MECÂNICA DA INCERTEZA
por Guilherme Savioli



Onde jaz o moderno?


A querela das duas vanguardas... A questão que sustenta como espinha dorsal os textos que embasam esta pauta – textos de pensadores que emergiram principalmente a partir da segunda metade dos anos 1960 – pode ser remontada a escritos um tanto quanto anteriores às aparições aqui sugeridas. É possível pensar, para ficarmos num exemplo notável, na edição de número 10 dos Cahiers du cinéma, revista que de acordo com a classificação proposta por Peter Wollen, nutre uma relação ao mesmo tempo intrínseca e sinuosa com a tal “vanguarda europeia”, sendo essa última oriunda principalmente de uma linhagem da vanguarda histórica mais ligada aos experimentos teatrais, durante as primeiras décadas do século XX.

Datada de março de 1952, a edição traz como pauta central uma série de artigos sobre aquilo que ficou entendido como a vanguarda no cinema. Hans Richter, autor ligado às vanguardas dos anos 1920 na Alemanha, abre a pauta com um artigo intitulado “Un art original: le film” (“Uma arte original: o filme”). Hoje, com a vanguarda no cinema já consolidada como um período histórico muito bem determinado, com as suas diversas vagas em diferentes épocas, o artigo de Richter pode passar batido, como um apanhado um tanto quanto genérico a respeito do tema, ou como reflexões muito mais ligadas às vanguardas dos anos 1920, do que propriamente às vanguardas que se consolidariam nos anos vindouros, entre os polos de Nova York e Londres, principalmente. O problema é que tal texto surge em um momento no mínimo delicado para o cinema de vanguarda, tanto no que diz respeito à sua prática, quanto no que diz respeito à sua teoria e historiografia.

Já considerado, então, como fruto de um período longínquo e muito bem demarcado na história, o cinema de vanguarda ainda ansiava por um novo rebento criativo, o qual começara a surgir ao longo da década de 1940, mas que só iria se firmar nos termos historiográficos e teóricos hoje conhecidos a partir da consolidação da vanguarda americana (ou seja, na segunda metade da década de 1960). Nesse sentido, a novidade fundamental do texto de Richter jaz logo no título, muito mais do que no próprio texto em si: trata-se da “arte do filme”, não mais do cinema ou do cinematógrafo. Assim, Richter antecipa, de certa forma, o movimento de Hollis Frampton em seu manifesto por uma metahistória do filme, provavelmente um dos momentos mais importantes no campo da teoria do cinema, encabeçado por um nome eminentemente ligado ao cinema de vanguarda. Quando Frampton reivindica denominar sua arte simplesmente como a “arte do filme”, ele dá o passo decisivo naquilo que Noël Carroll identificou como o ponto nevrálgico do pensamento framptoniano: o anseio por uma conciliação entre uma vocação essencialista e uma vocação histórica no ato de reinventar e recontar a história (no caso, a metahistória) do cinema (no caso, da arte do filme). É justamente esse anseio de conciliação de Frampton que estará na base do questionamento de Peter Wollen acerca das discussões sobre a ontologia do cinema e a reivindicação de um cinema materialista (nas divergentes acepções desse termo) em alguns cineastas e teóricos a partir dos anos 1960, por exemplo.

Éric Rohmer (ainda Maurice Schérer) também compõe a pauta, com um texto sobre o cinema de Isidore Isou. Rohmer, como era de se esperar, não é adepto do cinema letrista, mas curiosamente releva o cinema de Isou justamente por esse ainda manter um elo com as coisas concretas, com as coisas materiais. Não é, contudo, o texto que melhor explicita os termos do que seria uma certa antecipação da querela das duas vanguardas. Onde isso se encontra melhor representado é na contribuição de André Bazin à pauta, com um texto intitulado “L’avant-garde nouvelle” (“A nova vanguarda”). Aqui Bazin faz uma espécie de resumo de algo que publicara quatro anos antes, na revista L’écran français. O texto em questão se chamava “Défense de l’avant-garde” (“Defesa da vanguarda”) e viera à tona nove meses depois de “Naissance d’une nouvelle avant-garde – La Caméra-stylo” (“Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo”), de Alexandre Astruc, ambos na mesma L’écran français. Servindo como uma espécie de pré-manifesto do cineclube Objectif 49, o texto de Bazin tem um cunho muito mais pragmático e muito menos teórico que o texto de Astruc, buscando realizar, de fato, um deslocamento do conceito de vanguarda na história da crítica cinematográfica. Seu objetivo, no fundo, era identificar uma série de procedimentos formais empregados mais incisivamente por algumas obras de então, de sorte a identificá-las como fulcros de um cinema reivindicado e apreciado pelos frequentadores do cineclube Objectif 49, ou seja, aquilo que ensejaria o que ficou conhecido como o cinema moderno europeu do pós-guerra (no caso, a tal “vanguarda nova”, para Bazin). O que se vê, portanto, não é uma antecipação à questão das duas vanguardas num molde expositivo como o de Wollen, mas sim através da tensão objetiva que se estabelece na forma como Bazin (e a escola dos Cahiers como um todo) lida com todo o cinema de vanguarda herdeiro de uma tradição mais vinculada às artes plásticas, nas definições dadas por Peter Wollen. Colocado de uma forma um tanto quanto simplista, o que se vê nessa escola crítica é uma dificuldade em lidar com esse tipo de cinema, uma vez que ele trairia, em sua base, aquilo que está no seio do pensamento baziniano (e de seus herdeiros): a ontologia realista do cinema.

