga à que acontece também em outros países, abandonando-se gradualmente o experimentalismo em prol das formatações, limitações, códigos e, finalmente, vícios que hoje associamos à televisão. O que não quer dizer que na R.A.I., nesses anos, não se arriscasse, nem que Sollima não tivesse encontrado um ótimo ambiente de trabalho para levar os seus projetos avante, porque encontrou, acabando por trabalhar majoritariamente na televisão depois de Sandokan e dizendo mesmo que “convenci as pessoas da R.A.I. que o roteiro tinha de voltar a ser feito da raiz. Nesses tempos, a R.A.I. ainda era um ambiente são, com produções importantes. Lembre-se de Pinóquio e suas aventuras (Le avventure di Pinocchio, Luigi Comencini, 1971-1972), com Nino Manfredi, e La vita di Leonardo da Vinci (Renato Castellani, 1971), com Philippe Leroy, e outras boas produções”[3]. Portanto, mal ouviu uma resposta positiva às suas condições para trabalhar no projeto (“atores asiáticos e realismo absoluto” e como já se viu, a reescrita do roteiro), meteu mãos à obra e rumou à Ásia em busca de locais para filmar o seu épico, pensando decerto no encanto mágico dessas ilhas do Sul de que fez o retrato num dos seus artigos para a revista Cinema, citando o O’Neill de Mourning Becomes Electra: “Tinham qualquer coisa de misterioso e belo: um espírito benévolo de amor que irradiava da terra e do mar.”[4] E é bem verdade que esse encanto, mistério, beleza e espíritos irradiantes passam por esta série de seis episódios, bastando pensar, por exemplo, nas danças e cerimônias em honra da dama Marianna, a “Pérola de Labuan” (interpretada pela belíssima Carole André, que já tinha trabalhado com Sollima em Quando os brutos se defrontam, onde dava vida à pobre rapariga que se apaixonava pela personagem de Tomas Milian, “Beauregard” Bennet), já no quinto episódio, em que as mulheres da ilha encenam os seus trabalhos do dia a dia e jovens apaixonados pulam por cima de varas que marcam o ritmo a que dançam, alternando as suas posições e trocando os pés com a maior das graças e das elegâncias. Ou nesses vários momentos poéticos em que Sollima interrompe a narrativa e põe personagens a fitar o horizonte ou descreve movimentos de exércitos ou batéis.
Sandokan, como se sabe, é uma personagem criada por Emilio Salgari, italiano perdido e afundado no próprio sucesso, que escrevia à velocidade relâmpago entre cigarros e copos de vinho para saldar dívidas e cumprir contratos redigidos por editores porcos e avarentos. Sem um vintém, só podia escrever, enquanto a própria vida privada se desmoronava e até a morte, a doença e o suicídio assolarem a família e lhe levarem mãe, mulher e pai em pouquíssimo tempo. Um dia, deixou três cartas em cima da mesa e partiu para as colinas do Vale San Martino, perto de Turim, onde desembainhou a sua espada e cometeu harakiri. Por isso na sua obra os juramentos de sangue e os códigos de honra não soam a falso. Mesmo não tendo visitado a Malásia, Salgari viveu a vida de um tigre e arranhou as folhas brancas que são o pesadelo de tantos escritores com uma pulsão de vida ou morte e que não se pode esquecer nem ignorar.
Sollima admirava muito a obra de Salgari e encontrou nela muito que lhe tocasse, dissesse respeito e rimasse com a sua própria obra, como a relação entre Sandokan e James Brooke[5], personagem que aparece só num livro de Salgari mas que Sollima ampliou para poder explorar e analisar mais uma vez o que aproxima duas pessoas de origens e contextos totalmente opostos, como fez em O dia da desforra, Quando os brutos se defrontam e Corre homem, corre, em que as personagens de Lee Van Cleef (Jonathan Corbett), William Berger (Charley Siringo) e Donal O’Brien (Nathaniel Cassidy), representantes da lei, se opunham às de Tomas Milian (Cuchillo e “Beauregard” Bennet), feitos bandidos pelas circunstâncias, e aprendiam com eles importantes lições, fazendo-os mesmo esquecer a lei e o dever. Olhe-se para a cena em que Brooke (interpretado por Adolfo Celi) pensa que Sandokan está morto e diz à personagem de Andrea Giordana que é como se uma parte dele tivesse morrido ou, claro, para a última vez em que o vemos na série, já no sexto episódio, e o rajá branco de Sarawak diz mesmo, fitando o horizonte, em confissão aos mares e aos ventos da Malásia, num desses momentos poéticos encenados por Sollima ao longo desta série, que se lhe perguntassem quem queria ser se não fosse James Brooke, talvez respondesse “Sandokan”. Para não falar das salvas militares à “Pérola de Labuan”, também perto do final do último episódio, e do “Buona notte, dolce principessa, che gli angeli ti conducano cantando il tuo riposo”[6] de Brooke, que em plena perseguição arrisca perder Sandokan, Yanez e os tigres de Mompracem (e perde mesmo) para desejar boa viagem à donzela no barco das almas que a leva para o Criador, em cerimônia sentida[7].
