CORRE, CUCHILLO, CORRE!
por Mário Fernandes



Não vivo para ser realizador, realizo para poder viver.
— Sergio Sollima

Contare i soldi per le sigarette, per il cinema (...)
Ti ricordi quando giocavamo al principe e alla principessa? E quando andavamo al cinema insieme? A te piaceva Greta Garbo e a me Tom Mix
(...)
Uniche evasione: la casa di tolleranza e il cinematografo.

Gli uccisori, 1949, peça de teatro de Sollima

Eisenstein? Não conheço. Fez algum filme com a Greta Garbo?
I ragazzi di celluloide

Ando demasiado ocupado a matar gajos para acreditar em Deus.
— Sergio Sollima

Until the 50th bottle of beer, no problems. Oliver Reed, in my Revolver, was worse than Cleef.
He drank 50 bottles of a mix of beer, wine, whisky and rhum. He died in a pub, like Molière died in a theatre.

— Sergio Sollima

Sem rei nem roque, universal, corria /
Com a vida gelada nos seus braços! /
E varria, numa alada alegria, /
A poeira da terra e dos espaços!
— Miguel Torga


O western rasgou o uniforme limpo da cavalaria e pôs-se em trajes de pícaro. É o western ralé, western de andar às côdeas, western terceiro-mundista, western das distritais... É o western de quatro ou cinco versões mal dubladas, andrajoso, de tuta-e-meia, western que arrota água-ardente de cabrão para uma assistência de rapa-tachos, estoira-vergas, pinga-farrapos, tabernosos e putas escarradas[1].

O filosofismo ainda não tinha matado a razão de ser do cinema e os críticos ainda não eram réplicas em contraplacado do “pensador” de Rodin. A universalidade de um cinema a preço popular ainda não tinha sido reduzida à universidade com o index em dia. As coboiadas eram para gajos de algibeiras esburacadas, não havia cinema de colarinho branco, flor de estufa, ronronar de Brenez na Sorbonne, gato-maltês na Gulbenkian (é de sapo cheio!), dissertações que nem o mesmíssimo Jó lê[2], criançada macrobiótica de fraldil, marafonas tontas padejando as ancas em Vila do Conde[3], fidalguia de Investigadores em Imagem e Pensaminto, chuchadeira de Harvard, méeeestres[4] a escorrer do chambaril, santos de altar com prisão de ventre merdecetera merdecetera. As zonas não estavam reservadas a Tarkovskis, à esnobaria de que o vulgo não tem o senso do sublime para entender as preocupações cósmico-transcendentes, os Malicks para baixar cuecas de universitárias aplicadas na palha... de palitar os dentes. O grande movimento acadêmico que transformou cinemas em bancos e agências funerárias ainda não educara os primitivos selvagens com ensaboadelas de água-de-colônia e finura estética. Como na “entrevista” a Siringo, o currículo de um gajo vivo media-se pelo número de escalpes e pelas avultadas recompensas nos cartazes “wanted”, as referências eram os tipos que furaste na vida, os narizes partidos, as vezes que sangraste da boca. Não se era crítico por assiduidade às aulas de semiótica[5], após cuidada análise à urina.




Não admira, pois, que o aroma bravio de Sergio Sollima, tido por muitos como um filho menor de Leone (o Papa Spaghetti), continue a ser desdenhado pelos perfumistas cinéfilos, estando habitualmente ausente nos congressos dos palermas culturais da comunicação quando conferenciam sobre “western spaghetti” ou “western chanfana”.

Vindo essencialmente do teatro[6], Sergio Sollima apareceu no cinema sem familiares no Santo Ofício (coisa rara). Simpatizando pelos estratos mais baixos e pela “frescura primitiva dos westerns”, não é desses realizadores que vai para o plateau cobrar honorários, assalariar técnicos, cuidar da reputação, defender estatuto artístico, parecer profissional, apelar à caridade através de peditórios on-line para curtinhas românticas ou inventar esquemas para caçar prêmios (“iluminados pela publicidade todos os filmes são belos”). Nada de “poesia pura”, “decupagem exemplar” e outros produtos de farmácia, mas um entranhado prosaico e alegórico, realista e abstrato, cinema de homens simples e complexos cavalgando nos buracos da História, mundo de perseguidores e perseguidos como diz Cuchillo. Vejam logo “a abrir” a estonteante fuga-automóvel de Cidade violenta, uma das melhores da história do cinema com Charles Bronson (“Mr. Charm”) ao volante, a corrida desenfreada de Sandokan perseguido pelos ingleses (sexto episódio de Sandokan), ou as sucessivas corridas (e “correr” em calão espanhol é também furtar) de Cuchillo (por exemplo, quando agarra nas calças de Viladiogo para escapar aos cães de caça de Brokston[7]). A diabólica música de Morricone Run Man Run, que explode em O dia da desforra e rima com o último filme da trilogia western de Sollima – Corre homem, corre –, é clara nesse sentido: “Run man, run man, run. / Running like a hare, like deer, like rabbit, / Danger in the air, coming near, you can feel it”.