A tendência posterior em retomar e retrabalhar tal discurso é conhecida e a vulgarização do modelo, principalmente a partir da divulgação deleuziana, mais ainda. O que se perdeu foram as nuances tanto do(s) texto(s) de Bazin, quanto do texto de Astruc e dos rebentos de ambos, que não demoraram muito a surgir (vide Godard/Hans Lucas e a sua “Defesa e ilustração da decupagem clássica”, apenas cinco meses depois, na edição de número 15 dos mesmos Cahiers). E como o diabo mora nos detalhes faz-se necessário que algumas coisas sejam retomadas.

Annette Michelson afirma que até o advento do sonoro, cineastas de diferentes origens e correntes trabalhavam, de certa forma, em prol de um objetivo comum: o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do cinema, de sua linguagem, de suas possibilidades narrativas. Com a chegada do som, ao final da década de 1920, instaura-se uma espécie de princípio disjuntivo. No campo industrial, saem de cena pioneiros inventivos como Griffith e Stroheim, os quais progressivamente dão lugar, na maioria dos casos, ao que Michelson acredita serem burocratas interessados apenas na produção em série, padronizada. No cinema que se desvincula da verve industrial, o que ocorre é um perpétuo confronto com a ideia de uma perda daquele “momento edênico” pré-advento do sonoro. Sendo assim, uma corrente irá incorporar esse trauma em sua evolução temática e formal e uma outra irá programaticamente rechaçar tal disjunção. O objetivo de Michelson é discorrer, em uma dada conjuntura (1966), acerca dos rebentos mais radicais e representativos do cinema moderno de então, os quais remontam e se encaixam, evidentemente, no esquema narrativo proposto por ela. O fato é que há um intervalo não coberto pelo texto de Michelson, intervalo esse que lança luz sobre o que liga o momento que ela julga definidor da gênese do dilema que embasa o cinema moderno (a disjunção a partir do sonoro) até o momento no qual ela escreve o texto. É principalmente sobre esse intervalo que irão repousar as reflexões de um Bazin, de um Astruc e de um Hans Lucas/Godard. São nesses escritos sobre realizadores paradigmáticos para a “política dos autores” que irão se forjar, portanto, os elos de continuidade e diferenciação daquilo que se parametrizou, a partir dessa tradição (que, como vimos, complementa a proposição de Michelson), como o clássico e o moderno no cinema. A questão é que as nuances, muitas vezes esquecidas, de tais reflexões, não afirmam tal período como uma curva que vai da consolidação do clássico à emergência do moderno. A boutade incorporada pelo Godard cineasta de que “clássico = moderno” (em outra variante: “o clássico é o destino do moderno”), é a formulação/provocação/proposição mais radical a indicar a necessidade de um deslocamento ao se analisar a história do cinema. Pela sua condição histórica – de única arte inventada, forjada pela civilização burguesa moderna –, a importação direta e estrita de parâmetros e conceitos oriundos das outras artes resultaria apenas numa série de equívocos.

De um certo modo, é a partir desse diagnóstico, dessa proposição, que Jacques Aumont irá partir em seu ensaio Moderno? Por que o cinema se tornou a mais singular das artes (2007). Assumindo sua formação nos quadros dos Cahiers du cinéma e, portanto, partilhando inevitavelmente do credo no cinema moderno difundido a partir da revista (num primeiro momento, a partir das proposições de Bazin e seus herdeiros imediatos; já posteriormente, a releitura dessa herança a partir de um quadro conceitual típico dos anos 1960/1970, identificando a modernidade e o modernismo no cinema com o “Real” filtrado a partir de uma série de teorias, de cunho lacaniano, então em voga), Aumont se propõe a esmiuçar – buscando o ponto de vista da extrema desconfiança – os pressupostos recebidos, passando por alguns dos principais momentos nos quais se buscou definir o que é o moderno no cinema. Sua aposta é justamente que há um deslocamento intrínseco a essa arte, o qual não permite uma correlação de critérios para se analisar a modernidade (e, por consequência, o pós-moderno e o contemporâneo) sob a égide elaborada nas artes plásticas, na literatura ou na música, por exemplo. O cinema tampouco seria o mero acompanhamento perpétuo da modernidade (como sugere a tese de um Dominique Païni, refutada por Aumont). O essencial é mesmo esse deslocamento de valores e a intricada relação que o cinema estabelece com os parâmetros modernos já consolidados nas outras artes. É sobre esse deslocamento que Aumont depositará sua atenção.