A admiração de Sollima pela obra de Salgari passa também pelo que ela tem de crítico em relação ao colonialismo e à Inglaterra vitoriana: “O conteúdo político e social de um filme do Sandokan entusiasmava-me, uma vez que envolve o amor entre uma dama colonial inglesa e um pirata malaio! Não se pode ser mais explosivo do que isso! Isto foi uma antecipação brilhante dos desenvolvimentos sociais modernos feita há 100 anos por Salgari.”[8] Sandokan, como Cuchillo, representa a alma e a coragem dos conquistados que se recusam a ser subjugados, sejam piratas malaios ou camponeses mexicanos ou operários italianos ou agricultores espanhóis, que lutam pela sua liberdade arriscando a vida num rugido que ecoa pelas ilhas, pelas dunas, pelos corredores e pelas searas do tempo e nos diz que isto ainda não acabou nem está perto de acabar. Por isso é que com Sandokan, um bando de dez homens é um exército e por isso é que Sandokan não pode ser morto sem que a sua coragem e ferocidade reavivem redobradas na alma de todos os malaios, como uma constelação mítica a velar por todos eles. Mas o amor do tigre malaio pela pérola inglesa é também desta senda, revertendo a habitual visita masculina às ilhas femininas do Sul e fazendo com que seja a dama inglesa a perceber que a sua civilização tem muitas limitações e culpas no cartório (coisa que parece perceber bastante cedo, quando se olha para a sua aparição no baile organizado pelo seu tio, no segundo episódio, e para as reações dos convidados ao que leva vestido) para finalmente se dar por inteiro a Mompracem e às luzes redentoras da paixão e da causa indígena, à “lua entre as árvores”, ao “bafo quente dos ventos alísios”, aos “tambores na noite” e às “danças sagradas dos indígenas”, para voltar a citar o texto de 1949 escrito por Sollima. E como nada disto se consuma sem sacrifícios muito grandes, depois dos muitos ataques dos homens de Sandokan para levarem a bela Marianna de Sarawak, das mãos de Brooke, é a vez desta suportar a aridez da praga de cólera trazida pelo rajá do Mali, tratando as crianças da ilha enquanto fazem arder cabanas e cadáveres como único remédio e salvação (talvez o mais impressionante dos freeze frames com que terminam os seis episódios da série – o quinto). Mas o amor deles é um amor dos ideais do romantismo[9] e, portanto, sempre com os dias contados, não fosse Salgari contemporâneo de Anton Bruckner, Gustav Mahler, Camilo Castelo Branco e – por que não? – Paul Gauguin. Pense-se mesmo em Mahler e em Bruckner e nessas frases musicais que não terminam e se aventuram loucamente por várias tonalidades sem nunca chegarem à segurança harmônica da cadência, preferindo mesmo a beleza dessas digressões belíssimas e desesperadas pelos jardins suspensos da harmonia, arriscando e dando tudo, como fazem os apaixonados das ilhas do Sul, interrompidos a cada investida dos ingleses contra os piratas da Malásia.
Sollima também prefere os desolados e os desvalidos, ou os mal-aventurados que se sentem em casa entre selvagens e bandidos, do tuberculoso Brett Fletcher de Quando os brutos se defrontam ao nobre português, Yanez, sempre com uma cigarrilha na boca (e brilhantemente interpretado pelo francês Philippe Leroy), em Sandokan e Sandokan, o tigre da Malásia, passando pelo solitário Bronson de Cidade violenta e o Oliver Reed desesperado de Os raptores em ação. E Sandokan, que continuamente sobrevive enquanto os que ama sucumbem às garras dos ingleses, é o maior dos desolados, porque deixa de ser homem e passa a ser lenda viva, herói sem recompensas terrenas, herói já só pelos outros e nunca por si. Heroísmo, afinal, não será sorte nem valor, mas sina[10]. Salta à memória o Santiago de Arthur Kennedy do belo filme de Edgar G. Ulmer que dá pelo nome de Madrugada da traição (The Naked Dawn, 1954-1955), quando diz, “Your house is too respectable for me, I’m more at home with the coyotes”, e se lança à noite fria, sempre mais perto de se tornar herói pelas circunstâncias, até ser já de manhã e um tiro nas costas o fazer ascender à montanha mítica do heroísmo e dessas alturas ver partir o casal que ensinou a amar-se mutuamente e vislumbrar finalmente as portas do paraíso. E por certas coisas (certas escolhas e soluções cênicas, certas perseguições e caças a animais selvagens, certas personagens e relações entre elas, certas situações, ambientes e paisagens exóticos), também se pode pensar em alguns dos filmes que Allan Dwan realizou para Benedict Bogeaus, nos anos 1950, como A sereia dos mares do Sul (Pearl of the South Pacific, 1955), Selvas indomáveis (Escape to Burma, 1955), Matar para viver (The River’s Edge, 1957) e O maior ódio de um homem (Enchanted Island, 1957-1958)[11], pequenas maravilhas em que a ação é bem talhada e definida, servindo de lição a quem a queira mostrar da forma mais lógica e pragmática possível, como tenta fazer Sergio Sollima em Sandokan. Também esses filmes evocam os fantasmas do colonialismo e, mais importante, compendiam todo o gênero de aventuras, de Karl May a Edgar Rice Burroughs, passando por Emilio Salgari, às vezes numa só sequência de planos, como a que mostra a Virginia Mayo de belas pernas a mergulhar na lagoa em busca de pérolas numa fluidez exemplar, em A sereia dos mares do Sul, ou o cerco dos soldados birmaneses a Robert Ryan, Barbara Stanwyck e David Farrar em Selvas indomáveis, fazendo ligar esses dramas e conflitos humanos ao nosso próprio desejo de aventuras, romances e lutas semelhantes: o nosso espírito de aventura[12]. O sonho em fascículos colecionáveis ou em celuloide. E só “mesmo os melhores filmes nos faziam querer ir viver neles”, como escreve Grover Lewis[13] em Old Movies in My Mind, crônica nostálgica e reveladora, sem dúvida, de como uma geração sentiu e viveu o cinema, muito próxima das tocantes lembranças de Jorge Silva Melo e, claro, dos belíssimos I ragazzi di celluloide de Sollima.
Foi decerto esse espírito de aventura que levou Sollima à Malásia em busca de cenários para o seu Sandokan, como foi esse espírito que arrancou Yanez da sua nobre comodidade e o levou ao coração da revolução malaia, para o lado de Sandokan e dos seus piratas. É ele o grande amigo e melhor conselheiro do tigre, âncora no grande oceano de incertezas e impulsos que muitas vezes levam o pobre malaio direto às mãos dos ingleses. É também mestre do disfarce e da retórica, amante de estratégia e do xadrez de intelectos, do “jogo pelo jogo”, como diz James Brooke quando o tem como refém na casa de Lord Guillonk e o tenta convencer a tornar-se seu tenente. Só que o grande fingidor que é Yanez pode fingir tudo, mas nunca a lealdade a Mompracem, para ele uma certeza inabalável desde que escolheu matar um capitão português, e não Sandokan, quando os tinha aos dois na mira de fogo. Fez a sua escolha, acabando no batel dos cinco sobreviventes de toda esta aventura, depois da travessia desenfreada pela ilha de Mompracem que colhe a vida à “Pérola de Labuan” – sequência de ação pura que dura quase todo o sexto episódio.
