ESPAÇO: MESA-REDONDA COM JACQUES RIVETTE
JACQUES RIVETTE: O que se passou efetivamente durante esses dois dias foi que não somente não demos uma resposta à questão do espaço, não somente não colocamos a questão do espaço, mas apenas penosamente chegamos a nos colocar a questão do espaço; não somente não colocamos a questão do espaço, mas apenas penosamente chegamos a nos colocar a questão a respeito da maneira com que poderíamos colocar a questão do espaço. A dificuldade em que tropeçamos o tempo todo foi: como, em quais termos colocar a questão do espaço; o equívoco e o jogo de palavras dos quais partíamos não cessou de se multiplicar e de se dividir ao mesmo tempo, e o termo “espaço” adquiriu pelo menos dez sentidos diferentes.
JACQUES AUMONT: Penso que estamos, ainda assim, bastante de acordo, aqui e agora, em ver este debate, em relação àquele que houve sobre a montagem, como sendo relativo ao que se passa no nível da rodagem – a montagem sendo uma operação que vem bem depois da rodagem – ou seja, grosso modo, todos os problemas de mise en cadre e mise en scène (tendo em vista o que estas noções podem ainda significar) e, por outro lado, no outro extremo da cadeia da comunicação – ou seja, no estágio de leitura do filme –, tudo que pode girar em torno das noções de “metaforização”, na medida em que implicam o espaço. Essas foram as duas ideias de partida, que jamais chegaram a se fundir, e nenhuma das duas foi claramente definida.
SYLVIE PIERRE: Será que, do mesmo modo que podemos, a propósito da montagem, partir da operação bastante concreta de montagem, podemos, a propósito do espaço, partir de um exame bastante concreto do espaço? Pois partimos de filmes dos quais uns eram feitos de espaços ostensivos (Muriel [Muriel ou le temps d’un retour, Alain Resnais, 1963]), mas também de filmes para os quais isso não era tão evidente.
JACQUES AUMONT: Chegamos muito rapidamente, com efeito, a falar de “espaço de um mito” com Terra bruta (Two Rode Together, John Ford, 1961), que se situaria no espaço mítico do western; mas tais noções permaneceram muito vagas.
JACQUES RIVETTE: O fato de considerar os ambientes foi nosso ponto de partida; de um ponto de vista puramente prático, poderíamos distinguir, partindo da etapa da filmagem, várias categorias de espaços: o espaço do referente (Muriel, O garoto Toshio [Shōnen, Nagisa Ōshima, 1969]), ou sistema de todos os espaços particulares implicados na rodagem do filme; depois, os diversos campos espaciais circunscritos, ou definidos, nesse espaço do referente, pelas diferentes posições do objeto-câmera ao longo das diferentes etapas da operação-rodagem (os fragmentos de espaço assim decupados possuindo eles mesmos uma dimensão temporal: um início e um fim); e a soma desses diferentes fragmentos de espaço assim fabricados talvez possa ser chamada, de certa maneira, de espaço do filme. É necessário fazer logo uma segunda distinção, e ver que esse espaço material implica uma operação análoga no espaço ideológico, e que teríamos portanto um espaço do referente ideológico (o western em Terra bruta) e uma decupagem desse espaço pelo filme, de modo a criar seu espaço ideológico próprio.
JACQUES AUMONT: Com efeito, trata-se de duas coisas extremamente diferentes, uma muito concreta (“como um cineasta utiliza o espaço, como ele insere e desloca sua câmera nele – Jancsó etc.”) e a outra sendo “como lemos o filme, em relação a qual referente cultural, quais são as conotações que podemos encontrar nele etc.”. A junção entre as duas me parece repousar, no momento, sobre um puro jogo de palavras, sendo talvez necessário antes nos perguntarmos se a interrogação desses dois aspectos realmente faz parte do mesmo debate.
PASCAL BONITZER: De fato, a questão do espaço, no seu segundo aspecto, tal como foi definida, atravessa a questão da montagem; a montagem articula o espaço, mas pode também defini-lo (cf. a maneira como são filmados os objetos em Muriel).
SYLVIE PIERRE: Retorno a um detalhe: quando falamos da “soma dos espaços”, que engendra o espaço do filme, isto é na realidade muito mais que a soma, na medida em que o espaço do “campo” não é o único a delimitar um espaço.
JACQUES RIVETTE: Quanto à intervenção da montagem na criação do espaço, ela está implicada na finalidade da segunda operação (a sucessão dos diferentes campos decupados no espaço do referente engendrando um espaço).
JACQUES AUMONT: Está claro, na verdade: decupagem pela mise en scène + a mise en cadre de um certo número de espaços, recompostos pela montagem.
PASCAL KANÉ: Parece que o debate começa mal na medida em que já fizemos intervir a noção de montagem; a montagem é uma prática, e era muito mais fácil a seu propósito delimitar o objeto do discurso; o espaço é, no cinema, uma dimensão ideológica...
JACQUES RIVETTE: Creio que não podemos evitar o fato de que até segunda ordem essa decupagem do referente é feita mediante um instrumento, a câmera, feita basicamente a partir do princípio da câmara escura, com uma lente única decupando um campo obrigatoriamente submetido às linhas de força da perspectiva (as quais podemos manejar mediante o emprego de diversas lentes). Não saímos da operação “decupagem ‘e condensação’ de um espaço concreto, global, ilimitado de certo modo, num espaço rigorosamente delimitado que se resume em seguida por imagens em celuloide, os rushes”.
O espaço é obrigatoriamente o produto de uma operação entre uma mecânica, o utensílio do cineasta, e um referente, que pode ser o universo inteiro ou uma série de cartões na câmera de animação. Única exceção: o trabalho direto na película.
PASCAL KANÉ: Parece-me que é necessário colocar de antemão um problema específico, aquele da passagem de um referente real a um meio ideológico que seria a cena.
JACQUES RIVETTE: Sim, mas isto é ir muito rápido e supor implicitamente a ligação, que decidimos recolocar em questão entre essas duas problemáticas; falamos por enquanto unicamente do primeiro nível.
JEAN NARBONI: Creio que estamos em vias de misturar coisas que não têm absolutamente nenhuma relação. Quando falávamos de montagem, nós a consideramos retrospectivamente, isto quer dizer que diante do filme terminado retornamos a esta prática da montagem tentando estabelecer onde estava o seu dinamismo – mas não consideramos a etapa da montagem separadamente de nosso processo de leitura. Ora, hoje estamos em vias de confundir o referente e o significado; é apenas a partir da leitura do filme que chegamos a reconstituir esse “espaço denotativo” e o espaço do referente, que é aquele da rodagem, pertencente a uma ordem do saber fundamentalmente diferente.
Não podemos, absolutamente, colocarmo-nos na etapa da rodagem para dizer “ele colocou sua câmera aqui ou ali”, só podemos retomá-la a partir do processo de leitura.