Mais uma vez, salta aos olhos a correlação com a problemática das duas vanguardas no ensaio de Aumont. Como o autor afirma, a partir da escola dos Cahiers, forjou-se uma ideia de modernidade que, ao contrário do que aconteceu nas outras artes, procurou revelar-se como a essência mesma de todo o cinema, uma ambição de durabilidade estranha ao próprio conceito. Herdeiro de tal tradição, mas incrédulo com tal postulado, ele parte para a sua investigação já questionando a forma como as vanguardas históricas dos anos 1920 não representaram, no cinema, a forma mais avançada possível de concretização das possibilidades do meio. Nesse movimento, descarta-se essa primeira vanguarda principalmente pela incapacidade de articulação social da forma artística adotada. A ponta de lança da modernidade posteriormente defendida pelos Cahiers – como fica evidente na já mencionada edição de n.º 10 – não herda quase nada dessa escola, e é o que Aumont discutirá a partir dos parâmetros estabelecidos por Welles e Rossellini. O fato é que em sua revisão, Aumont tangencia a todo o momento a relação entre a modernidade postulada pelos Cahiers e os pressupostos adotados, quase que na mesma época, pela vanguarda americana e seus desdobramentos em experimentos cinematográficos fortemente marcados pela relação com as artes plásticas. O próprio autor, já mais para o final do ensaio, admitirá a falta de atenção por parte dos críticos dos Cahiers para com essa outra vertente.

Se à pergunta acerca do que foi o moderno no cinema Aumont aponta como resposta a necessidade de deslocamento dos critérios importados de outras artes, fica evidente, também, que a lacuna em relação a um cinema que parte de outros pressupostos freia a dinâmica do movimento proposto.


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Despossuída de suas funções de registradora do real, a câmera se torna um simples meio mecânico de transcrição, uma espécie de caneta aperfeiçoada que escreve frase por frase sobre o celuloide os momentos sucessivos de uma lógica desencarnada.
— Alexandre Astruc, “O cinema, arte abstrata”

Central na empresa de Aumont é a presença de André Bazin. Desde os textos e filmes que o ensaísta escolhe para desenvolver e escorar seu pensamento, até a conclusão, quando arrisca sua hipótese acerca do traço unificador dos projetos de modernidade que perpassaram a história do cinema, Bazin e sua “revolução copernicana” atravessam todos os momentos. Tomemos a hipótese final de Aumont: o que unifica todos os artistas que se pretendiam modernos em cinema é a busca pela recolocação da aura no filme, arte que, de acordo com Benjamin, a havia eliminado. Ele avança dizendo ainda que outro ponto marcante seria a concepção da arte como “intensificação do real”. Por mais que Aumont convoque inúmeras leituras, é Bazin, mais uma vez, quem retorna na base de sua conclusão.

Se falávamos da recusa consciente por parte da linha dos Cahiers em lidar com uma corrente cinematográfica, é justo também constatarmos que pensadores ligados a essa outra vertente recusaram – muitas vezes com o mesmo voluntarismo – o tipo de cinema postulado pela revista francesa. Exemplar disso é a forma como Peter Wollen aborda o pensamento baziniano em “‘Ontologia’ e ‘materialismo’ no filme”. Ao abrir o texto, o crítico e teórico britânico identifica Bazin como um misto de ingênuo e reacionário, que enxergava a ontologia do cinema simplesmente nos fatores pró-fílmicos, nada específicos a essa arte. A leitura é típica de muitos pensadores do período, geralmente vinculados à revista Screen. O equívoco e a posterior revisão de tal postura não nos impede, porém, de olhar para outro ponto importante do texto de Wollen. Mesmo com sua recusa explícita a Bazin, o crítico e teórico britânico aponta um problema central que irá perpassar ambas as “vanguardas” apontadas por ele mesmo, além de lançar alguma luz sobre as especulações e lacunas contidas na abordagem do moderno no texto de Aumont.

A especulação que guia Wollen é a confusão gerada pelo termo “materialismo” em seu emprego por críticos, teóricos e cineastas. Tanto Godard, Straub e Glauber Rocha, quanto Peter Gidal, George Landow e Joyce Wieland (ou seja, cineastas pertencentes a ambos os espectros das vanguardas) definiram sua arte como materialista. Essa definição conotava uma abordagem que variava do político-institucional ao técnico-prático. O interesse de Wollen é justamente dissipar tal confusão, ou melhor, resolvê-la, reconciliá-la, numa abordagem que se desdobraria em seu trabalho futuro enquanto cineasta (portanto, um texto propositivo, de um teórico-cineasta). Seu ponto de partida é a obra de um cineasta-teórico que se mostrava, naquele momento, como um dos pontos mais avançados na reflexão acerca de uma ontologia materialista do cinema (no amplo leque de acepções do termo), propondo uma revisão especulativa radical dos termos do debate. Estamos falando de Paul Sharits.