As coboiadas de Sollima, com alguns momentos de “western slapstick”, são atadas a um rabo de cavalo picado e o movimento de corrida do cinema burlesco não deixa de se fazer sentir (não os parvos alegres Franchi e Ingrassia, contemporâneos de Sollima, em paródias tontas como Os dois sargentos do general Custer [I due sergenti del generale Custer/Two Idiots at Fort Alamo, Giorgio Simonelli, 1965]). Quando vejo Cuchillo a correr Ceca e Meca, papando éguas e léguas em peripécias picarescas, lembro-me de Chaplin (cena de caça ao preso que se evade em Carlitos presidiário [The Adventurer, 1917]), Keaton (as “incompetências” em Vaqueiro avacalhado [Go West, 1925]), Laurel e Hardy em Dois caipiras ladinos (Way Out West, James W. Horne, 1937), as cabriolas de Tom Mix e do seu cavalo Tony, as loucas perseguições e caídas inopinadas nos curtos filmes de Mack Sennett e até a animação provocatória de Tex Avery. “Correr es mi destino / Para burlar la ley” (Manu Chao) poderia ser um diálogo de Sollima, tal é a urgência de salvar o traseiro e o prepúcio como no Scarmentado de Voltaire. Vejam novamente Charles Bronson em Cidade violenta, que passa o filme a tentar fugir das imagens, fotos, reflexos, enquadramentos. “As guerras ganham-se na corrida, quando já não se corre é o fim”, diz-se em Os sete samurais (Shichinin no samurai, Akira Kurosawa, 1953-1954). E é, aliás, o picaresco Kikuchiyo, o “único samurai de origem camponesa que tem a alcunha como nome” (Jacques Lourcelles), que parece ter inspirado o Cuchillo de Sollima.

Em terras excomungadas a coice de burro, aí o temos, nariz ranhoso, sem um chavo no coldre, correndo trancos e barrancos, perfumado com tequila barata, ferrando o dente numa tortilla ou lambendo a unha de vaca, pés sujos, roupas puídas, rosto tostado pelo sol, a pila em brasa. Nessas terras onde o solo é pobre e o sol é rico, aí temos Cuchillo, Che de facas dos pés à ponta dos cabelos, Cristo teso com a cruz da sobrevivência às costas, Sancho pândego provido de lábias. Cuchillo mexicano, cubano, grego, vietcongue[8], cangaceiro, guineense, só involuntariamente cita Karl Marx: “O homem pensa, mas primeiro come.” Cuchillo é Karl Marx volvido Carlos Marques, socialista quando é preciso tirar os colhões de misérias, asceta quando falta um prato de azeitonas na mesa, revolucionário quando pilhado pela 7.ª Cavalaria. Irmão de Terence Hill, o Zé Ninguém de Tonino Valerii, mais letal que um pistoleiro profissional, irmão de Chuncho, o bandidóide de Damiano Damiani, que prova igual excitação fodendo putas ou metralhando gringos. Gajos que levaram muito pontapé na bunda, pau da direita e pão sem fermento da esquerda, labregos oprimidos nas mãos dos vilões financeiros do Oeste[9], peões a sacrificar no tabuleiro de xadrez. Gajos de alforges rotos a filosofias e de costas a correr sangue, portanto ausentes dos concílios divinos de criptocomunistas e marxistas-narcisistas. Trupe, trupe, trupe, corre, Cuchillo, corre...

Western da “triste figura” ou western “bacielmo” (que faz do bacio o elmo de Mambrino), Corre homem, corre tem em Cuchillo Sanchez o seu Sancho e em Ramirez o seu Quixote. Ramirez, preso como o “cavaleiro andante” (e o próprio Cervantes) o fora, exibe uma barba quixotesca e parece professar uma extinta ordem de cavalaria, socorrendo os necessitados e explorados. Apresentado pelo carcereiro a Cuchillo e depois por Cuchillo a Dolores como um “poeta perigoso”, mais libertário do que legalista, Ramirez é o único que sabe onde se esconde o ouro[10] de Juárez que financiará a Revolução Mexicana e iluminará o povo, alimentando o velho sonho de um El Dorado... um sonho de poetas indigentes ou aventureiros românticos como Quixote[11]... Quando Ramirez é atingido[12], dando o peito às balas para salvar uma mulher que sai em defesa do seu filho, morre como Quixote na nostalgia de uma idade de ouro. Uma idade de ouro que é também do cinema clássico americano que Sollima amava[13], do século de ouro da poesia espanhola, e em última instância do poder libertador da Palavra, pois saberemos mais tarde que o ouro se escondia sob as máquinas tipográficas onde se imprimia o jornal clandestino Libertad[14]. Após confiar o segredo a Cuchillo Sancho, as últimas palavras só poderiam ser estas: “Corre Cuchillo corre... O ouro... o ouro...” Do ouro sonhado ao chumbo levado, o Sol emerge na queda de Ramirez, um grito amarelo ou “ecstasy of gold” (ouvindo a peça musical de Morricone) de que a incendiária ilusão continuará.