E ficam por contar a cena do anel que Sandokan põe inocentemente no dedo de Marianna, que lhe diz que no país dela isso tem um significado muito preciso; os chamamentos do órgão de Mompracem, conhecidos apenas pelo pirata e pela princesa; a música dos irmãos De Angelis, já indissociável da mítica personagem de Salgari; as cenas cômicas que envolvem Yanez e o talento e a presença de Philippe Leroy, ator de Jacques Becker, Nicholas Ray, Georges Franju e Luigi Comencini, antigo paraquedista na Indochina e, tal como Yanez, de ascendência aristocrática – membro da família Leroy de Beaulieu; ou os planos das caras em primeiro plano a ocupar metade do enquadramento e de que Sergio Sollima tanto gosta.
Com Sandokan, Sollima aproxima-se dos seus heróis e tenta inscrever-se na bela tradição dos pintores, escritores, músicos e realizadores que cantaram o Pacífico Sul. Bela ambição e belo resultado.
* * *
Depois de perder a sua ilha para Brooke, o tigre da Malásia exila-se no coração de Bengala, onde espera esquecer os tormentos e as perdas do passado, lutando. Em Sandokan, o tigre da Malásia, Sandokan descobre que Mompracem não é uma ilha, mas um continente, e o rugido dos insurretos chega onde quer que se tenham instalado a injustiça e os abusos dos ingleses. A grande perseguição com que começa o filme, os mecanismos da traição personificados na personagem do mercenário grego (tema caro a Sollima, que fala pela experiência no ativismo político e na Resistência durante o regime fascista de Benito Mussolini[14]), o embate de Sandokan com os soldados que vêm cobrar impostos a uma pequena aldeia indiana e a cena da armadilha nas montanhas montada por James Brooke reenviam-nos mais uma vez para o mundo da aventura e fazem justiça à série e ao gênero. E Sollima faz-lhe também justiça com o final lógico para as aventuras do tigre malaio: invertendo os papéis de Sandokan e James Brooke, bem como os seus percursos. Na série, Brooke era o invasor e conquistava a ilha de Mompracem, obrigando Sandokan a abandoná-la de batel e, no filme, é Sandokan quem a conquista definitivamente, expulsando Brooke que se resigna e diz que “ha perso Mompracem per sempre”, enquanto o tigre grita o seu nome aos sete ventos.
Sobre O corsário negro, feito um ano antes, dê-se a palavra a Sergio Sollima[15]:
Aproveitando o sucesso de Sandokan na televisão, quis fazer um filme d’O corsário negro para o cinema. Assinei um contrato com a Cineriz que, nessa altura (quando me juntei a eles), ainda tinha a reputação da Metro-Goldwyn-Mayer ou da Paramount. Se eu fizesse um trabalho para a Metro-Goldwyn-Mayer, esperava que tivessem pelo menos um escritório com cadeiras. Mas a Cineriz, nessa época, tinha que alugar um pequeno escritório – já estava em declínio, infelizmente, mas por razões absurdas, questões políticas complicadíssimas. Mas parti, finalmente, para fazer um filme com o Kabir Bedi de piratas e barcos, os quais se tinham que construir. Não era brincadeira nenhuma. Isto é, não se podia fingir, tinha mesmo que haver dinheiro. E começamos por alugar um pequeno escritório, porque eles não tinham escritórios. Foi tudo feito a pensar que tínhamos dinheiro, a pensar que ia ser um grande sucesso, mas à medida que avançávamos, faltava dinheiro, e ficava cada vez mais difícil de realizar.
Filmamos num lugar de uma beleza extraordinária. Em Cartagena, na Colômbia, que é uma cidade de piratas. Não “era”, “é” uma cidade de piratas. De tal maneira que permaneceu a mesma, com as fortalezas, a população variada, os mestiços... Havia um sítio lindíssimo em Cartagena, um restaurante/bordel não como os de Paris ou de Roma, mas como os dos espanhóis da época, feito de tal maneira que se compreendia como era a vida antigamente. Tínhamos uma equipe incrível. De manhã, era preciso ver quantos tinham sido presos na noite anterior, porque muitos eram presos. E um bocado piratas, também.
Os barcos foram construídos por um grande cenógrafo italiano, Sergio Canevari, que trabalhou em A batalha de Argel (La battaglia di Algeri/La bataille d’Alger, Gillo Pontecorvo, 1965-1966) e colaborou muito com Sergio Leone. E construiu-nos barcos lindíssimos... Um pequeno parêntese: os americanos nunca filmaram mesmo no mar. Capitão Blood (Captain Blood, Michael Curtiz, 1935), de que gostamos todos muito na infância, foi filmado inteiramente numa piscina. Talvez fossem para as praias da Califórnia filmar uma ou outra coisa, mas nunca foram para o mar. Garanto que é uma coisa completamente diferente. Nós naufragamos duas vezes. Aqueles grandes galeões, os barcos espanhóis, ou mesmo os dos corsários, eram lindíssimos, mas eram ocos por dentro. Não sei se fazem ideia das dimensões do mastro que carrega as velas de um galeão, mas é um verdadeiro arranha-céus e com velas pesadas. Mas por baixo, a madeira era muito fina. Disseram-nos que eram precisos dois rebocadores, um à frente e outro atrás. Quando filmamos a cena em que naufragamos só tínhamos um rebocador. Não tínhamos dinheiro e não penso que eles se estivessem a se divertir em não o mandar – ele simplesmente não existia.