A retomada de Sharits se dá a partir do texto “Words Per Page”, produção teórica publicada em 1972 na revista Afterimage. Wollen se concentra num trecho específico do documento, no qual se sugere uma reformulação radical dos princípios que orientam a atividade de composição de um filme. Ali, Sharits especula o que seria do filme caso partisse de uma ideia muito distante daquela iniciada pelos irmãos Lumière, ou seja, do registro fílmico organizado em função dos elementos pró-fílmicos. A ideia é que os princípios que ditam a atividade surgiriam das próprias condições materiais impostas pela arte em questão: a câmera, o projetor e todos os componentes que fazem o filme se deslocar por suas engrenagens e, assim, ser projetado e visionado. Sharits não nega a possibilidade de registro da figura ou do ícone (ao contrário de uma certa tendência notada nos escritos de Peter Gidal, com seu materialismo extremo e ideológico), uma vez que “a fenomenologia do sistema inclui o registro como um fato fílmico”. Wollen se detém exclusivamente nesse segmento do texto para direcionar a sua reflexão no sentido de imaginar como esses filmes supostamente “científicos e especulativos” de Sharits, dotados dessa capacidade de suprimir e subverter estruturas, poderiam orientar um outro tipo de produção, uma produção capaz de incorporar esses avanços teóricos numa articulação fílmica que também não dispensasse outros elementos fundantes dessa linguagem. Evidentemente, Wollen está especulando acerca de sua própria produção enquanto cineasta (em especial Riddles of the Sphinx, 1977, realizado em parceria com Laura Mulvey, obra que mereceria uma análise em um texto à parte) e, portanto, dispensa outros pontos levantados por Sharits. O problema é que tais pontos não só orientam a coerência teórica do texto, mas também lançam luz sobre a obra e trajetória de Sharits enquanto realizador, indo na raiz da questão do materialismo (Wollen) e da dialética entre o realismo e a abstração no filme (Aumont).

Paul Sharits (1943-1993) é um dos cineastas centrais do que se convencionou chamar de cinema estrutural norte-americano, a partir da conhecida abordagem de P. Adams Sitney. Com formação acadêmica e depois, já enquanto cineasta, atuando igualmente dentro de instituições universitárias, Sharits tem no início de sua filmografia uma série de trabalhos com características formais prontamente identificáveis com alguns procedimentos do cinema estrutural. Tomemos um de seus primeiros filmes, Ray Gun Virus (1966). Na linhagem dos trabalhos de Peter Kubelka e de Tony Conrad, Sharits constrói aquilo que ficou conhecido como um flicker film: basicamente um filme constituído de fotogramas que se alternam, sendo essa própria alternância (e, portanto, o próprio movimento da película no projetor) o “tema” do filme. Nem a ordenação extremamente controlada de Kubelka, nem o descontrole total de Conrad, o efeito buscado pelo filme de Sharits reside na impressão da alternância gerada por fotogramas coloridos. É como se da austeridade material do preto e branco da qual partem os outros dois cineastas, Sharits se contrapusesse buscando uma expansão, um “para além” dos limites materiais e cromáticos impostos (mas que ao mesmo tempo não nega esses limites), a fim de atingir a consciência do espectador justamente a partir desse transbordamento interrompido, ainda que fortemente sugestionado na tomada de nossa atenção.

Em 1972, quando escreve “Words Per Page”, Sharits já possui uma série de outros trabalhos que se inserem na tradição do cinema estrutural, mas que pela complexidade de suas formas avançam muito em relação às proposições (fílmicas e teóricas) das primeiras obras que realizou, ainda mais ligado às convenções e questionamentos iniciáticos do movimento (sendo o flicker film um caso exemplar nesse sentido). Arrisco afirmar que o ponto central de “Words Per Page” – ignorado por Wollen –, e que irá reverberar no ápice de sua produção enquanto cineasta, é a constatação por Sharits de uma natureza dupla do material fílmico. Assim como a luz, que é onda e partícula (e a qual delimita os vetores espaciais que caracterizam a projeção de um filme da cabine à tela), o filme é fotograma e tira de película. Essa indeterminação física irá gerar uma espécie de “princípio da incerteza” no que diz respeito à percepção temporal da obra: é possível produzir estruturas que sugiram um tempo cíclico e perpétuo, é possível produzir estruturas que remetam pura e simplesmente ao tempo de atravessamento da película no projetor e também é possível produzir estruturas que induzam à percepção de temporalidades não delimitadas estruturalmente pela condição física do filme. Essa consciência da correlação entre os vetores espaciais delimitados pela projeção fílmica e as temporalidades sugeridas a partir dessa dupla natureza é o que impulsiona a especulação de uma trajetória outra para a arte do filme, diferente daquela estabelecida desde os Lumière (por isso também a sugestão de Sharits de se pensar a arte do filme, em consonância com o espírito da época, a partir de paradigmas oriundos de pesquisas no campo de sistema generativos, calcados em parâmetros rígidos e pré-estabelecidos).

Em T,O,U,C,H,I,N,G (1968), por exemplo, o que está em jogo é a percepção de uma temporalidade calcada na ideia de destruição, degradação. Não estamos mais no campo do flicker film originário. Vemos uma figura, um homem, que alternadamente tem uma mão posta em seu rosto ou fecha os olhos e ameaça mutilar sua própria língua com uma tesoura. Esses movimentos estáticos são ditados pela alternância cromática já sugerida em Ray Gun Virus (portanto, incorporando a técnica primeira do flicker film e sua impressão temporal e de movimento). Na banda sonora a repetição constante e seguida da palavra “destroy”, a qual progressivamente vai tendo a própria pronúncia, bem como seu entendimento, comprometidos. A temporalidade de uma destruição frenética (a profusão cromática adensa nossa agitação perceptual de uma situação-limite), sugerida a partir de um movimento paradoxalmente extático (já que oriundo da sucessão de fotogramas), dita a própria condição do registro dado: a iminência de uma mutilação.