Fiel escudeiro é Cuchillo, que aceita cavalgar ao lado de Ramirez com a promessa de que receberá 100 dólares se o acompanhar até o Texas[15]. Como Sancho sonhava com uma ilha, Cuchillo pedirá, mais modestamente, uma praça com o seu nome na futura cidade “Ramirez”, condição para se juntar ao partido de Santillana na luta pelo povo. Como Sancho sofreu a humilhação do “manteamento”, Cuchillo subirá e descerá no ar atado às velas de um moinho de vento (outra imagem tipicamente quixotesca), isto quando as costas não são os melhores fiadores[16]...

Sollima vai alternando planos de Ramirez discursando à Benito Juárez e de Cuchillo varrendo o molho com um naco de pão[17], reforçando o quixotismo de um e o sanchopancismo de outro. Mas o auge desta relação de cavaleiro andante e fiel escudeiro, Ramirez e Cuchillo, é essa cavalgada desengajada, sonhadora de liberdade infinita, tomando nas rédeas o vento. Sollima corta da prisão (o hotel dos pobres) para essa cena magnífica, onde está para mim toda a força do cinema de Sollima. Uma respiração que não conhece fronteiras, felicidade selvagem, desenfreada, insustentável, galope de facas ao vento. A Palavra (o poeta Ramirez) e a Faca[18] (Cuchillo Sancho) são já figuras alegóricas no grande teatro do mundo. Ramirez improvisa montado no cavalo: “México! Tu nasceste num vento de facas entre dois furiosos mares... México! Abriste os teus braços ao vagabundo, ao ferido, ao desamparado, ao herói... Sinto-me feliz.” Cuchillo complementa: “Amo o vento de facas... A vida é bela e nós somos irmãos!” Em poucos segundos, numa cena com raízes aéreas, a Palavra e a Faca tornam-se inseparáveis companheiros na sua dignidade cortante, a poesia e as suas lâminas, vândalos sem trela. Western despenteado, desalinhado, de peitaça ao vento mal-educado, bastaria este momento para sacudir o jugo da servidão, rebentar com os dogmas filosóficos e restaurar aquilo que mais importa: o Homem como ator principal no universo[19]. Teatro enquanto vida libertada, teatro em confronto com o impossível, teatro sem palco. Um despir de cena na alegria do Ser, sem deter artístico, sem manual de cortesias, sem contornos definidos, sem estátuas de estatuto, sem divisórias, sem muros, sem enquadramento possível, mais shakescène do que mise en scène, mais ar, mais espaço, mais amor, mais energia, mais escrita de pó pelo punho do vento. Exaltado pelo ar antes da morte certa, que o Homem vá o mais longe... a única bússola que importa é a Faca que abre caminhos e os versos semeados ao vento, vem, varre, corre...

Demasiado pobre para comprar uma pistola, a Faca (Cuchillo) para cortar queijo, estripar gatos e fazer a barba, é também a única arma para rebater os tratantes. A oposição entre a Faca e a Pistola, que vem já de Yojimbo, o guarda-costas (Yōjinbō, 1961) e dos Sete samurais de Kurosawa, é bem visível no duelo “dirigido” por Cassidy (corrige a tiro as distâncias dos contendores) entre Cuchillo e Jean-Paul em Corre homem, corre, assim como no confronto “dirigido” por outro gringo – Corbett – entre Cuchillo e o pedófilo Chet, desta feita em O dia da desforra. Contra a faca como adereço de creche nos Sete homens e um destino (The Magnificent Seven, John Sturges, 1960), a Faca em O dia da desforra e Corre homem, corre é novamente alegórica, tal como a Pistola. No mundo de conflitos que o cinema de Sollima reflete (diz Cuchillo “que noutro tempo e noutro país a minha faca só cortaria pão”), o duelo que verdadeiramente se representa é entre a guerrilha terceiro-mundista contra o armamento de primeira classe dos imperialistas[20], artesãos da independência contra industriais da estrada de ferro, rebeldes contra exércitos, espada de Sandokan contra a pólvora dos colonialistas liderados por James Brooke[21].