PASCAL KANÉ: Você quer dizer que vemos o referente apenas através da cena.
JACQUES RIVETTE: Estou de acordo; a ordem inversa me parecia mais clara à exposição. Insisto sobre um ponto: a leitura do significado recompõe em seguida uma espécie de referente imaginário, mas é em relação a esse referente imaginário global que podemos interrogar o trabalho disso que chamas de significado...
Falei em termos de prática da filmagem e, com efeito, seria melhor falar em termos de leitura do filme. Tomemos um exemplo para marcar a necessidade da reconstrução no imaginário desse espaço do referente: se colocamos um ao lado do outro Festim diabólico (Rope, Alfred Hitchcock, 1948) e Muriel (o apartamento), é somente em relação a esse referente global imaginário que podemos, em seguida, analisar o trabalho de Hitchcock, jogando a carta da continuidade absoluta e da estruturação clara e legível desse espaço (na aparência), e o de Resnais, jogando com a descontinuidade espaço-temporal; (primeira consequência: pode-se fazer uma planta do cenário de Festim diabólico, jamais de Muriel).
JEAN NARBONI: Mas tudo isso surge apenas no final de nosso processo de leitura (da primeira visão, pelo menos); seria necessário, portanto, tentar evitar a ilusão da revisão diante de cada filme...
JACQUES RIVETTE: A questão na verdade é a de saber se o filme deve ser visto a partir do começo ou do curso de sua leitura, ou a partir do fim de sua leitura.
JACQUES AUMONT: Na medida em que o filme é um objeto que possui uma dimensão temporal, que ocupa uma hora e meia de nosso tempo, é preciso vê-lo a partir do começo da leitura; efetivamente, falseamos muito o problema tomando-o pela óptica do já-visto.
JACQUES RIVETTE: Creio que a questão do espaço – como, no mais, a questão da montagem – obriga a falar do filme a partir de uma releitura do filme informada por uma primeira leitura.
JACQUES AUMONT: De fato, e muito paradoxalmente, a questão da montagem não se dá tanto através do fato de que o filme se desenrola no tempo, enquanto que, para ler o espaço corretamente, é preciso ter em conta primordialmente o fato de que isto se dá no tempo e o fato de termos visto o filme uma ou duas vezes, de que já o vimos inteiramente ou não.
JACQUES RIVETTE: Talvez seja por isso que a questão colocada pelo espaço “concreto” remete obrigatoriamente àquela do que chamo provisoriamente de “espaço do filme”?
JEAN NARBONI: Continuo achando que seria perigoso partir do inverso. Encontramo-nos diante de um mecanismo que é um filme, que fornece significantes de superfície, a partir dos quais devemos encontrar o mecanismo profundo, com o risco de encontrarmos no caminho esse espaço referencial diante do qual um dia colocou-se uma câmera, mas não podemos colocar esse problema independentemente de nosso processo de leitura e dividi-lo arbitrariamente em “espaço do filme” e “espaço além do filme”, porque o nível denotativo aparece ao fim ou no curso da leitura, mas ao mesmo tempo em que percebemos que ele é a todo instante conotativo. É no final de Festim diabólico que chegamos a reconstruir o espaço referencial, justamente ao reparar as infidelidades múltiplas que o trabalho do cineasta pratica num local que não conhecemos, e que conheceremos depois.
PASCAL KANÉ: Mas se você permanece em pura posição de leitura não pode extrair a priori o interesse dessa problemática, pois é justamente o fato de saber que se trata de um espaço que mudou de estatuto que permite extrair o interesse da noção de espaço. Não é possível considerar o problema partindo de uma posição de leitura; esta não pode ser uma leitura inocente, somente uma leitura informada, pois numa leitura há apenas uma dimensão do espaço, aquela do espaço do filme.
JEAN NARBONI: Toda a dificuldade está aí; é que, diante do filme como diante de um quadro, encontramo-nos diante de qualquer coisa que já é legível e que está para ser lida ao mesmo tempo, logo a precessão é muito difícil. Encontramo-nos diante de um texto completamente constituído e, ao mesmo tempo, nulo enquanto não for lido.
SYLVIE PIERRE: No limite, você diria que o espaço denotativo vem no fim do filme...
JEAN NARBONI: Que o significado nasce de todas as permutações de significantes, e não pelo inverso, e que não há um nível denotativo...
JACQUES RIVETTE: Há um denotativo instantâneo, perpetuamente posto em causa pelo filme, que faz com que só tenhamos um denotativo definitivo ao fim do filme; mas há, mesmo assim, desde a primeira imagem, um denotativo.
SYLVIE PIERRE: Isto é o que eu queria dizer: desde a primeira imagem, temos (um) denotativo na medida em que podemos (ou, no mais, não podemos) saber onde estamos. O local nos é mostrado: isso é denotação pura. Ou então, no primeiro plano, cremos estar numa multidão, em terra firme e, no plano seguinte, percebemos que na realidade estávamos numa multidão prestes a descer de um caminhão. É o começo de A noiva dos Andes (Andesu no hanayome, Susumu Hani, 1966).
Em cada plano há um “onde estamos?” que podemos considerar como o nível da pura denotação, mas que em seguida pode ser emboscado ou suspendido.
PASCAL KANÉ: Mas aí você fala de diegese, não do espaço real; eis por que considero o termo “denotação” ambíguo.
SYLVIE PIERRE: Falando do local e do espaço, a denotação é o que responde à questão “onde?”.
JEAN NARBONI: Mas “onde estamos” no espaço do referente ou no espaço “fílmico”?
(Segue uma descrição, para uso de Jean Narboni, do primeiro plano do filme de Hani)
SYLVIE PIERRE: Com efeito, através do jogo praticado por Hani, percebemos que a nossa percepção do espaço foi ludibriada, e que há como que uma denotação “em dois tempos”, que nos faz perceber que o local não é aquele que imaginávamos.
JACQUES AUMONT: Bom exemplo, aliás, de um caso no qual uma leitura informada pode resolver problemas de espaço que se colocam numa leitura inocente; isto se dá, aqui, ao nível de alguns planos somente, mas também pode se dar, evidentemente, num filme inteiro. Retornamos ao problema das segundas leituras.
JEAN NARBONI: Só obtemos, portanto, esse espaço referencial a partir do segundo plano; é justamente isto que eu queria dizer a propósito da conotação. É no final de uma figura conotativa (mudança de plano como aqui, mas poderia ter sido um zoom, por exemplo) que se obtém o puro nível denotativo, a saber, alguém descendo de um caminhão em meio a uma multidão.
PASCAL BONITZER: Permanecemos de fato sempre no nível conotativo...
JACQUES AUMONT: Como demonstra A carruagem de ouro (The Golden Coach/Le carrosse d’or, Jean Renoir, 1952), onde não cessamos de sair de uma caixa para entrar em outra...