Na época dos piratas, e para se defenderem deles, os espanhóis construíram um muro debaixo da água no porto magnífico de Cartagena. Baixo o suficiente para não se ver na superfície, mas alto o suficiente para que chegasse a atingir e fazer danos a um galeão que passasse por cima. Não sei se percebe a ideia... Portanto, debaixo da água havia uma passagem estreita que os pilotos dos rebocadores deviam conhecer, porque se fossem por um lado iam contra o muro, por outro também, mas se fossem pelo lado certo, passavam. Mas o nosso rebocador – bum –, foi direto ao muro. Parece uma piada, mas na altura foi uma coisa dramática. Felizmente, como o galeão era de madeira tão fina e leve – a qual se partiu, naturalmente –, foi amassado e caiu inclinado com as velas e foi o próprio muro a tapar o buraco, impedindo a entrada de água. Se não fosse isso, morriam as 30 a 40 pessoas que estavam lá dentro: costureiras, os profissionais que trabalhavam nas construções... Esta gente toda que estava lá embaixo e não viu nada, e só sentiu que o barco se tinha inclinado. E isto tudo para poupar um rebocador.
Foi uma verdadeira catástrofe. Estávamos em plena rodagem... Aquilo foi um golpe mortal para a produção, que já não precisava disso para estar por sua conta e risco, mas era preciso construir o barco. Reconstruir o barco. Não é que fosse um montante extraordinário, que arranjavam-se bons profissionais a um preço justo, mas era preciso reconstruí-lo. E isso alterou todo o plano de rodagens. Por exemplo, havia um ator importante que nós tínhamos além do Kabir, o Mel Ferrer. Já não era o Mel Ferrer de antigamente, mas era uma estrela, uma das estrelas mais importantes de Hollywood. Era preciso mudar-lhe o contrato e aumentar o período de contratação, porque o barco só estaria pronto em um mês ou mês e meio e ele tinha que filmar cenas no galeão. E o contrato do Mel Ferrer era o mais caro, mas depois havia muitos outros. Portanto, foi preciso prolongar as rodagens. E quem é que sofre as consequências disso tudo? O metteur en scène. Porque não se pode filmar, não é como se fossem duas pessoas a falar, quando se filma um ataque é preciso muita gente, trabalho de dublês, um tempo diferente e um custo diferente.
Tive que começar a fazer cortes. Não na montagem, o que é sempre bom para o cinema (quanto mais se corta, melhor é o filme), mas fazer cortes no tempo de rodagem. Não pude fazer coisas que precisava fazer. Talvez tenha cometido o erro de acreditar que ia fazer outro Sandokan, só que Sandokan era em episódios, tinha seis horas e toda uma outra dimensão. Quando eu fiz Sandokan, fiz muitos cortes, mas tive que voltar a pôr coisas que tinha tirado porque contratualmente ele tinha que ter seis horas. Eu fiz uma montagem para o cinema e não para a televisão, com um certo ritmo. Mas ficou muito curto, em termos contratuais. Portanto, Sandokan era mais longo e além disso agradou a muita gente, mas tinha lá coisas que eu tinha cortado. Com O corsário negro aconteceu o contrário, porque eu tinha a ideia de um filme de duas horas ou duas horas e meia, a duração normal desse gênero de filmes, mas não se pôde fazê-lo. Cortar no argumento já era difícil, não poder filmar algumas cenas... O absurdo é que o filme tinha que ser lançado na Itália pelo Natal e eu depois da rodagem ainda tinha que trabalhar na montagem, que dura mais ou menos o mesmo tempo que a rodagem – uns meses. O filme tinha que sair em dezembro e eu, em novembro, ainda estava em Cartagena. São essas pequenas coisas que o público ignora. Paga e – como é que se diz? – s’en fiche, não quer saber, quer ver o filme terminado. Mas eu é que tenho de terminá-lo.
Eu sei que O corsário negro é um filme meu pela metade ou a três quartos, o outro quarto foi filmado de maneira diferente da que eu tinha planejado. Eu filmei Sandokan muito bem, de forma tranquila. Muito tranquila. Nessa altura, a R.A.I. era uma companhia importante e Sandokan não foi muito caro, só que o metteur en scène – o autor – teve tempo de desenvolvê-lo – não me posso queixar de nada. Se é bom ou mau, é outra história. Por sua vez, O corsário negro tem belas cenas, mas foram cortadas muitas outras coisas, faltam-lhe cenas de ligação. Há toda uma parte, mesmo ao princípio d’O corsário negro, que foi cortada e era muito bonita, que mostrava como morriam os irmãos do corsário negro. Toda a situação da sua morte dava-lhe uma outra dimensão. Foi muito aparado, muito aparado.
Aqui, eram todos corsários. O corsário negro era um corsário e o Kabir Bedi esteve bem, na minha opinião. Aprendeu esgrima, foi muito profissional. Era muito elegante, mais elegante que Sandokan. Sandokan era uma personagem fabulosa, selvagem, nova, mesmo para o público. O corsário era mais convencional, de certo modo.
Havia uma desorganização incrível, o dinheiro começava a faltar de forma muito séria. Estávamos a filmar em Cartagena e era preciso pagar a equipe todas as semanas e já tinha dito que na equipe havia descendentes de piratas, descendentes de piratas de outros tempos, não eram figurantes da Cinecittà ou de Joinville, era gente com quem era preciso ter cuidado. O produtor estava à espera do dinheiro e tinham enviado o dinheiro de Roma para Cartagena, mas em Espanha, que há uma Cartagena em Espanha e uma Cartagena na Colômbia. É verdadeiramente impensável, como é que eu explico estas coisas? Se conto isto a alguém, desconfiam, pensam que é inventado, mas é tudo verdade. O dinheiro chegava com semanas de atraso, aconteceu de tudo.