A obra na qual suas reflexões melhor se coadunam é, porém, S:TREAM:S:S:ECTION:S:ECTION:S:S:ECTIONED (1968-1971). O filme registra um fluxo de água constante (possivelmente de um rio) escorrendo sobre diversas camadas fílmicas que são sobrepostas. Com o avançar da projeção, tais camadas vão sendo retiradas e riscos verticais vão tomando conta da película. Nesse duplo achatamento – da imagem que vai perdendo suas camadas e do próprio material fílmico que vai perdendo sua constituição, revelando seu substrato – a crítica Rosalind Krauss identificou a dramatização do “mundo da experiência” “encurralado entre essas duas planuras paralelas”. A definição de Krauss sobre como Sharits conduz plasticamente a experiência dramática em jogo nos permite retomar um outro ponto do texto “Words Per Page”. Para o autor, o cinema que realiza naquele momento – moderno, portanto – deve partir de uma “intensificação material” da percepção, se contrapondo, num certo sentido, à ideia de “intensificação do real” como traço definidor da busca pela modernidade no cinema, tal como vimos em Aumont. A questão é que o embate exposto por Sharits em S:S:S:S:S:S incorpora todas as dimensões do termo “materialismo”: sua acepção político-institucional, sua acepção técnico-prática e sua acepção existencial. Se imaginássemos a obra e o pensamento de Sharits como uma espécie de série de esferas concêntricas dotadas de um núcleo duro que a tudo norteia (como nosso próprio planeta, por exemplo), esse núcleo duro seria o próprio embate em fusão entre uma ideia de materialismo e uma ideia de realismo, entre o concreto e o abstrato (sendo essas variantes, dentro do jogo perceptivo proposto, intercambiáveis em relação àquelas). Todas as outras esferas seriam, assim, os esforços composicionais e formais de Sharits em convergir e se direcionar para esse núcleo. Sharits sabe que sua proposta de reformar o cinema, retornando para um momento anterior à organização estabelecida pelos Lumière, é concebida enquanto especulação, um sistema generativo que produz informações que entram em embate direto com o desenvolvimento que se deu de fato (mais uma oposição à concepção de Peter Gidal, fundada numa certa pureza do conceito de “materialismo”). Em S:S:S:S:S:S toda a especulação teórica a respeito da temporalidade e espacialidade fundada numa concepção materialista do cinema se converte num embate perpétuo com “a fenomenologia do sistema” a qual inevitavelmente “inclui o registro como um fato fílmico”.

Geralmente vinculado ao modernismo de matriz greenberguiana (portanto, passando pela concepção kantiana de crítica do meio a partir dos próprios materiais e elementos do meio), não é de se espantar que a carreira de Sharits, antes do seu fim prematuro, tenha passado por mais dois estágios significativos. O primeiro é a atuação no campo do cinema-expandido e do cinema-instalação, como se a profusão de materiais e elementos o permitisse aprofundar sua crítica, intensificando o jogo relacional que já havia estabelecido dentro de sua atuação como cineasta. O segundo é uma espécie de retorno à atividade de pintor, como se com a restrição material imposta, pudesse sintetizar todo o percurso até ali percorrido. O que não deixa de guiar o seu pensamento e a sua prática, no entanto, é aquele núcleo em fusão do qual falávamos: fonte vital do cinema moderno.


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A obra de arte é o que homem arranca ao acaso.
— Roland Barthes, “A atividade estrutural”

Voltemos a André Bazin, outrora injustamente apontado como mentor de uma estética idealista e reacionária. É sabido que quando de sua morte prematura em 1958, o crítico francês preparava uma monografia sobre Jean Renoir. Mesmo tendo escrito sobre os principais autores e filmes de sua época, provavelmente nenhum outro cineasta tomou tanto tempo da atenção de Bazin quanto Renoir. Ora, a imagem das esferas concêntricas que usamos para descrever o trabalho de Sharits serve igualmente para anunciar todo o esforço cinematográfico de Renoir, só que numa espécie de orientação inversa. Enquanto em Sharits todos os esforços se dirigem na apreensão desse núcleo, em Renoir todos os esforços irradiam a partir dele. O cinema é uma arte material, em perpétuo embate entre o realismo e a abstração, na sua busca pela apreensão da vida. Os círculos concêntricos irradiam a partir dessa constatação e o movimento da trajetória de Renoir será o de expandi-los até os seus limites.