JEAN NARBONI: É bem aí que eu queria chegar: na minha opinião, não há nível puro de denotação da imagem; a vocação analógica não existe.
SYLVIE PIERRE: De que forma lemos, efetivamente, o “onde estamos?” senão através dos signos e, portanto, pelo jogo da conotação? O exemplo de Hani é notável: diante de suas primeiras imagens eu li, de minha parte, “briga de galo”; pode-se ler igualmente “caminhada”, pelo tumulto e pelo fato de que todo mundo olha para baixo.
JEAN NARBONI: Logo, é pelas conotações – as quais podem vir ou de um certo número de indícios colocados pelo cineasta no filme, ou de certas predisposições pessoais a ler alguma coisa, a partir de determinado plano, jogando elas mesmas, por reação, com as lexias do plano seguinte – que chegamos o mais perto daquilo que seria o mais próximo de um objeto denotativo, mas que nunca o é puramente no cinema.
JACQUES RIVETTE: Em resumo, isso funciona por um sistema de deslocamentos e de diferenças, como todo processo de sentido, ao que parece, sistema pelo qual a infinita sucessão das próprias conotações, em diferentes quantidades, conduz o espectador, permitindo-lhe construir no seu próprio imaginário (ele não é capaz de não construir) um denotativo global em relação ao qual ele lerá as conotações seguintes.
JEAN NARBONI: É totalmente estéril saber que Hani fez primeiro um plano aproximado e depois um plano aberto etc.
PASCAL KANÉ: Não é totalmente estéril, na medida em que a única maneira de ultrapassar ou evitar a conotação é estabelecendo a oposição diegese/referente. O referente sendo a dimensão na qual não pode haver conotação, esta se dando, ao contrário, plenamente na diegese, ou local do significado (como o filme é, segundo Metz, o local do significante).
JACQUES RIVETTE: Dito isto, o interesse de colocar a questão do espaço foi precisamente o de sair dessa primeira problemática – que está longe de ter sido esgotada – para passar a uma segunda etapa, sempre sabendo que não deixamos de passar por uma espécie de golpe da leitura informada.
O problema para mim no início foi um pouco o de saber como nos situamos hoje em relação à problemática de Ollier, que nos impactou tanto há alguns anos.
JEAN NARBONI: Trata-se essencialmente de dois textos, “Les petits films modèles” e “Projet de lettre à Jean Ricardou”[2]. No segundo texto, ele falava da descrição no romance, e em seguida passava ao cinema para dizer que, numa grande parte do cinema moderno, não se podia falar de “aventuras se passando em um espaço”, mas de “aventura espacial”, na qual as transformações do espaço engendravam todos os episódios da ficção. No primeiro texto, ele falava essencialmente da cena da cabana em Em busca do ouro (The Gold Rush, Charles Chaplin, 1924-1925) e da cena de O testamento do Dr. Mabuse (Das Testament des Dr. Mabuse, Fritz Lang, 1933) etc., para concluir que o cinema é uma espécie de modelo de gerador de espaços.
JACQUES RIVETTE: E também o que disse de Muriel, como jogo nos espaços e dos próprios espaços, e como fenômeno centrífugo.
JEAN NARBONI: Ou ainda seu artigo sobre o episódio de Paris visto por... (Paris vu par..., Jean Douchet/Jean Rouch/Jean-Daniel Pollet/Éric Rohmer/Jean-Luc Godard/Claude Chabrol, 1965) de Rouch (Gare du Nord), onde a firmeza de ancoragem ao nível do espaço fazia com que a improbabilidade da ficção ganhasse força.
PASCAL BONITZER: O que me assombra é que todos os exemplos que demos estabelecem uma definição de espaço que se define pela sucessão e pela ruptura e, de modo algum, pelo que a noção sugere a priori, ou seja, continuidade e extratemporalidade.
JACQUES RIVETTE: Isso é algo de que não podemos escapar, na medida em que o filme é espaço ligado ao tempo. Os filmes de Lumière, por exemplo, no interior de um plano fixo jamais colocado em questão: produz-se um certo número de eventos espaciais e temporais, criando modificações tais que o espaço, ao fim de cinquenta segundos, não é mais o mesmo que era cinquenta segundos antes. Ou ainda, o primeiro plano de Détruisez-vous (Serge Bard, 1968-1969), plano fechado da moça fixando a câmera e permanecendo rigorosamente imóvel: pela própria duração do plano, há certas modificações...
Há uma modificação pelo simples fato de que nós, nós estamos diante desse plano que dura.
JACQUES AUMONT: Por uma primeira razão, pelo menos: é que diante de um plano longo temos mais tempo para explorar o campo do olhar; isso modifica forçosamente, portanto, a percepção que temos dele.
JACQUES RIVETTE: Retornemos ao exemplo de Lumière, mais esclarecedor, na medida em que o que Bard quer realizar é a precipitação na pura projeção do espectador sobre a tela – o que, no momento, é uma questão que não nos interessa tanto. Quanto a Lumière, ele evidentemente não procurava isso...
SYLVIE PIERRE: Lumière buscava que o espaço se organizasse, justamente, o máximo possível; era uma dramaturgia, pela escolha dos locais.
JACQUES RIVETTE: Havia uma dramatização pelo quadro, e – como afirma Langlois – pela escolha do momento.
Portanto, o problema do espaço não escapa à descontinuidade, nem que seja para incorrer nos problemas – que hoje estão além de nossa alçada – do espaço puramente projetivo, subjetivo, do espectador, diante de algo que, ao contrário, se dá como rigorosamente não legível, ou cada vez menos legível, pela sua própria duração.
Voltando a Ollier, o grande interesse de seus textos foi o de colocar uma questão que ele não apenas nunca teorizou – isso não o interessava – mas nem sequer se colocou completamente e, em todo caso, da qual ele absolutamente não interrogou as consequências, ou o fez somente em filigrana. Tratava-se, portanto, de colocar essas questões em termos mais precisos (talvez mais pedantes também) e de ver a que, rumo a que, agora, essas questões nos conduzem.
SYLVIE PIERRE: Dizer que o cinema é a aventura do espaço é tão perigoso quanto dizer que a literatura é a aventura da escrita. Pois isso justamente dissipa tudo... (fim da bobina)
... em puras aventuras do espaço – não falo de Os ventos da história (Fényes szelek, Miklós Jancsó, 1968), que é mais interessante, mas de Sirokkó (Miklós Jancsó, 1969), onde Jancsó chega a puras aventuras do espaço, a um cinema caligráfico.
JACQUES AUMONT: É o equivalente puro daquilo que Ricardou decifrava em Poe e em A narrativa de Arthur Gordon Pym, e também do que ele próprio escreveu[3].