O corsário negro é um filme que tem muitas coisas boas, mas não está completo. Não está completo. Eu tive que fazer a montagem de um filme de duas horas e meia em 15 dias, que é o tempo de montagem para curtas-metragens ou de spots publicitários. Tive que fazer assim, mas nem estava terminado, faltavam cenas e o final todo, por exemplo, que vem de outro livro, a história de Honorata. A jovem protagonista interpretada por Carole André, que na altura estava grávida... Aconteceu de tudo, naufragamos duas vezes, quase morremos, veio um tufão – felizmente, não estávamos no mar. Aconteceu de tudo. Aqueles que nos enviavam o dinheiro mandaram-no para outro sítio, aconteceu de tudo. Não digo isto para me desculpar, mas faz parte da história do filme, percebe?
A minha culpa está na dimensão que imaginei e que era mais próxima da de Sandokan, um filme em episódios. Se fizesse O corsário negro para a R.A.I. (para a televisão) era um grande sucesso.
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I ragazzi di celluloide foi feito para a R.A.I. em episódios e é uma das obras preferidas de Sollima, retratando os seus dias no Centro sperimentale di cinematografia[16] na personagem de Nicola, interpretada por Massimo Ranieri, alter-ego do realizador. A Fabio Zanello, em 2004[17] e sobre I ragazzi, Sollima disse, “Tem que ver! Porque é uma história vagamente autobiográfica, ligada à minha geração. Um pedaço da história da Itália! As séries deviam ter sido três: da Segunda Guerra Mundial aos dias de hoje. Durante o fascismo os jovens apaixonavam-se pelo cinema para escapar àquele manto asfixiante de imbecilidade. Os acontecimentos remontam a 1941. O cinema era um sonho para nós. No elenco estavam Massimo Ranieri que se junta à Resistência e se apaixona pela Roberta Paladini, Alfredo Pea, que na ficção gosta de homens e não de mulheres, Massimo De Rossi no papel de um aluno muito talentoso, e o meu adorado William Berger, já usado em Quando os brutos se defrontam, na pele de um professor comunista. Depois havia Leo Gullotta que faz de judeu e é ótimo como sempre. A primeira série agradou muito, foi à Mostra de Veneza e depois a Nice. Passou um ano e exibiram a segunda série em Ferragosto. Foi Kezich quem me fez o melhor elogio ao trabalho: ‘De agora em diante já não vais ser conhecido como o homem que fez Sandokan, mas sim como o homem que fez I ragazzi di celluloide’”.
Ragazzi começa muito apropriadamente com uma sequência de planos dos filmes com que Nicola sonha, depois dos créditos em fundo azul com o belíssimo tema principal composto por Giorgio Gaslini e que nos reenvia imediatamente para essa saudosa idade por que todos passamos e em que achávamos ser tudo possível. “The age of miracles”, como lhe chama Barbara Stanwyck quando ouve Marilyn Monroe dizer-lhe que tem 20 anos em Só a mulher peca (Clash by Night, Fritz Lang, 1952). Nicola sonha com King Kong (Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, 1932-1933), Aconteceu naquela noite (It Happened One Night, Frank Capra, 1934) e Do mundo nada se leva (You Can’t Take It with You, Frank Capra, 1938), Jornadas heroicas (The Plainsman, Cecil B. DeMille, 1936), A carga da brigada ligeira (The Charge of the Light Brigade, Michael Curtiz, 1936), Tarzan, o filho das selvas (Tarzan the Ape Man, W. S. Van Dyke, 1932) e O picolino (Top Hat, Mark Sandrich, 1935), aparecendo com Gary Cooper, Claudette Colbert, James Stewart, Jean Arthur, Errol Flynn, Fred Astaire e Ginger Rogers entre tiroteios e danças, por entre fumos de pólvora e das máquinas dos estúdios e pelos cenários dos musicais de Hollywood. Sonha também em entrar no Centro sperimentale, junto com o amigo Piero (interpretado por Alfredo Pea), comparsa das centenas e centenas de sessões de filmes americanos e aspirante a figurinista, com quem fala “della Garbo” e “della Davis” e com quem vê No tempo das diligências (Stagecoach, John Ford, 1939) três vezes nesses cinemas de bairro, “numa sala plena de vida, de homens transpirados que mandavam bocas para os heróis do filme (‘olha o gajo!’, ‘prega-lhe mas é um beijo!’), numa cópia riscada, que a meio se calhar se partiu, e numa projeção pela certa desfocada”, como escreveu Jorge Silva Melo a propósito de Matar para viver de Dwan[18]. Havia de gostar muito de Ragazzi di celluloide, Jorge Silva Melo. Com a ajuda de Luca (Massimo De Rossi), Nicola e Piero entram no Centro, onde conhecem Teresa (Roberta Paladini), Leopoldo (Leo Gullotta) e o professor Nicodi (William Berger) e formam o núcleo de personagens que vão viver o cinema, mas também os terríveis dias do fascismo e da guerra, testar lealdades, prioridades e fibras humanas todos os dias. Como logo nas primeiras e muito conhecidas palavras de A Tale of Two Cities de Dickens, “It was the best of times, it was the worst of times.” Mas se o cinema serviu, nas palavras de Sollima, “para escapar àquele manto de imbecilidade”, serviu também para o pôr em perspectiva. Como quando Nicola, logo após saber que a amada Teresa foi apanhada pela polícia, encontra Nicodi e juntos veem A grande ilusão (La grande illusion, Jean Renoir, 1937), no momento em que os prisioneiros de guerra do filme começam a cantar La Marseillaise, olha para o professor e espera que este olhe de volta para lhe dizer o “Bisogno fare qualcosa” que encerra a primeira série de Ragazzi e do qual é impossível duvidar; nunca quando o único som é o do hino francês a ecoar pelas paredes dessa sala da Cineteca (o “piccolo regno, ma così grande” de Nicodi, como diz Nicola no final da segunda série) e sentimos que para aqueles rapazes que olharam a guerra nos olhos e sentiram na pele as abalroadas do regime, acabou a idade da inocência.