É curioso que ao olhar a fortuna crítica acerca de Renoir, diversos críticos apontam inúmeros filmes como pontos de ancoragem e virada, nos quais Renoir teria sintetizado e avançado numa série de procedimentos sobre os quais viria trabalhando ao longo de toda a sua carreira. O crime de Monsieur Lange (Le crime de Monsieur Lange, 1936; Jean-Claude Biette), A grande ilusão (La grande illusion, 1937; Paulo Emílio Sales Gomes), A Marselhesa (La Marseillaise, 1937-1938; Jean-Louis Comolli e François Truffaut), A besta humana (La bête humaine, 1938; Noël Herpe), A regra do jogo (La règle du jeu, 1939; Gilberto Perez e Olivier Curchod), A carruagem de ouro (Le carrosse d’or, 1952; Jacques Lourcelles e Thomas Elsaesser), French Cancan (1955; Tag Gallagher e Jacques Rivette), As estranhas coisas de Paris (Elena et les hommes, 1956; Jean-Luc Godard), O testamento do Dr. Cordelier (Le testament du Docteur Cordelier, 1959; Claude Beylie), O cabo ardiloso (Le caporal épinglé, 1962; Jean Douchet) e O pequeno teatro de Jean Renoir (Le petit théâtre de Jean Renoir, 1969-1970; Éric Rohmer e João Bénard da Costa) surgem, assim, como possíveis pontos de referência privilegiados para o estudo acerca da obra de Renoir. Quanto a Bazin, em sua monografia inacabada, é possível arriscar que o filme sobre o qual nutre mais simpatia e sobre o qual avança uma série de questões vinculadas principalmente à relação do cinema com as outras artes (ponto central do pensamento baziniano) é French Cancan. Contudo, o ponto nevrálgico, o momento no qual Bazin nos presenteia com um desvelamento completo dos procedimentos que orientam a obra de Renoir, é em sua análise sobre O rio sagrado (The River, 1949-1951), filme rodado por Renoir na Índia, após o fim de seu período americano e antes de seu retorno à Europa.

A assertiva mais polêmica de Bazin no estudo sobre o filme é a de que nessa obra, ao contrário de todo o percurso formal de Renoir, a concepção da tela do cinema como uma máscara (a qual convocaria o fora-de-campo para o jogo dramático proposto, dinamizando o método de improvisação do cineasta) entraria em desuso, dando lugar simplesmente à pura realidade. Traça-se uma linha evolutiva desde A regra do jogo (segundo Bazin, o momento mais bem-acabado da concepção do ecrã enquanto máscara) até O rio sagrado (instante no qual se desvela um novo salto evolutivo, o qual condensa e avança em relação a tudo aquilo que vinha sendo desenvolvido pelo autor). A essa hipérbole baziniana, muitos críticos tentaram responder com um método interpretativo que buscava solucionar esse problema dentro da “teoria do cinema”. Talvez a hipótese mais interessante tenha sido levantada por Prakash Younger, que em uma série de artigos procurou inserir a assertiva dentro de um quadro de referências artísticas adotadas pelo próprio Renoir, quadro esse que seria abandonado, de certa forma, em O rio sagrado. O que Younger afirma é que até então Jean Renoir trabalhara seu estilo dentro de um quadro de referências muito bem definido pela tradição francesa: o realismo de Flaubert e Balzac em oposição ao neoclassicismo de Marivaux e Musset. Seu método consistiria em promover um constante atrito entre tais tradições dentro de sua obra, gerando momentos reveladores e únicos, como o famoso instante da primeira relação amorosa em Um dia no campo (Partie de campagne, 1936-1946). Em O rio sagrado, ao entrar em contato com a civilização indiana, Renoir abandonaria esse quadro de referências, mas não o método de promoção do atrito no interior da obra, o qual seria levado a cabo pelas próprias “realidades” apresentadas na obra: o relato pela voz da protagonista já mais velha, que orienta a banda sonora, em oposição ao olhar da protagonista ainda jovem, que orienta a banda de imagem.

A interpretação pode soar satisfatória num primeiro momento, mas ela simplesmente ignora tanto todo o percurso do pensamento de Bazin acerca do cinema de Renoir, quanto todo o resto do próprio estudo que toma como ponto de partida. Em relação a esse, não é levado em conta que Bazin avança afirmando que a subversão da estrutura do ecrã enquanto máscara contamina a concepção e a composição de todos os planos do filme. Mais uma vez, O rio sagrado se presta, na concepção de Bazin, como obra que condensa e avança todo o percurso formal e temático de Renoir: fulcro moderno por excelência ao explicitar, da forma mais clara possível, o que está no cerne da obra de um dos mais modernos dos cineastas.

Esse ato de condensar e avançar pode ser resumido a partir de uma “teleologia do ecrã enquanto máscara” no cinema de Renoir. Logo em suas primeiras obras sonoras, Renoir demonstra uma propensão em compor os planos através de um constante jogo entre esconder e revelar na circulação das personagens pelos cenários. É aqui que se forja a utilização da composição em profundidade de campo e em plano-sequência, propaladas nos estudos bazinianos como índices do realismo de Renoir. Em A cadela (La chienne, 1931) e em Boudu salvo das águas (Boudu sauvé des eaux, 1932) esse tipo de abordagem será fundamental na construção daquilo que Bazin, em seu estudo “Renoir français” (“Renoir Francês”), classificou como o gosto do cineasta não pelo encadeamento dramático tradicional, mas sim pelas coisas e os seres que compõem o mundo, sendo capaz até mesmo de promover um descolamento radical entre a plausibilidade dos elementos que utiliza e a lógica narrativa usualmente demandada. Evidenciar, isolar e integrar a partir de uma perspectiva de estranhamento em relação ao meio, é assim que podemos resumir o ecrã enquanto máscara, da perspectiva dos seres que habitam essas obras, no Renoir do início dos anos 1930. Não é à toa que nessa fase o ápice dessa abordagem se dará num filme muito admirado por Bertolt Brecht – de acordo com o próprio Renoir –, que é Madame Bovary (1933-1934, o qual em sua estrutura episódica e elíptica também já antecipa os avanços que François Truffaut notará em A Marselhesa).