PASCAL KANÉ: Vocês se esquecem de uma coisa falando de Ollier, de que ele liga muito fortemente, pelo menos no primeiro texto, o espaço à personagem.
JACQUES RIVETTE: É verdade, se ainda assim nos colocássemos a questão de que não se tratam de espaços vazios, mas de espaços onde há personagens...
SYLVIE PIERRE: De fato, as personagens poderiam ser simplesmente traços...
JEAN NARBONI: O que me inquieta nas teorias de Jean-Louis (Comolli)[4] é essa vontade de dizer “não existe nada fora da película, não existe nada para além das bordas do quadro etc.”, e ele se colocaria em um ponto de vista extremo que não está absolutamente em jogo atualmente, uma vez que, de todo modo, não há relação de pura denotação possível, que estamos sempre obrigados a investir um saber, um conhecimento; Comolli tenta se colocar na problemática dos espectadores primitivos, que ao verem um plano fechado diziam “é alguém sem braços nem pernas”; a partir do momento em que reconhecemos uma personagem viva, não estamos mais no espaço do quadro... Mesmo assim são essas as teorias de Jean-Louis, se levadas até o fim.
JACQUES RIVETTE: Lanço-me a um outro parêntese; o que se passa a partir do momento em que Jean-Louis privilegia o fato dessa visão de um espaço puramente do quadro e de seus jogos. De um lado, o filme que ele mais gostou no Havre é O leito da virgem (Le lit de la vierge, Philippe Garrel, 1969); ora, percebe-se que é um filme que de certa maneira escapa em parte do jogo com o referente, ou do denotativo geográfico, topográfico, mas para se dedicar a jogar completamente em relação a um outro referente, que é o referente ideológico e cultural.
PASCAL KANÉ: O referente ideológico entra em jogo automaticamente, em tudo...
JACQUES RIVETTE: Em um filme como o de Garrel, ou os de Jancsó, onde a vontade do cineasta foi, de certa forma, senão a de apagar, ao menos de colocar entre parênteses toda relação excessivamente direta com o denotativo, só vemos mais nitidamente como o mesmo prolifera no filme e como o filme só se justifica em relação ao espaço mítico.
PASCAL BONITZER: Mas os de Garrel de uma maneira bem mais honesta (exemplo do mito da caixa de Pandora).
JACQUES RIVETTE: Talvez na medida em que nós estamos, aproximadamente, no mesmo campo cultural que o de Garrel, enquanto que em relação a Jancsó nós só o conhecemos de segunda mão; é um pouco o mesmo infortúnio que aconteceu com o cinema japonês...
JEAN NARBONI: Aliás, Jean-Louis foi obrigado a reconhecer que os húngaros liam os filmes de Jancsó de uma maneira bem menos abstrata do que nós. Silêncio e grito (Csend és kiáltás, 1967) é mesmo, para eles, um filme que assume uma posição.
PASCAL BONITZER: Mesmo que apenas na medida em que, para eles, calar-se já equivale a assumir uma posição.
(Aqui eu censuro uma frase antissoviética de Jacques Rivette)
JEAN NARBONI: De acordo com a primeira parte da discussão, concluímos que não existe analogia pura no cinema, e em seguida admitimos que tampouco existe uma superfície pura da tela fora da qual nada poderia intervir. Somente antes e depois da projeção é que podemos ver a tela com toda a sua pureza e toda a sua platitude.
É a partir daí que podemos retomar um pouco a problemática de Ollier, uma vez que finalmente a margem diminui: saber em qual caso há, justamente, espaço do filme, e por quais meios, e em qual caso não há essas aventuras do espaço por esse drama espacial, e onde nos aproximamos de um cinema naturalista, realista, embora saibamos que ele não nunca deixa...
PASCAL BONITZER: O cinema naturalista é apenas uma dramatização particular do espaço.
JACQUES RIVETTE: Certamente. É um caso particular, ainda assim interessante na medida em que é um caso limite, pelo menos na história do cinema ocidental, para o qual tendeu toda uma parcela, a mais importante do cinema ocidental (incluindo, evidentemente, o cinema americano), como um ideal: o ideal da inocência; reencontramos uma problemática análoga àquela que encontramos para a montagem. Assim como o cinema ocidental tendia a oferecer a ficção de um tempo narrativo contínuo, ele tende a oferecer a ficção de um espaço homogêneo e coerente. Sem história. Em todos os sentidos da palavra.
JEAN NARBONI: Seríamos tentados então a dizer, no extremo, que do mesmo modo que se tentou fazer filmes em que não acontece nenhuma aventura disparatada no tempo, tentou-se fazer, em uma certa tradição do cinema ocidental, filmes em que haveriam apenas aventuras que se passassem em um lugar, e nos quais não haveria verdadeiramente aventura do espaço. Ora, quanto mais o tempo é efetivamente o mais branco e o mais neutro possível, nesse cinema da continuidade, mais é falso para o espaço, que se pretendia bem carregado; e nesse sentido poderíamos dizer (que) o que marca a diferença entre esse espaço dinâmico e os filmes em que não sucedia nenhuma história no espaço é a diferença entre filmes em que o espaço é semanticamente bem carregado e filmes em que o espaço seria estruturalmente bem ativo. Mesmo nesses filmes em que não se desejava comprometer o espaço, ele podia ser tratado pela utilização do cenário, pelo modo como nos colocamos diante dele, pelas relações com a ficção; não se pode dizer que ele era tão neutro como o tempo tendia a ser nos filmes da continuidade.
JACQUES RIVETTE: Discordo. Pelo contrário, eu acho que há exatamente o mesmo problema; nesse cinema não se tratava, no tratamento do tempo, de manipular um tempo que teria sido dado como contínuo no absoluto, mas era, ao contrário, um tempo extremamente descontínuo, porém submetido às regras da narração romanesca, grosso modo, às regras da cronologia e da causalidade. E eu acredito que é a mesma coisa para o espaço: nós podemos ter nesse cinema espaços extremamente distintos, extremamente ricos, mas esses espaços só são, por um lado, explorados e, por outro, relacionados uns com os outros, na medida em que obedecem a relações dadas sempre como racionais e como causais e consequenciais.
PASCAL KANÉ: Concordo plenamente, é por isso que me parece que todo trabalho sobre o espaço desse cinema tradicional se faz através das personagens.
Eu posso dar alguns exemplos; em Terra bruta, se há um espaço mítico, isso se deve a certas características das personagens fordianas, que estão ligadas aos temas de Ford, como, por exemplo, o enraizamento e a maturidade. Se há esse espaço mítico é precisamente porque as personagens aparecem, antes de tudo, como desenraizadas; da mesma maneira, a maturidade dos heróis fordianos é o seu hiperconhecimento do espaço e a sua dominação do espaço; e é perfeitamente lógico, na medida em que essa maneira de estudar o espaço através das personagens preserva ao mesmo tempo o principio de causalidade e, digamos, de pura consciência que refletiria a personagem...