Na série, Sollima fala disso tudo enquadrando-o no seu contexto histórico, usando imagens de época para construir grandes sequências didáticas, como faz também no seu livro Il cinema in U.S.A. de 1947, em que antes dos capítulos da primeira parte descreve minuciosamente os mecanismos políticos, sociais, econômicos e culturais que tudo e todos condicionam, como as guerras de patentes na virada do século, a ressaca da guerra civil ou o início da grande depressão nos anos 1930. Em Ragazzi, veem-se fotografias da guerra, de grandes marchas fascistas, do “Duce” em campanha, das revistas do Centro sperimentale, a Bianco e Nero e a Cinema, de Alida Valli a cantar Ma l’amore no – canção famosíssima e importantíssima na Itália dos anos 1940 –, do final da guerra, do início da mobilização comunista e da chegada das forças aliadas a Roma. É neste espírito de mudança e de restabelecimento da ordem que Piero diz a Nicola, “Nicolino, quanto può essere bella la vita quando è futile”, quando veem ambos Quero casar-me contigo (Sun Valley Serenade, H. Bruce Humberstone, 1941) e toca Glenn Miller[19] (com John Payne e a banda de Miller) – norte-americano importantíssimo para essa geração que viveu a guerra e o pós-guerra. É ainda nesse espírito que Sollima constrói uma bela sequência, no segundo episódio da segunda série de Ragazzi, em que aumenta e aumenta a euforia da liberdade, nos rodopios à volta da mesa e em que escorrega champanhe da garrafa e os seios de Lea (Michela Miti) espreitam pela camisa, fazendo dobrar e redobrar a velocidade dos rodopios e da euforia até cortar subitamente para a festa na casa de campo de Nicodi, em que se dança ao som de Miller e a energia contagiante de In the Mood ganha par na energia que Sollima imprime à montagem e permite também aos seus atores. E os atores em Ragazzi são tão capazes da maior contenção como da maior emoção, sendo bom exemplo disso, mas também da consciência de Sollima em relação a isso, uma cena logo no primeiro episódio da primeira série, em que Teresa faz uma prova de interpretação para entrar no Centro e Sollima nos faz perceber (ainda que seja com um simples jogo de escalas de planos) o seu talento e como é superior aos colegas que a antecederam. Não muito diferente do que faz, por exemplo, mas por outros meios, Clint Eastwood em Jersey Boys – Em busca da música (Jersey Boys, 2013-2014), quando Bob Gaudio ouve a voz de Frankie Valli pela primeira vez e se percebe a real medida do talento do vocalista dos The Four Seasons. Impressiona, também, a explosão de Nicola na casa dos pais, quando lhes diz que vai viver com Teresa e deixa sair o que sente em relação à sua vida e às suas aspirações e remata dizendo que não as pode conter mais quando os pais se fecham na sala e não lhe respondem a absolutamente nada, transparecendo tanto a raiva como o amor que Nicola sente pelos seus pais na interpretação de Massimo Ranieri, enquadrado com a porta fechada. Amor porque são os pais dele e raiva porque defendem e respeitam um regime político que o põe completamente doente e que só consegue esquecer indo regularmente ao cinema. Sentimento próximo do que o aproxima e repele de Luca, técnico exímio mas que assente com a mediocridade e a deixa encher cada plano que filma, achando que a tem controlada e pensando em tudo como um desafio formal que o permite falar “sotterraneamente”, julga ele, mas acabando seduzido pelos doces perfumes da banalidade. Interessa muito a Sollima saber exatamente como se maquinam estes assentimentos e estas seduções e, portanto, as cenas de filmagens, de rushes ou de mera discussão de ideias são sempre muitíssimo reveladoras.
A segunda série de Ragazzi começa no preciso momento em que Nicola e Piero voltam da frente de batalha e querem dar os primeiros passos na traiçoeira indústria do cinema. Teresa é libertada pouco antes de acabar a guerra, reencontrando Nicola numa bela sequência de campos e contracampos e que vão pontuar todos os seus encontros e todas as suas despedidas, com a música de Gaslini que acompanhava os créditos dos três episódios da primeira série a servir sempre de banda sonora. A relação deles muda com o fim da guerra, mas já quando ela pairava por Roma e pelo mundo as prioridades dos dois pareciam afastá-los um do outro: Nicola na direção do cinema, Teresa na da luta política e armada contra o regime de Benito Mussolini. Muitas vezes ela o tinha repreendido por se desligar do mundo e do que se passava nele, usando o cinema como refúgio, e muitas vezes ele dizia a ela que não lhe via sentimentos mas uma ideologia fria e calculista. Separam-se por causa do cinema, que Nicola não quer deixar, e voltam-se a encontrar também por causa dele, quando Teresa vira heroína da Resistência no Norte da Itália e querem fazer um filme sobre as suas façanhas, com “Laura” (nome de batalha de Teresa) interpretando a si mesma. É o grupo habitual que fica responsável por realizá-lo: Nicola é o argumentista, Piero é cenógrafo, Luca o realizador e Leopoldo um dos atores, acabando o papel de “Laura” nas mãos de Lea, rapariga ambiciosa e com vontade incontrolável de ser estrela, quando Teresa recusa interpretar-se a si própria mas diz poder continuar a servir como conselheira técnica. O resultado é frustrante, porque tal como no projeto anterior de Luca, foi-se cortando ali e aparando aqui com justificações estéticas, mas o âmago e o móbil do projeto perderam-se pelo caminho. Perdeu-se também o grito de revolta de Nicola e o que este sentiu, por exemplo, ao ver Obsessão (Ossessione, Luchino Visconti, 1942-1943) ou o Roma, cidade aberta (Roma città aperta, 1945) de Roberto Rossellini, que é também personagem na série (tal como Federico Fellini), e que o outro filme que escreveu também podia ter: frescura, vigor, força. Compraram-lhe o roteiro e ensinaram-lhe que quem compra os direitos normalmente quer ficar sem os deveres, e finalmente que é preciso recusar fazer certas coisas e ir beber uns copos com os amigos para falar de cinema e rir na frente do falhanço e da tristeza, imaginar que motivos, razões, que histórias e mistérios escondem os passos anônimos e apressados que ecoam na calçada e nas paredes das ruas de Roma. E, quando se achava impossível estar a vida à altura das grandes cenas romanceadas do cinema, os passos transformam-se primeiro em sombras e depois na Teresa de tantas despedidas, sem palavras, reunida ao antigo grupo que sempre sonhou estar ao lado das grandes estrelas de Hollywood, e agora pode dizer que viveu e sofreu o suficiente para merecer uma cena saída de um grande filme, enquanto a cara de Teresa enche o ecrã com um sorriso que faz antever um grande recomeço para ela e para Nicola, num freeze frame enternecedor ao som da música nostálgica desta nostálgica série. Nicola sempre se queixou que a vida não fazia jus aos grandes filmes (ou pelo menos aos “nossos” filmes), mas aprendeu que não há filme nenhum que supere esses pequenos momentos urdidos pelo destino e que nos chegam para uma vida inteira, recordados entre lágrimas e sorrisos.