É, porém, em A regra do jogo que a análise de Bazin acerca de O rio sagrado se ancora. Para o crítico, O rio sagrado representaria em 1951 aquilo que A regra do jogo fora em 1939. Estamos falando de uma evolução formal, de uma intensificação do domínio e conhecimento do cineasta em relação ao seu meio. De novo, voltemos à “teleologia das máscaras”. Dentre todos os famosos momentos de A regra do jogo, um dos mais emblemáticos é quando a personagem de Nora Gregor toma um binóculo e seleciona como campo de visão seu marido traindo-a com outra convidada. Assim como em Boudu, esse dispositivo óptico – que opera a partir do mesmo princípio de seleção e recorte da câmera cinematográfica – irá pinçar algo que deflagrará a ruína e a destruição de uma estrutura. Em A regra do jogo, a partir desse momento, todos os jogos de ciúme e paixão se espraiarão pela estrutura do filme. Quando estão dentro da mansão pela qual circulam, a entropia propalada por tais personagens parece esbarrar justamente nas paredes e bordas dos quadros que delimitam a encenação de Renoir, tendo, assim, os seus efeitos minimizados. Quando a situação foge do controle, passando do ambiente fechado ao ambiente aberto, essa mesma entropia é impossível de ser controlada, resultando justamente no crime que tragicamente encerra essa farsa (nesse sentido, a morte do coelho durante a caça e o acidente automotivo de Octave e Jurieux se configuram como presságios de morte).

E como essa “teleologia do ecrã enquanto máscara” evolui em O rio sagrado? Em entrevista a Rivette e Truffaut – publicada em duas partes nos números 34 e 35 dos Cahiers du cinéma – Jean Renoir elenca uma série de traços do seu método de trabalho que são cruciais para a compreensão de seu estilo. O principal deles é a sua verve de improvisador e como ela dita a estruturação do olhar e do encadeamento dos planos em sua obra. Em determinado momento da entrevista, Renoir explicita sua busca constante por uma espécie de destruição/eliminação da quarta parede. Ao recusar a composição de seus planos em campo e contracampo, numa relação imediata com a presença e verdade do ator em cena, ele manifesta um desejo de incorporar uma espécie de realidade global da cena (o que levaria Bazin, também em “Renoir français”, a afirmar uma suposta impressão de descompasso e desarranjo nas obras do autor, convertidas, posteriormente, na possibilidade de entendimento das mesmas somente a partir de um profundo amor nutrido pelos seres e pelas coisas que as atravessam). Assim como a proposição de Sharits, Renoir sabe da impossibilidade de seu desejo; ainda assim, o que o interessa é justamente a dinâmica imposta a partir dessa interdição. É daí que devemos buscar o salto que Bazin sugere em O rio sagrado.

Muito já se falou sobre a correlação entre a presença do rio e o tema abordado pelo filme: o ciclo de vida e morte, a correlação e contiguidade entre todos os elementos que constituem a realidade física (ideias oriundas do contato de Renoir com a civilização indiana) seriam reflexos justamente da estrutura física e cíclica das águas que margeiam os ambientes habitados pelas personagens. O que raramente se menciona é como essa estrutura – tal como os aparatos ópticos de Boudu e A regra do jogo – contamina toda a encenação do filme. Da câmera enquanto máscara, a qual funda uma relação dinâmica entre o concreto da cena e o abstrato do que se encontra à margem, à câmera se aproximando ao comportamento de um rio, que a tudo busca envolver e captar: é esse o percurso de Renoir e é o que concretiza sua ambição improvável de eliminação da quarta parede em O rio sagrado. Eis o dilema que nos colocam, por exemplo, as sequências que retratam a chegada do capitão John e o cochilo das personagens, precedendo o ataque fatal a Bogey. O que se vê em ambas é uma dinâmica de aproximação e afastamento da câmera que pouco condiz com a estrutura esperada de uma apresentação de personagem ou de instauração de uma atmosfera que prenuncia uma tragédia. No entanto, Renoir é extremamente bem-sucedido na captação desses instantes, justamente pela compreensão total dos mesmos residir tanto naquilo que nos escapa num primeiro olhar, quanto naquilo que escapa à câmera e à montagem numa construção usual. É necessário que, tal como um rio, seja feito um esforço a fim de tudo envolver, ainda que o desvencilhar-se por completo das constrições materiais, rumo a uma liberdade total do olhar, seja apenas uma miragem.

O rio de Sharits manifestava seu drama ao se encontrar comprimido entre duas superfícies que iam se achatando progressivamente. O rio de Renoir manifesta seu drama na constatação da impossibilidade de abarcar toda a realidade desejada. Aqui, mais do que nunca, Renoir aciona uma série de elementos que irradiam a partir do núcleo central sobre o qual falávamos. Dentre esses elementos, o principal talvez seja a cor, um Technicolor que ao mesmo tempo nos coloca muito próximos daquele mundo, mas ao mesmo tempo muito longe do imaginário que nutríamos dele.