JACQUES RIVETTE: Em geral, estou de acordo com o que você diz; simplesmente creio que Ford não é um exemplo de cinema clássico em estado puro; são já filmes onde há um jogo mais ou menos consciente, em todo caso voluntário; e se nós “descobrimos” Ford nesses últimos anos, é que há somente alguns anos nós pudemos tomar consciência da maneira como Ford jogava com esse espaço supostamente tradicional; e nós só pudemos tomar consciência disso através dos filmes ditos “modernos”, os quais expõem esse jogo, o designam, enquanto que Ford, ou Renoir, não o exibiam.
PASCAL KANÉ: Mas eu falava exatamente de um cinema clássico que se coloca o problema do espaço; e ele apenas o resolve, ao que me parece, através das personagens; o outro exemplo que eu queria citar é Festim diabólico...
JACQUES RIVETTE: Não falemos de Festim diabólico, porque poderíamos falar dele durante dez horas. Prefiro que permaneçamos em Ford. Aborrece-me só de responder, porque acho que passamos a um estágio que eu penso ser ulterior à nossa reflexão: ...
Ford (A paixão de uma vida [The Long Gray Line, 1954-1955] talvez mais do que Terra bruta) passa seu tempo a jogar (como outros cineastas “clássicos”) com a decupagem e o enquadramento. Ou seja, o filme joga perpetuamente em relação a esse espaço do referente, que eu reintroduzo, apenas pela clareza da exposição, como preexistente – ele passa o seu tempo a jogar com a maneira como a cena, a sucessão dos acontecimentos dramáticos por um lado, é posicionada de certa forma puramente no espaço do referente, como se não houvesse inscrição da câmera, um posicionamento das personagens e das ações que tem um sentido em relação ao cenário; e esse posicionamento assume um segundo sentido devido à maneira com que ele é, em seguida, seja sublinhado, seja, ao contrário, “questionado”, pelas diferentes posições da câmera diante ou em torno dele.
E Ford joga com contínuas oscilações do espaço que em si mesmas só possuem sentido em relação a esse espaço global que nos filmes dele é sempre muito claro, muito legível, de certa forma transparente. Eu volto à minha distinção entre o “referente” e o “filme” e penso que a mise en scène, para Ford, é pensar no desempenho dos elementos de seu filme (personagens, objetos etc.) em um espaço concreto e repensá-lo, ao mesmo tempo (talvez sucessivamente, mas no jogo do filme isso vem ao mesmo tempo, já que só vemos o filme na sua leitura), nos campos sucessivos determinados pelas diferentes posições do aparelho-câmera, e as posições que os diferentes elementos ocupam nesses campos, tendo em conta os jogos de perspectiva dos quais falávamos há pouco. Ford é o exemplo puro desse cinema que começa com Griffith e se prolonga até mesmo aos nossos dias...
SYLVIE PIERRE: ... simultaneamente uma espécie de profundidade natural do local que lhe seria imposta, no qual ele insiste em se situar, e ao mesmo tempo ele jogaria com o auge da manipulação?...
JACQUES RIVETTE: Ele joga com a inscrição, em todo caso, dessa mise en scène natural. Todos o fazem, mas em Ford é muito claro; todos esses cineastas têm como ponto em comum privilegiar e até mesmo, salvo exceções, utilizar unicamente lentes não deformantes. Só utilizam a câmera, portanto, como aparelho supostamente inocente; o que não quer dizer – é o erro de Pleynet[5] – que essa utilização “transparente” da câmera os impede de saber que essa utilização determina os campos.
Todos os cineastas fazem assim, seja Ford ou Verneuil; a diferença é que em um filme de Verneuil podemos, na leitura do filme – somos até mesmo obrigados, dada a incoerência do filme –, dissociar essa dupla operação, porque ela não tem sentido, ela não cria sentido; ao passo que em um filme de Ford, ou de Renoir, essa dupla operação é completamente dialetizada, de tal forma que ela cria um sentido. Ford ou Renoir são pessoas que jogam perpetuamente com dois quadros. Eles jogam, de um lado, com o quadro de uma “ação” de certas personagens em certos locais, havendo um primeiro sentido por meio dos acidentes sucessivos dessa ação e as diferentes relações que se criam entre essas personagens e esses locais, como se houvesse uma espécie de “olhar de deus” dessas ações (é a concepção rohmeriana do cinema, que é no limite o sonho de um cinema sem câmera), e ao mesmo tempo esse é só um dos objetivos, um dos lados do seu trabalho; e, ao mesmo tempo, Ford ou Renoir jogam com a inscrição desse puro jogo espaço-temporal em um espaço divino.
JEAN NARBONI: Rohmer repetiu isso na entrevista aos Cahiers, citando Les godelureaux (Claude Chabrol, 1961).
JACQUES RIVETTE: É por isso que agora podemos ver os filmes de Ford ou de Renoir de maneira diferente, porque podemos ter uma consciência mais nítida desse jogo; em outros tempos só podíamos ver isso como um puro trabalho da decupagem e do enquadramento, que era também empregado muito bem em filmes de cineastas americanos menos importantes, ou então não podíamos distinguir Lang e Pabst – a não ser pela temática, e foi por isso que a crítica demorou tanto tempo nesse impasse da temática.
JEAN NARBONI: Bem grosseiramente, é como as pessoas que puderam confundir Vermeer com qualquer pintor supostamente fotográfico; são aqueles que fingem se instalar na pura representação e no puro mimetismo (em oposição a outros cineastas “modernos” que se instalam, de imediato, na opacidade significante), apesar de saberem que...
JACQUES RIVETTE: Foi possível distinguir Vermeer de Pieter de Hooch a partir de Cézanne. Isso vem de Malraux, mas não está tão errado.
PASCAL KANÉ: Eu tentava apresentar uma relação dialética para o espectador entre o espaço e a personagem, e eu penso que essa relação dialética evolui de um cinema tal como aquele de Ford até o cinema moderno.
JACQUES RIVETTE: Sim, na medida em que a manipulação do espaço e do tempo, e o estatuto da personagem, mudaram.
PASCAL KANÉ: É porque a personagem passou de uma pura consciência totalizante...
SYLVIE PIERRE: Uma personagem não tem consciência.
PASCAL KANÉ: Supõe-se que a personagem represente para o espectador um nível de consciência total no cinema clássico; ele, o espectador, se reconhece inteiramente na consciência da personagem. E, nesse sentido, todo trabalho sobre o espaço só pode se realizar através da ação da personagem.