Num complexo tabuleiro de interesses, o leão tem várias cabeças como no filme de Glauber Rocha (e Sollima chegou a confessar uma grande admiração pelas alegorias políticas de Glauber[22]): os que combatem por Juárez, os que estão contra Díaz, os revolucionários e os traidores da Revolução, os mercenários, o bando de Riza, o professor Brett que cura a tísica com uma ditadura militar, Don Serrano y sus rancheros arrivistas, o magnata das estradas de ferro Brokston, os milionários Taylor e Williams que à maneira do teatro elisabetano observam o espetáculo no camarim da praça[23] (embaixo mata-se, em cima observa-se, só faltam os binóculos e as agências de rating), os “voluntários da paz” que no fundo só querem caçar recompensas, os franceses, alemães e britânicos que querem alargar a sua ingerência, o gringo Cassidy empenhado no enriquecimento (“estou por minha conta”) e mais tarde aliado de Cuchillo (a intervenção dos americanos é sempre revestida de ambiguidade[24]), os representantes do governo, os bandidos oficiais e oficiosos, o exército de salvação das almas (a loira que guiará Cuchillo a Burton City, onde está o ouro, e lhe promete mundos em troca de fundos), o barão austríaco que toca Beethoven[25] e disserta sobre o olhar nos duelos[26], o capitão Segura que odeia mais os gringos do que os “cães de Juárez” (e estica a perna na secretária enquanto os outros vão a jogo no tabuleiro político), a namorada de Cuchillo que quer dar o nó, a burguesia de bons sentimentos[27], o Santillana que reclama o ouro porque “eu sou a Revolução”, os pistoleiros, os moralistas, os campônios, os intelectuais, os fantasmas do passado[28], os tipógrafos, os poetas, os policiais assassinos, os reis-sol de poder doentio, os detetives-cowboys de Pinkerton[29], as “manadas selvagens” dominadas por Brett (da razão de Estábulo passamos à razão de Estado).

Brett é, na verdade, uma das personagens centrais de Quando os brutos se defrontam. Por oposição a Beau – de pele suja e curtida, cabelo negro primitivo e bigode quixotesco –, Brett apresenta-se como um professor ariano, pele branca, bem-falante, loiro já de um preto e branco granítico, rimando com as paisagens de Piedra de Fuego e enfatizando a sua vontade inabalável de poder. Cara contra Cara. Fascismo contra Utopia Socialista. Interessante verificar a escalada ao poder de Brett, que coincide com a sua (de)gradação homicida: mata um pistoleiro para salvar o couro de Beau, esmaga a cabeça de um dos homens de Beau para conquistar Maria, mata Wallace a sangue-frio para rejeitar o seu passado universitário em Boston e afirmar o seu poder absoluto no Texas. É, de resto, no ponto de vista dos corruptos capitalistas de Purgatory City (em fundo Bank Taylor, Saloon Taylor...) que o professor Brett entra pela primeira vez em “ação” no palco da História, assumindo depois a sua “agenda política” quando dita os planos para assaltar o banco. Torna-se então no narrador-ditador onisciente do futuro, tentando puxar o filme para o seu ponto de vista (os filmes de Sollima são também guerras de ponto de vista) e transformando o redil de anarcas num Estado Maquiavélico: “O meu plano era excelente, os homens é que não o eram, mas os homens podem ser substituídos.” O seu plano político é obviamente domesticar a “manada selvagem”, o povo-gado para organizar ou chacinar (o massacre, por exemplo, é praticamente elidido e só vemos, além do rescaldo queimado, um plano do gado em fuga, metáfora do dispersar de um povo que a coreografia desordenada dos cavaleiros acentua), seguindo, em parte, o ensinamento cínico de Tigrero[30] em O vingador silencioso (Il grande silenzio/The Great Silence, Sergio Corbucci, 1968): “É um dever patriótico exterminar os foras-da-lei inimigos da boa moral.” Qual moral? A sua, evidentemente.

A geopolítica caótica da decupagem reforça a instabilidade na disputa pelo poder. Vejam como Sollima alterna planos de Beau, Brett e Siringo, os três que se encontrarão no duelo final. Mais do que três personagens em planos individualizados, representam, respectivamente, três modelos de sociedade – o socialismo utópico (Beau ou Bom Selvagem), o fascismo (Brett) e a justiça americana (Siringo).