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Depois de Ragazzi, Sollima fez Uomo contro uomo, uma crônica policial e familiar filmada na Calábria em que uma mulher e o irmão se voltam a encontrar numa teia de crimes e violência, em lados opostos da lei, sem que o amor que sentem um pelo outro definhe, como mostra a cena final – um flashback de uma corrida inocente de crianças em tempos mais simples e ainda não invadidos pelos massacres do destino; Passi d’amore, minissérie aparentemente sobre uma bailarina profissional chamada Elisa (ouvir-se-á aqui também o Für Elise?) que quer continuar a carreira mas tem que lidar com uma gravidez inesperada; Solo per dirti addio, outra minissérie pouco acessível que parece girar à volta de um aparente suicídio de um jovem, investigado pela mãe que é a única a não querer acreditar e vai em busca da verdade; Berlin ’39 – Sexo, poder e traição reúne John Savage e Burt Young a dois velhos e fiéis colaboradores de Sollima, William Berger e Philippe Leroy, às vésperas da Segunda Guerra Mundial numa guerra interna na capital alemã, que cai em abusos decadentes nos bordéis da cidade. É muito apropriadamente de lá que se assiste a tudo isto e é também lá que tudo acaba e se decide, como de resto foi sempre em bordéis e ao longo da história que se disputou e resolveu tudo, na sombra dos acontecimentos oficiais; Il figlio di Sandokan foi a última obra de Sollima. Ainda não viu a luz do dia e narraria a chegada de um filho perdido em busca de vingança mas que em vez disso se deixava encantar pelas mágicas paisagens do Pacífico.
Em plena rodagem de Il figlio[20] Sollima disse que “Agora todos viajam com Francorosso[21] e não podíamos nos limitar a mostrar um exotismo de bancada. Sem perder de vista a narração do espetáculo, a Índia que eu procuro é a espiritual, onde convivem o bem e o mal. Aqui é tudo maior, a coragem, a covardia. E isto ajuda-nos a escapar do nosso mundo de dois quartos e cozinha.” Pode ser que um dia se possam ver estas séries e minisséries perdidas nos cofres da R.A.I.
Entretanto: mille grazie, Sergio Sollima.
“And flights of angels sing thee to thy rest”.
Notas:
[1] Texto publicado em abril de 1964 no número inaugural da revista Televisione e republicado pela Cineteca di Bologna, em 2010, no catálogo Ai poeti non si spara – Vittorio Cottafavi tra cinema e televisione, organizado por Adriano Aprà, Giulio Bursi e Simone Starace.
[2] “Cinéma et télévision: Un entretien d’André Bazin avec Jean Renoir et Roberto Rossellini”, France-Observateur nº 442 (4 de julho de 1958), pp. 16-18. Republicado e traduzido para italiano em Roberto Rossellini – Il mio metodo: scritti e interviste (catálogo organizado também por Adriano Aprà) e outra vez republicado, mas traduzido para o português, em Roberto Rossellini e o Cinema Revelador (catálogo editado pela Cinemateca Portuguesa e com organização literária a cargo de Luís Miguel Oliveira e Neva Cerantola).
[3] Em entrevista a Mario Marsili, que apesar de estranhíssima, em certos momentos tem intervenções preciosas de Sergio Sollima.
[4] “Isole del Sud”, Cinema nº 165 (10 de maio de 1943), pp. 265-267.
[5] James Brooke não é só uma personagem de ficção, foi mesmo o terror dos piratas durante o século XIX, primeiro como governador e depois como primeiro rajá branco de Sarawak.
[6] A frase é de Shakespeare e vem da segunda cena do quinto ato de Hamlet: “Good night, sweet prince, and flights of angels sing thee to thy rest.” E não é a única vez que Sollima cita Hamlet. Em Sandokan, o tigre da Malásia, também é Brooke que cita diretamente da quinta cena do primeiro ato, depois de alguém se admirar por ele falar de Sandokan como se de um amigo se tratasse: “There are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy”.
[7] Mais sentida e tocante sabendo que a mulher de Sollima, Maria Pia Cohen, morreu durante a rodagem da série, com apenas 36 anos.
[8] Da mesma entrevista de Mario Marsili.
[9] Ideais a que Sollima também não será estranho nenhum, bastando pensar no uso quase obsessivo da Bagatela para piano nº 25 em Lá Menor – mais conhecida por Für Elise – de Ludwig van Beethoven (precursor incontestável do romantismo na música) em vários dos seus filmes.
[10] Sollima sabia muito bem que apesar dos westerns e dos filmes de piratas serem muitas vezes confundidos por brincadeiras fúteis e inofensivas (e alguns não passariam disso), eram também belíssimas oportunidades para arriscar dizer coisas sobre a coragem e sobre o que se passa no interior dos homens quando enfrentam o perigo e aquilo de que têm mais medo.