Althusser opõe uma consciência parcial a uma consciência totalizante e cita o espetáculo clássico como exemplo dessa consciência total, em oposição ao espectador moderno que já não é mais que uma consciência parcial[6]. E é este o caso no cinema moderno: em O leito da virgem, as personagens são vistas completamente do exterior. E o trabalho sobre o espaço pode ser feito independentemente da personagem “(exemplo: Goto, a ilha do amor [Goto, l’île d’amour, Walerian Borowczyk, 1968-1969]).”
SYLVIE PIERRE: Eu gostaria de dizer um truísmo. Tentávamos falar do cinema como a pura aventura do espaço e tínhamos dito que não poderia ser de fato isso; e, contudo, há espaços (os do western, particularmente) sobre os quais podemos dizer que não são senão o puro traço da aventura do cinema.
PASCAL KANÉ: No cinema moderno, cada vez mais, o trabalho sobre o espaço é direto, ele é independente das personagens, ele não é mais mediatizado por elas. A própria personagem só possui sentido à medida que é tomada em uma diegese narrativa e porque o espectador ali se reconhece.
JEAN NARBONI: Dito de outra forma, em todo o cinema clássico a ficção só tinha como receptáculo um lugar, e no cinema moderno ocorre uma verdadeira ficção do lugar, que pode estar em acordo ou em desacordo com a ficção das personagens...
PASCAL BONITZER: É o estatuto e a perspectiva do acontecimento que mudam.
PASCAL KANÉ: Mas a palavra “personagem”, enquanto contrária (àquela) do “ator”, define-a como implicada numa ficção. E há uma libertação bem surpreendente.
JACQUES RIVETTE: Da qual, retrospectivamente, podemos encontrar os signos ou o traço em certos filmes que se dão como...
SYLVIE PIERRE: É aí que Leone é apaixonante, porque em relação ao western clássico, onde o ambiente era algo puramente ideológico, há aqui dissociação entre os ambientes: o ambiente real, o Oeste, tal como foi historicamente (a Guerra de Secessão, a construção das ferrovias), e o ambiente exposto à história no sentido de ficção, onde há fios tecidos entre as personagens. Ele mostra com nitidez que essas personagens, que têm aventuras de cinema, estão em um ambiente de cinema e que, por outro lado, há o ambiente “Histórico”? É o primeiro a fazer a distinção (cf. episódio da Guerra de Secessão em Três homens em conflito [Il buono, il brutto, il cattivo/The Good, the Bad and the Ugly, 1966]: as personagens saem do seu espaço triangular e deságuam subitamente em um espaço vertebrado de uma outra forma). Ao passo que, no western americano, os dois níveis estavam sempre confundidos.
(segue uma descrição da cena em questão destinada a Pascal Bonitzer)
PASCAL KANÉ: Em contrapartida, na cena do albergue, no último, pareceu-me que ele tentava fazer habitar um local histórico.
SYLVIE PIERRE: Não, não é isso; mas o que é importante é que, graças a uma operação como aquela, expôs-se o fato de que, no western tradicional, o espaço estava lá como prolongamento das personagens; que, quando uma personagem tinha uma intenção, a história inteira estava ali implicada (confusão do nível histórico e do nível ficcional), o que faz com que essas ficções fossem (ainda que Ford)...
JACQUES RIVETTE: Nós estamos nos esquivando da questão da problemática de Ollier. Quando ele fala das aventuras do espaço, é do espaço da ficção, e ele é então espreitado por esse perigo do qual se tenta escapar...
O que eu penso é que toda a problemática dos textos de Ollier corresponde a conceitos que são efetivamente trabalhados nos filmes, mas eu creio que ele a separa de toda uma outra parte do funcionamento do filme. Ele faz um trabalho de abstração – do qual ele não se desvia nunca, por assim dizer. Ele não examina até o fim o trabalho do tempo sobre esse espaço, talvez.
(fim da bobina)
JEAN NARBONI: ... parecia girar em torno do fato de que o mesmo espaço em função da duração, ou espaços distintos produziam algo de...
JACQUES RIVETTE: Mas que era sempre um outro espaço.
O fenômeno da metaforização se dá em diversos níveis, que vão repercutir até um nível totalmente... Esse trabalho, justamente, não se produz da mesma maneira em cada filme, e talvez seja isso o trabalho particular de um filme, a direção na qual ele incita esse trabalho de metaforização a se produzir. A carruagem de ouro ou O anjo exterminador (El ángel exterminador, Luis Buñuel, 1962) não proliferam metaforicamente da mesma forma. É algo que está na obra, não teorizado em Ollier; mas é necessário nos satisfazermos com isso? É isso o que esperamos de um filme?
O fato de passar à exemplificação filme por filme é uma renúncia em face de uma renúncia mais geral?
PASCAL BONITZER: Há filmes que colocam em jogo, de uma maneira temática, a própria noção do espaço; em A carruagem de ouro ou O anjo exterminador, há espaços problemáticos no filme, ou em O enforcamento (Kōshikei, Nagisa Ōshima, 1968); enquanto que há outros filmes que têm simplesmente um espaço dado a percorrer (Terra bruta).
JACQUES RIVETTE: Ainda que seja necessário repor em questão a ideia de itinerário; ademais, Terra bruta é um falso itinerário, um itinerário encrespado, feito de retornos; mas mesmo se pegarmos Rio Vermelho (Red River, Howard Hawks, 1946-1948), será que ele escapa?
JACQUES AUMONT: Bonitzer levantava ainda assim o problema da funcionalidade do espaço; ele é o vetor de algo, ou simplesmente o suporte?
JACQUES RIVETTE: Uma diferenciação entre espaços problemáticos e espaços abertos?
PASCAL BONITZER: Não, há locais problemáticos na própria ficção do filme; e por outro lado um espaço não-problemático na ficção.
SYLVIE PIERRE: Exemplo: os filmes de Pagnol. Mas nós voltamos às mesmas dicotomias a propósito da montagem, em que havia filmes com uma evidência da montagem e filmes sem.
PASCAL BONITZER: Em filmes como A carruagem ou O anjo perguntamos sem parar “o que eles estão fazendo?”, a propósito das personagens. Não é uma questão de arbitrariedade, é o fato de que o lugar remete constantemente a um outro lugar, o qual só é possível em relação àquele lugar, o qual não é definível. Em Terra bruta, há uma certa definição inocente do espaço, mesmo se posteriormente nos damos conta de que isso não é tão simples; enquanto que em O anjo, a casa de Nobile é completamente cercada de enigmas enquanto lugar, e, isso, a priori.
JEAN NARBONI: Haveriam filmes nos quais os ambientes podem criar obstáculos no nível da ficção, mas são ambientes determinados, não geram problemas por si mesmos, e filmes nos quais o ambiente enquanto tal se torna tema e instala ele mesmo um problema independentemente ou não da ficção que se desenrola...
PASCAL BONITZER: Não necessariamente; em O anjo é a ficção que engendra o local: se não houvesse esse acontecimento de que eles não conseguem sair, a casa seria uma casa como outra qualquer.