No documentário Louis Lumière (1968), Éric Rohmer registra os depoimentos de Henri Langlois e Jean Renoir após uma sessão de curtas-metragens produzidos sob a égide da figura que dá título ao filme. Em dois momentos, Langlois cita frases a respeito da produção de Lumière que poderiam perfeitamente figurar como princípios norteadores do cinema de Renoir. Primeiro ele diz que o que é captado pelos curtas de Lumière não é a História oficial, mas sim a vida. Num segundo momento, ele afirma que, apesar dos pesares, o cinema permanece sendo uma arte eminentemente plástica, delimitada pelo suporte da película e pela câmera. Eis possivelmente a enunciação perfeita do princípio da incerteza do cinema de Renoir, princípio esse que se encontra em seu núcleo de difusão (ou seja, a mesma dinâmica do núcleo de Sharits, entre o concreto e o abstrato, numa busca por uma unificação da ideia de materialismo), norteando todas as investigações e sondagens que dali irradiam.

Não é de se espantar que a carreira de Renoir, antes de sua obra derradeira apenas em 1970, tenha passado por mais dois estágios significativos. O primeiro é a confecção, logo em seguida de O rio sagrado, da sua “trilogia do espetáculo”. É como se Renoir refizesse o mesmo filme três vezes em sequência, apenas para revolver o dilema mencionado por Anna Magnani ao final de A carruagem de ouro: onde termina a vida e onde começa a encenação? Os três filmes se comportam como uma condensação de métodos e estilo, atingindo um ápice que só poderia ser deflagrado a partir da feitura e passagem pelo O rio sagrado. O segundo é uma espécie de retorno à fábula elementar. É como se após passarmos pelo Ulisses de Joyce, e pelo Dom Quixote de Cervantes, chegássemos às fábulas de Esopo. Não se trata de uma afirmação de cunho qualitativo, mas apenas, mais uma vez, uma constatação de método: da síntese paradoxalmente expansiva da “trilogia do espetáculo”, à síntese realmente elementar e temática de O almoço sobre a relva (Le déjeuner sur l’herbe, 1959), de O cabo ardiloso e, principalmente, de O pequeno teatro de Jean Renoir. O que não deixa de guiar o seu pensamento e a sua prática, no entanto, é aquele núcleo em fusão do qual falávamos: fonte vital do cinema moderno.


* * *

Quando essa aventura estava no fim, eu voltei para fora de casa,
tendo a oportunidade de tomar um ar fresco.
— Jonathan Swift, As viagens de Gulliver

Voltemos, pela última vez, ao texto de Aumont. Ao final de seu percurso, o ensaísta propõe o que seria uma “segunda modernidade” para o cinema no século XXI. A possibilidade dessa suposição se dá pelo simples fato de que, ainda segundo o autor, o cinema – ao contrário de todas as outras artes – manteve-se fiel a si próprio, tal como em seu princípio, pouco alterando sua dinâmica ao longo das décadas. Trocando em miúdos, assim como no início do século XX, o que ainda rege as produções cinematográficas seria a perpétua tensão entre uma arte voltada às massas, em paralelo a uma outra vertente, voltada a especialistas ou conhecedores com interesse especial pelo cinema (no desenvolvimento das outras artes, teríamos apenas a sobrevivência dessa segunda vertente). O termo “segunda modernidade” e a dinâmica que o origina podem soar um tanto quanto arbitrários, mas as três características elencadas por Aumont como possíveis guias dessa “segunda modernidade” são de especial interesse. Ele diz que o que caracterizaria tais obras seria: sua não-definição pelo passado, nem pela vocação da “tradição traída”, mas sim por uma atenção a um futuro próximo, já contido no presente; a percepção de como a tecnologia, de uma forma geral, afeta o cinema como um todo (e não apenas obras específicas), tanto em sua apreciação estética quanto em sua função social; e como a história e os momentos do cinema poderiam se comunicar independentemente de uma linhagem cronológica ou causal. Aumont ainda convoca, por fim, uma “segunda política dos autores”, dotada da mesma intempestividade da primeira, a fim de acompanhar essa “segunda modernidade”. Pois bem, Holy Motors (2012), de Leos Carax, preenche aparentemente todos os “requisitos” elencados por Aumont. Há mais, porém.

Num ensaio intitulado “O que resta do cinema?” (2012) – publicado um pouco depois de Moderno? – Aumont argumenta que um dos traços do cinema que ainda permanecem na configuração das experiências visuais é a centralidade dos parâmetros estabelecidos pela sétima arte na organização do olhar e da atenção. Essa asserção entra em aparente choque com a posição de Ismail Xavier, que no final de seu posfácio (publicado na reedição de 2008) a O discurso cinematográfico – A opacidade e a transparência afirma que há uma perda da centralidade dos parâmetros estabelecidos pelo cinema na configuração das experiências visuais da atualidade. Para além de resolver a querela, o filme de Leos Carax parece incorporar o dilema em sua constituição. Se no núcleo de Sharits e Renoir havia a dinâmica do concreto e do abstrato, embasada pela ideia de uma arte materialista, no núcleo de Carax está justamente o embate permanente entre a perda e a permanência da centralidade dos parâmetros cinematográficos na organização de nosso olhar e de nossa atenção. Holy Motors, primeiro filme moderno do século XXI?

 

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