[11] Também se podiam lembrar dois belos filmes de Edward Ludwig, No rastro da bruxa vermelha (Wake of the Red Witch, 1948), com John Wayne e Gail Russell, e O tesouro perdido do Amazonas (Jivaro, 1953-1954), com Rhonda Fleming e Fernando Lamas. Ou Jacques Tourneur e o seu Almas selvagens (Appointment in Honduras, 1953).
[12] Podemos citar Sergio Sollima: “força, coragem, generosidade e, sobretudo, um indefinível e sugestivo sentido de aventura” (Il cinema in U.S.A., p. 131), Chris Fujiwara sobre Paixão selvagem (Canyon Passage, Jacques Tourneur, 1945-1946; “caráter e destino”) ou Felipe Medeiros sobre A viúva alegre (The Merry Widow, Ernst Lubitsch, 1934; “paixão e coragem”).
[13] Uma nota para Grover Lewis, norte-americano nascido em 8 de novembro de 1934 e que, nos plateaux de A última sessão de cinema (The Last Picture Show, Peter Bogdanovich, 1970-1971), Os implacáveis (The Getaway, Sam Peckinpah, 1972), Cidade das ilusões (Fat City, John Huston, 1972), Os amigos de Eddie Coyle (The Friends of Eddie Coyle, Peter Yates, 1973), Golpe de mestre (The Sting, George Roy Hill, 1973) e Um estranho no ninho (One Flew Over the Cuckoo’s Nest, Miloš Forman, 1975), documentou uma época e pintou belos retratos de grandes vultos do cinema, como Robert Mitchum, Sam Peckinpah, Robert Redford e Paul Newman mas também desses atores generosos sem os quais filme algum se faria e aos quais chamam character actors, como Roy Jenson, Slim Pickens, Peter Boyle e Scatman Crothers, e que ganham vida com a escrita apaixonada de Lewis; bem como um lindíssimo retrato do escritor e amigo Gustav Hasford, mais conhecido por ter escrito The Short-Timers, o livro que inspirou Nascido para matar (Full Metal Jacket, Stanley Kubrick, 1985-1987).
[14] A Mario Marsili, Sollima confessou que “quando tinha 21 anos, durante o regime fascista, tinha uma jovem namorada em Roma. Parecia muito simples, pura, mas foi ela que traiu a mim e aos meus colegas, todos ativistas políticos clandestinos contra o regime de Mussolini. Foram todos presos. A polícia política revistou a casa dos meus pais. Eu fugi, para a clandestinidade. Um dos meus amigos foi torturado e morreu. Este acontecimento mudou a minha percepção da vida para sempre. É uma motivação escondida para ter feito Quando os brutos se defrontam”.
[15] De uma entrevista filmada e que faz parte dos extras da edição francesa em DVD de O corsário negro. Quanto ao filme em si, está de fato incompleto, como confessa Sollima, mas tem ainda assim belas ideias, como a imagem recorrente dos fantasmas dos irmãos do corsário negro e que aparecem ao lado dele perto do fim do filme, quando este está prestes a matar a personagem de Mel Ferrer (que tinha matado os irmãos no início), e o matarem juntos. Serviu também, mais uma vez, para aproximar Sollima da Hollywood de outrora e que tanto amava, tanto ao trabalhar com Mel Ferrer como ao tentar fazer um swashbuckler, depois dos westerns, dos policiais e do filme de aventuras.
[16] O Centro sperimentale di cinematografia foi fundado oficialmente em 13 de abril de 1935, após Alessandro Blasetti ter estabelecido as bases de uma escola que formasse profissionais de cinema, no início dos anos 1930, e de ter dirigido um curso de interpretação em que os alunos visitavam hospitais e asilos de loucos e viam pessoas em situações extremas de forma a praticarem um estilo de interpretação estritamente realista. Achando isso insuficiente, a recém-formada Direzione generale per la cinematografia funda então o Centro sperimentale, deixando-o nas mãos de Luigi Chiarini (o modelo para a personagem interpretada por Pietro Biondi em Ragazzi), que manda construir um novo edifício e que junto a Umberto Barbaro (a base para a personagem interpretada por William Berger) forma vários cineastas e atores italianos, como Michelangelo Antonioni ou Alida Valli, além do próprio Sollima. É este o período retratado nas duas séries de I ragazzi di celluloide. Entre 1968 e 1974, é Roberto Rossellini quem dirige o Centro.
[17] “La regia come match di boxe – Intervista a Sergio Sollima”, 4 de agosto de 2004.
[18] “Allan Dwan: Matar para viver. Culturalmente incorrecto”, Público, 15 de março de 1995. Republicado em O século passado (Cotovia, 2007).
[19] Alton Glenn Miller nasceu em 1 de março de 1904 no Iowa e foi um dos símbolos maiores da era das big bands, gravando e compondo grandes sucessos como In the Mood, Moonlight Serenade e Moonlight Cocktail (que aparecem todos em Ragazzi). Em 1942, Miller quis se juntar ao exército e voluntariou-se também para entrar na marinha, mas recusaram-no por ter 38 anos e não precisarem dos seus serviços, acabando por conseguir, no entanto, que o exército o aceitasse como líder de uma banda militar (a Army Air Force Band) que animaria as tropas e o povo americano nos anos seguintes. Pela música e pela morte prematura, sem ter ainda acabado a Segunda Guerra Mundial, fica sempre associado ao war effort e aos valores e à força que tentava dar ao povo americano e às forças aliadas, cruzando mesmo as fronteiras europeias. “America means freedom and there’s no expression of freedom quite so sincere as music”, disse ele uma vez. Em 1954, Anthony Mann fez Música e lágrimas (The Glenn Miller Story, 1953-1954), um belo filme com James Stewart no papel de Miller.
[20] “Sandokan perde Salgari ma trova un figlio”, reportagem de Paolo Calcagno para o Corriere della Sera, publicada em 18 de outubro de 1998.
[21] Agência de viagens italiana. |
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