Abismando os conflitos e tensões entre as forças concorrentes estão as violentas elipses, os buracos, os cortes que “interrompem bruscamente o curso da história” (Brett quando fala de “perder e retomar a história”) e agitam rapidamente qualquer zona de conforto. Da bala tirada à bala disparada (como no fabuloso corte da bala arrancada à faca para Beau já a disparar), o filme vai cuspindo os dentes, buraco a buraco, até à boca vazia no deserto de Almería. No tabuleiro pouco estável onde se movem as personagens, a montagem não é reformista mas fraturante, como convém a um filme cheio de traições (novamente o teatro elisabetano) em que tanto se passa às escondidas do espectador – as traições em “surdina” (tenho a sensação de que nunca vemos os verdadeiros bastidores) sucedem-se: Siringo trai Beau e Brett, Brett trai Beau e a Revolução[31], Zachary trai Beau e o seu povo, o poder trai Siringo etc.

Perdidas são todas as personagens. Quando Siringo deixa escapar Beau, dando três tiros (um por mim, outro por ti, outro por Brett) na cara de um semelhante, atira-lhe estas palavras: “A lei ficará satisfeita com um falso ‘Beauregard’ Bennet, de qualquer forma o antigo já não existe mais.” Mais do que qualquer redenção apressada, estamos na total falência de todas as políticas, Brett cava cama atrás de uma “cortina” de areia, Beau perde-se como um ponto no deserto, Siringo sobrevive na farsa da justiça americana[32]. As despedidas são áridas, abstrata a pistola semi-enterrada, os objetivos a escorrer entre os dedos, os problemas esporrados no pó. O deserto de todas as desolações. O deserto de todas as condenações.




Western de corte satírico focado nas relações de poder é O dia da desforra. Ainda mal começou o filme e já Corbett dispara uma bala por cada caralho fora-da-lei. Justiça sumária, econômica e distributiva, o gringo “caça-recompensas” tem todas as qualidades para ser senador. Numa afiada ironia de Sollima, vemos o xerife rasgar os três cartazes enquanto diz a Corbett: “Você limpou o Estado dos maus e só ficaram os bons.” Saberemos, brevemente, que a Lei servirá à impunidade dos corruptos e à perseguição dos inocentes como Cuchillo, injustamente acusado de pedofilia. Corbett é nomeado assistente de xerife com o aval de Brokston (o tal que casou a filha com o pedófilo Chet para ganhar os terrenos de Miller), e “convidado” a ir no encalço de Cuchillo. Mais tarde, saberemos que a estrela de xerife (noutra cortante elipse) foi furtada por Cuchillo (que já furtara o cavalo) e deixada na liga de uma puta frequentada (como a cadeira de barbeiro) pelo perseguidor e pelo perseguido[33]. A mensagem de Cuchillo é visível: a lei é a grande puta. Perto do fim, quando Corbett recusa disparar em Cuchillo por sabê-lo inocente, contrariando assim as ordens de Brokston, o magnata diz-lhe: “És demasiado esperto para o Senado.” Ou seja, a contrario, o Senado é para burros e corruptos. A sátira de Sollima é implacável, como era a de Gary Cooper em O cowboy e a grã-fina (The Cowboy and the Lady, H. C. Potter, 1938; cartaz que o cinéfilo Piero furta em I ragazzi di celluloide): “Há melhores maneiras num rancho de vacas do que numa mesa de políticos”.

Em Corre homem, corre, a ironia política de Sollima também é convocada. Cuchillo aposta no gringo Cassidy com uma moeda roubada e faz uma pequena fortuna que o conduz à cadeia (para as autoridades é impossível um pilha-galinhas ter tanto dinheiro honesto!). Multiplicar um cêntimo pouco encorajador por muitas moedas é um milagre só tolerado a americanos e franceses. Os pobres têm que ser pobres. Mesmo no final, Cuchillo tem que se contentar com os “trocos suficientes para garantir a liberdade” e dar às solas do vento.

Western picaresco, tantas vezes a cena tem prioridade sobre o ato, Sollima não teme sacrificar a unidade rumo ao episódico e ao pequeno teatro. Os múltiplos e imprevisíveis incidentes – sem aparente ligação entre si – e as manhas de Cuchillo trazem à memória os “trancos” del diablo cojuelo: a faca com miolo de pão para enganar o guarda da prisão[34], a tortilla[35] que tenta enfardar antes de se ver diante de um pelotão de fuzilamento, o relógio roubado que oferece a Dolores (“não pode um homem roubar em paz, há sempre um xerife americano”), as facas cravadas no fole das migas, a sopinha que lhe dá um touro para domar, o tocador de bombo que fraqueja quando o pecado é apetecível[36], a viúva em bom estado de conservação que lhe trata das feridas[37] (ato de devoção que o atolará como porco na merda), a “brincadeira” com a novata dos mórmons, a troca de identidade na cadeira do barbeiro, as chicotadas dos animais entusados sob o olhar espermicida da milfona à janela, a picada de cacto que Corbett toma por cobra venenosa, as hóstias dos padrecos devoradas pelo nosso esfomeado (quando lhe cheira a pão é para saquear sem cerimônias)...