PASCAL KANÉ: Ou ainda, que há filmes em que a relação com o espectador é produtora de sentido e filmes em que ela não o é.
JACQUES RIVETTE: Em todo filme que nos interessa, notemos, há produção de sentido.
Eu gostaria que continuássemos a debater essa noção de “espaço problemático”.
JACQUES AUMONT: Ou seja, o espaço pode ser problemático porque a ficção o designa como tal; é o caso de O anjo exterminador, onde se passa uma série de coisas anormais que muito rapidamente definem o local fechado do aposento em que vamos nos encontrar, gerando um problema e engendrando uma série de metáforas. E depois há o caso inverso, que é aquele em que o lugar, dado de antemão como problemático, engendra a ficção (La concentration, Philippe Garrel, 1968). E, então, pode-se jogar nos dois sentidos. A carruagem, aliás, pertenceria mais à segunda categoria, ou jogaria mais com as duas simultaneamente, através de uma espécie de dialética entre o espaço e a ficção, e uma sequência de oscilações.
De qualquer maneira, creio que, a esta altura, podemos dizer que se um lugar é ou não designado como fonte de problemas para um filme, ele o é unicamente em relação à ficção que nele se desenrola ou não.
JACQUES RIVETTE: Um exemplo característico disso é Festim diabólico; no começo, temos um puro e simples apartamento, não problemático, mas já minado desde o primeiro plano pelo fato de que ali ocorreu um assassinato e que o rastro desse assassinato está sempre implícito no local.
SYLVIE PIERRE: O que gera um problema, então, não é o local em si mesmo, mas o fato que permanece nele.
JEAN NARBONI: A pequena diferença entre o que dizemos e o que Ollier disse é que Ollier parecia centralizar o problema sobre um único sentido, ao passo que acabamos de ver que isso transita nos dois sentidos: lugar produtor de ficção, ficção reativando o lugar.
JACQUES RIVETTE: O primeiro ponto é Ollier, o segundo é Rohmer. Os gestos, os deslocamentos, etc., do filme, nós só podemos vê-los como os vemos porque conhecemos o segredo do local; se chegamos quinze minutos atrasados em Festim diabólico, vemos um filme totalmente diferente, um filme que não tem nenhum sentido. E o cenário de Festim diabólico é, por um lado, inocente, mas quanto mais inocente ele é, mais ele é problemático – e os momentos mais fortes, correlativamente, são justamente aqueles que, em um outro filme, teriam sido os mais anódinos: como se pode, nesse local “estruturado”, continuar a fazer tal ação?
JACQUES AUMONT: O que seria interessante no cinema moderno não seria então, como dizia Ollier, o fato de que é o lugar que engendra a ficção, mas essa corrente de vai-e-vem entre a ficção e o lugar. Por exemplo, em O garoto Toshio, que me parece muito impressionante quando o revejo, pelo engendramento que se faz de um lugar que é, enfim, uma prisão; é impressionante pela proliferação de bandeiras japonesas, por exemplo, no lado “Japão como prisão”, lugar de onde não se pode sair, que vem inteiramente da ficção que se desenrola, o que é, aliás, teorizado no fim, quando eles chegam na extremidade norte do Japão, e que invade a ficção constantemente.
JACQUES RIVETTE: Deixando de lado por um instante o filme “aberto” do qual falamos até agora, ainda existe, em todos os filmes pelos quais nos interessamos, essa ideia da clausura, da prisão; ou seja, do espaço do qual não se pode sair.
JACQUES AUMONT: Mesmo em um filme como Muriel, aparentemente fragmentado, aberto, o problema permanece sendo “como sair do apartamento”, “como sair de Boulogne”...
PASCAL BONITZER: Isso é bastante notável também em A carruagem de ouro, onde passamos o tempo todo não conseguindo sair de caixas, quanto mais se abrem, mais surgem outras.
JACQUES RIVETTE: Com efeito, talvez porque sejamos nós que privilegiamos esses filmes, mas privilegiamos filmes que, todos eles, impõem a clausura, e muitas vezes essa clausura, seja diretamente ou indiretamente, metaforicamente, é colocada em termos cênicos, num sentido bastante amplo.
JEAN NARBONI: Antes de retornarmos à noção de cena; chegamos a essa convicção de que todos esses filmes que nos parecem interessantes, por causa das relações dinâmicas entre ficção e espaço, são filmes que, mesmo quando se desenrolam por centenas de quilômetros, geram essa sensação de clausura; admitimos isso como uma evidência, mas é algo a ser questionado.
JACQUES RIVETTE: A resposta que eu começo a dar a mim mesmo para essa questão é pensar que ainda não estamos tão longe de Griffith, sobretudo pessoas como Renoir ou Buñuel; e o trabalho de Griffith foi o de fazer despontar aquilo que, nos primórdios do cinema, era dado não somente como sua matriz, mas como seu campo necessário; isso quer dizer que até Griffith havia duas soluções para o cinema: de um lado, Lumière, plano fixo pelo qual a câmera decupa um campo; do outro, Méliès, que coloca sua câmera frente à cena, no caso um teatro reconstituído em seus estúdios. O lado Méliès consiste em fazer coincidir completamente o campo da câmera com a cena teatral, de modo que seus limites coincidam, e todo o cinema pós-Méliès, até Griffith, é apenas sucessões de campos-cenas, ou de cenas-campos; isso pôde ser um pouco burilado ao longo da história do cinema, mas o campo cinematográfico permaneceu totalmente submisso à cena teatral; Griffith evidencia essa fatalidade, essa clausura absoluta, de modo que é ela que será interrogada. Mas, de certo modo, mesmo que ele a torne evidente pela decupagem, ele permanece no interior da cena, ele se volta para ela, colocando-se em relação a essa cena que ele desconstrói, mas não destrói. E em seguida os cineastas, pessoas como Renoir ou Buñuel ou Ford, são pessoas em cujo inconsciente cinematográfico ressurge a “cena primitiva”, que é a cena teatral!!! Cena primitiva que é o fato primeiro, o evento primeiro em torno do qual se cristalizou a neurose; o cinema, a meu ver, jamais saiu...
(fim da bobina)
SYLVIE PIERRE: ... se o cinema se liberta do drama, ele se liberta da cena; A gaia ciência (Le gai savoir, Jean-Luc Godard, 1968-1969) se libertou da cena.
PASCAL KANÉ: O noivo, a atriz e o cafetão (Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1968) justapõe...
(Jacques Rivette reclama de que seu panorama de cinquenta anos da história do cinema não foi registrado. Ele resume:) podemos enxergar isso a que se chamou de “novo cinema” como uma tentativa de escapar a esse espaço, seja desconstruindo o espaço da cena primitiva, seja escapando sem rodeios dessa clausura, de modo mais ou menos imaginário e, ao mesmo tempo, como um ensaio de filmes de escapar a...