Esta condição plebeia dos westerns de Sollima, trejeitos de baixa ralé e queijo cortado em talhadas irregulares com a faca que mata a fome, seu bang bang de trapos[38] contra cinema de trampas, espanca, suja e liberta como o vento anônimo – Cuchillo se ne va! Varrem-se rotinas estéticas, desalinham-se caminhos, fodem-se sacerdotisas de inflexíveis liturgias, no que toca a cinema é sempre preciso ter um pé na merda.

Sem hierarquias, Épica e Curral, Trágica e Satírica, Altos e Baixos como tudo na vida, Morricone popular e Beethoven (Für Elise) na mesma arena[39], a religiosa que reza com as mãos porcas pela chegada das tropas de Juárez.

Por vezes a câmera ganha altura para ver do céu os “condenados da terra” e a impotência da condição humana... Vejam essas distâncias de Sollima que dão essa grotesca desproporção entre um pequeno e agitado ponto e o espaço amplo que o contém, dando à furiosa mobilidade um ar patético, absurdo e inútil. Os westerns, como as suas personagens, disparam a galope na poeira do deserto, simples átomos a desaparecer na abstrata lonjura – “de nada amigo... nunca me apanharias, nunca!”

Filmes que começam em pólvora acabam em pó. Ninguém pode tiranizar mais Cuchillo, ninguém pode tiranizar o vento.

Não há enquadramento financeiro, moral ou cinematográfico que te aprisione, morde as bordas, assassina as molduras, segue as pegadas do deserto, espeta a faca no astro-rei quando tiveres sede... disseste à Rosita “o mundo é grande e atrás dos montes está o mar”... corre Cuchillo corre... que nenhum mestre se lembre de ti.

Sem se levantar do pó o western tocou as estrelas. Sollima se ne va contra o Sol. Adiós, amigo!




Mário Fernandes, julho de 2015.


Notas:


[1] Daney: “O cinema interessa-me porque é uma coisa baixa”.

[2] Nem para embrulhar salpicões.

[3] De Cannes a Conde, Luís Urbano (ai se o Siringo te deita a unha!) na cerimônia de assinaturas “Miguel Gomes no panteão nacional já!”, contrariando “o mito de que o corpo é enorme e ocupa demasiado espaço”: “mobilizámos uma equipe, jornalistas, milhões de euros, dois anos das nossas vidas (...) montámos uma fábrica de fazer um filme (...) Ganhámos espaço para mostrar o filme, e tal como o queríamos. Ganhámos um estatuto de respect (...) Queremos vender o filme. E estreá-lo em Portugal antes das eleições. Como um ‘contributo’.” O povo agradece a generosidade e contribuirá para o sucesso comercial do filme, a crítica estenderá a passadeira vermelha, e tudo voltará ao preço do tremoço e das brasileiras. Corre, Cuchillo, corre-te...

[4] Copyright: Daniel Pereira.

[5] Buñuel: “Na cidade do México, tendo sido nomeado presidente honorário do Centro de Capitación Cinematográfica pela Escola Superior de Cinema, um dia fui convidado a visitar as suas instalações. Apresentam-me quatro ou cinco professores. Um deles é um jovem bem-vestido, corando de timidez. Pergunto-lhe que disciplina ensina. Ele responde: ‘A semiologia da imagem clônica.’ Apeteceu-me assassiná-lo”.

[6] Sollima: “Because, in contrast to Leone, I am a man of the theatre, I wrote pieces for the stage before being behind a camera. On stage you don’t have the support of beautiful photography, of heroic Morricone music, the characters must be strong and valid and keep the focus of the audience for two hours without technical gimmicks”.

[7] Brokston: “Só me falta caçar um animal: o homem”.

[8] À época Godard dizia que “cada cinema nacional era um Vietnã no coração do imenso império americano”.

[9] Sollima: “O grande tema do western é a ‘luta de classes’, a conquista da terra contra a sociedade financeira, a luta dos cowboys contra os agiotas (...) O cinema americano é um duelo entre a selvageria do Oeste e a finança política tendencialmente corrupta” (1947). Já perto do maio de 1968, Gorin: “Cada marxista em cada quarteirão de vivendas desejava fazer um western.” Mais recentemente, Alex Cox: “O cinema é a arte capitalista por excelência, e o capitalismo não quer saber de sacrifícios ou perdedores; mas expandir-se, ganhar e lamber cus”.

[10] Entre as grades de Ramirez e o desejo louco do ouro, vejam como Sollima apresenta as várias facções, isolando em curtos planos os “abutres”, em cima e em baixo, que disputam o “ponto de vista” do ouro. De resto, a caça ao tesouro é um tema recorrente no western italiano. Em O pistoleiro das balas de ouro (Matar para viver e viver para matar) (Se sei vivo spara/Django Kill... If You Live, Shoot!, Giulio Questi, 1967), que opõe inicialmente um mexicano e um gringo, o ouro é sucessivamente usurpado até o derretimento final (um homem furado por balas de ouro chega mesmo a ser “autopsiado” com especial atenção); o ouro para financiar a Revolução acaba engolido pelo lodo nas areias movediças em Django (Sergio Corbucci, 1966); na Cavalgada infernal (Take a Hard Ride/La parola di un fuorilegge... è legge!, Antonio Margheriti, 1975) milhares de dólares são atribuladamente conduzidos e perseguidos; para garantir a insurreição dos derrotados sulistas contra os yankees, o tesouro também é uma obsessão em Os cruéis (I crudeli/The Hellbenders, Sergio Corbucci, 1967); Chuncho quer o ouro para investir em dinamite e assim continuar a rebelião; etc.

[11] “Sancho amigo, hás-de saber que eu nasci, por vontade do Céu, nesta nossa idade de ferro, para ressuscitar nela a de ouro, ou dourada”.

[12] Os usurpadores querem aplicar o ouro, supostamente para derrotar o ditador Díaz, na “grande vida”.

[13] Vejam os dois companheiros cinéfilos em I ragazzi di celluloide, completamente tarados por cinema americano, em particular Nicola (alter-ego de Sollima) que sonha literalmente com os filmes: King Kong (Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, 1932-1933), Aconteceu naquela noite (It Happened One Night, Frank Capra, 1934), Tarzan, o filho da selva (Tarzan the Ape Man, W. S. Van Dyke, 1932), No tempo das diligências (Stagecoach, John Ford, 1939), westerns, musicais etc. Em Il cinema in U.S.A. (1947), Sollima destaca, entre outros, os primeiros westerns produzidos por William Selig na Califórnia, filmados com luz natural, e os westerns de Thomas H. Ince, elogiando a “essencialidade primitiva de tendência realista” deste gênero, o pioneiro do Oeste como “personagem fundamental do cinema americano” e o cowboy a sua “figura mais genuína”. Vinhas da ira (The Grapes of Wrath, John Ford, 1940), Caminho áspero (Tobacco Road, John Ford, 1941) e Carícia fatal (Of Mice and Men, Lewis Milestone, 1939) são os filmes que “mais corajosamente colocaram o problema do homem nesta terra”. Ford e Vidor são “realizadores de puro-sangue e profunda sensibilidade social”, mas considera Chaplin, Stroheim (quem não se lembra do deserto de Ouro e maldição [Greed, 1923-1924] a propósito de Sollima?) e Walt Disney os três maiores artistas do cinema americano. Um filme como Amor à terra (The Southerner, Jean Renoir, 1945) é apresentado como decisivo na sua própria revolta, e todas as sátiras políticas e sociais, de Capra a Gregory La Cava, merecem especial atenção da parte de Sollima. Como tantos realizadores, ama o cinema de um país que odeia (“com uma mão oferecem a Rita Hayworth em biquíni, com a outra lançam a bomba atômica”). Critica uma concepção demasiado idealista e maniqueísta em alguns filmes americanos (“Não somos anjos ou demônios, mas homens e mulheres, complexos e plenos de contradições e lutas internas, como tudo na vida”) e lança farpas à moralidade americana: “Para ganhar os Oscars da Academia é fundamental interpretar personagens católicas: Spencer Tracy, Bing Crosby, Ingrid Bergman e Jennifer Jones.” Considera o cinema americano “o mais belo, estranho e contraditório do mundo. Não é por acaso que o cinema americano nasce na Guerra Civil”. Sollima é, pois, profundamente enraizado no cinema americano, mas de ramificações sensíveis ao vento; não teve medo de roer as unhas sujas depois de cultivar esta paixão.

[14] Ramirez abençoa uma criança e jura recuperar o Libertad, jornal de resistência manchado de sangue, cujos recortes (alternados com desenhos que parecem evocar a Guernica de Picasso e a pintura libertária de Diego Rivera) aparecem logo nos créditos iniciais ao som de “No hay miedo mis compañeros / Por quien busca la revolución / También la muerte nos gustará”.

[15] Ramirez para Cuchillo: “Lutei toda a vida, mas não sou um homem de ação. Preciso da tua ajuda. Tu nasceste no México, ignorante e livre ao mesmo tempo”.

[16] Philip French: “Um western sem violência é como um bife vegetariano”.

[17] “Sancho acomodou-se o melhor que pôde no jumento e ia caminhando e comendo atrás do amo com todo o vagar”.

[18] Não confundir com a Festa de Antropologia, Cinema e Arte (FACA).

[19] Sollima: “A arte pelo Homem e jamais a arte pela arte”.

[20] Cuchillo diz que não sabe manejar uma pistola.

[21] O Oeste de Sollima é o mar de Salgari: corsários contra ingleses.

[22] A alegórica apropriação da Revolução Mexicana (comparem, por exemplo, Terra em transe [Glauber Rocha, 1967] e Corre homem, corre) aproxima-os desde logo.

[23] “Temos uma bela vista daqui” diz Taylor. Sollima, mordaz, alterna os planos dos “pequenos bandidos” com os planos dos “grandes bandidos”. Taylor e Williams, atores-espectadores, manipulam os títeres do poder.

[24] Estamos sempre na expectativa da traição. Cassidy (o “aliado” americano atrasado) para José: “Nunca estivemos juntos, só tivemos os mesmos inimigos (...) Nestes últimos anos o teu trabalho foi a Política, o meu a Pistola.” Depois de o furar na arena onde jaz Ramirez: “Não basta que a causa seja justa.” Ficam os mortos picados nos extremos do enquadramento (os insurrectos) e Cassidy (EUA) sai de campo.

[25] Os tiranos melômanos também tocam piano em Tempo de massacre (Le colt cantarono la morte e fu... tempo di massacro/Massacre Time, Lucio Fulci, 1966) e em Adeus, Texas (Texas, addio/Texas, Adios, Ferdinando Baldi, 1966).

[26] Do duelo de mãos entre Cuchillo e Chet passamos ao duelo de olhares entre o barão e Corbett.

[27] Sollima: “Tenho particular simpatia pelos maus tipos. Acho que os bonzinhos naquilo que podem fazer (socialmente, legalmente, diplomaticamente) criam mais danos e lixo do que os maus tipos”.

[28] “Todos nós somos fantasmas do passado. Os caçadores de búfalos já não encontram búfalos, os cowboys estão onde não há vacas, os prospectores onde não há ouro”.

[29] Sobre a ambiguidade e complexidade desta agência americana que Sollima alegoriza, leiam o livro do próprio Charles Siringo (o seu agente mais conhecido e personagem fundamental de Quando os brutos se defrontam): A Cowboy Detective: A True Story of Twenty-two Years with a World-Famous Detective Agency.

[30] Recorde-se que a lei institucional – como em tantos westerns italianos – é só um pretexto para encher os bolsos de corruptos e psicopatas.

[31] É possível ver em Brett a figura do Stalin traidor da Revolução.

[32] A estrela furada de xerife que apresenta no início já o prenunciara.

[33] Não vemos Cuchillo no bordel, só pelos diálogos sabemos da sua passagem. É o jogo do gato e do rato nas primeiras cenas de O dia da desforra: quando Corbett entra em campo, Cuchillo já está fora de campo. Em O último grande duelo (Il grande duello/The Big Showdown, Giancarlo Santi, 1972), Van Cleef e Philip assemelham-se à dupla de O dia da desforra. Neste filme, onde se joga xadrez com copos de água-ardente, Philip é também um injustamente perseguido, tão astuto como Cuchillo.

[34] Em O dia da desforra é uma faca estrategicamente escondida na cela: “quando me falta a liberdade, falta-me tudo”.

[35] De fazer perder o jejum a um santo.

[36] No exército de salvação das almas, a preocupação de Cuchillo é tratar bem do corpo (comer amiúde e amiúda). A pregadora itinerante merecia mais fiéis, mas o budget não dava para triplicar os figurantes. Em todo o caso, a loira só estava interessada num único Messias...

[37] Seguindo as normas da hospitalidade cristã, a miúva pratica a “monogamia sucessiva”, um cão de foder à vez. Cuchillo e Corbett voltam a ser convidados a comer da mesma gamela.

[38] Como o meu amigo Carlitos, faz de um sutiã em segunda mão um coldre.

[39] Reparem como a música é usada, não como ilustração, antes comentário operático da ação. O exemplo maior é Run Man Run que remata no “Never”: “Run and run until you know you’re free, / Run to the end of the world ‘til you find a place / Where they never never never / No never no they’ll never lock you in. / Never, no never, no never let them win.” O Für Elise, que o barão tocara para Corbett, ouve-se no duelo entre eles, já fora da civilização, num dos momentos mais abstratos do cinema de Sollima.

 

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