Tudo isso para colocarmos uma questão, ou mesmo várias: 1.º não seria tudo isso um engodo?; 2.º o que quer dizer essa história do cinema, se é que ela é verídica?; 3.º aonde isso nos leva, podemos imaginar um cinema que consiga escapar à maldição da cena?
JACQUES AUMONT: Há o cinema de Eisenstein, que escapa disso, de algum modo.
JACQUES RIVETTE: 4.º a questão dos filmes que parecem estar à margem dessa problemática, portanto, os filmes de itinerário de um lado, os filmes “abertos”.
JEAN NARBONI: Creio, no entanto, ter entendido até agora que mesmo os filmes ditos “de itinerário”, como O garoto Toshio...
JACQUES RIVETTE: Não, O garoto Toshio não, nem mesmo Terra bruta, mais para Rio Vermelho ou O rio da aventura (The Big Sky, Howard Hawks, 1951-1952) ou A Marselhesa (La Marseillaise, Jean Renoir, 1937-1938); ou seja, o filme-crônica, o filme “épico” no sentido brechtiano, ou então o filme eisensteiniano. Mas, no caso, não creio que o filme eisensteiniano escape à cena; ainda que ele passe o tempo inteiro a dizer que se trata de um filme em cinco atos; e além disso, ele avançou, SME...
... mas consideremos 2001: uma odisseia no espaço (2001: A Space Odyssey, Stanley Kubrick, 1965-1968) ou Rio Vermelho: minha teoria provisória é a de que esses filmes saem da “cena primitiva”, do “campo primitivo”, evidentemente, mas para quê, por quê, o que isso ocasiona, o fato de que esses filmes evitam a cena primitiva, o que faz com que eles se inscrevam imediatamente no interior de um espaço mítico tão, tão forte? Então, por exemplo: Rossellini, Viagem à Itália (Journey to Italy/Viaggio in Italia, 1953-1954), se não é uma espécie de exploração do inconsciente da Itália, então o que é? (veementes protestos do auditório)
JEAN NARBONI: ... você fala, é claro, em sentido amplo...
SYLVIE PIERRE: ... stock exchange...
JEAN NARBONI: Voltemos ao teatro: estamos de acordo em pensar que a maior parte dos filmes que, para nós, parecem operar esse espaço dinâmico entre ficção e ambiente, com um alimentando o outro, acabam por nos dar a impressão de uma clausura, apesar de a palavra não ser muito justa, mas, enfim, acabam dando a impressão de um sistema. A partir disso não podemos tentar iniciar a busca por um conceito de espaço fílmico no sentido de que, na medida dessa espécie de desconstrução, desse trabalho de negação referencial, etc., essa clausura ou esse sistema não nos indiquem onde buscar o espaço do filme? O filme pode muito bem se basear num espaço fechado ou não: ele termina, quando nos interessa, por formar um sistema, ou seja, termina por constituir um verdadeiro conjunto, coerente, estruturado, que é de fato o espaço do filme.
PASCAL KANÉ: O que eu disse agora há pouco sobre a relação produtora de sentido deveria então ser dito novamente...
JEAN NARBONI: A partir do sistema seria preciso procurar sua determinação, aquilo que faz com que funcione como sistema e como outra coisa além da soma de suas partes; é preciso agora passar à análise de exemplos específicos de filmes; seria um impasse?
PASCAL KANÉ: Eu gostaria de propor um exemplo nesse sentido que é La rosière de Pessac (Jean Eustache, 1968-1969)... onde nós partimos de um filme que aparentemente negaria a cena e onde, a certa altura, o prefeito lança um olhar que atravessa a câmera e que é essencial: nesse momento tomamos consciência que aquilo que nós vimos antes tem seu status modificado, que a câmera não atuou como um puro olhar neutro, mas que ela exerceu um papel ativo e que sua presença exerceu um papel ativo.
JEAN NARBONI: Muito justo, e chegamos naquilo que diz Oudart: “O processo complexo da leitura do filme, que sempre compreendemos claramente como o de uma leitura atrasada e redobrada, é antes de tudo o dessa representação que se estabelece entre dois campos que constituem a célula elementar do espaço cinematográfico. Como resultado, explicitam-se as metáforas teatrais a propósito do cinema e a relação profunda que une o cinema ao teatro, local de uma representação metafórica, às vezes espacial e dramática, das relações entre sujeito e significante”[7].
(começa uma discussão sobre La rosière de Pessac)
JACQUES RIVETTE: ... obviamente, se o prefeito fosse gari, ele não faria um discurso...
JEAN NARBONI: Seria necessário especificar essa noção de cena: quais são suas características e quais são os meios pelos quais buscamos abandoná-la. Porque eu vejo um que, para mim, é capital, que é o caráter assertivo do plano; a saber, que todo plano de um filme está lá duas vezes.
JACQUES RIVETTE: ... Ele é visto de novo uma segunda vez...
JEAN NARBONI: Ou seja, um plano jamais está lá de qualquer forma, ele sempre diz: “me veja como plano”, “eu estou aqui”. É mais como um caráter auto-assertivo do plano (não assertivo em relação ao que ele veicula, mas assertivo em relação a si mesmo).
JACQUES RIVETTE: O cinema consiste também em lidar com esse caráter, porque justamente há toda uma parte dos filmes que consiste em dizer: “sou eu quem está aqui”. Mas há também, e essa é uma das direções paralelas a essa tentativa de sair da cena, uma tentativa de sair do “sou eu quem está aqui”; o famoso jogo do direto, que é o de tentar introduzir em um filme planos que tentarão não dizer “sou eu quem está aqui” e que, quando bem entendidos, o dizem de modo ainda mais forte; mas ao invés de o dizer duas vezes, eles o dizem não sei quantas vezes.
SYLVIE PIERRE: ... ah, sim, duas vezes ao mesmo tempo!!...
JACQUES AUMONT: ... larvatus prodeo[8]...
JEAN NARBONI: As teorias de Bazin, ao contrário, tendem a dizer que isso é falso, que haveria um cinema da transparência; isso não impede que Bazin tenha sido muito sensível à presença do cinema, talvez não como opacidade significante, mas como presença do quadro enquanto delimitação, o que conduz não a um “eu estou aqui enquanto plano”, mas a um “eu estou aqui com quatro extremidades”.
JACQUES RIVETTE: Não é à toa que Bazin se interessou tanto pelas relações do teatro com o cinema, pela teatralidade no filme...
SYLVIE PIERRE: Mas a partir do “larvatus prodeo”, Barthes concluiu a própria essência da literatura, que é a confissão constante da literatura; em relação ao cinema, o que podemos concluir?
JACQUES RIVETTE: Existe uma noção que nós esquecemos: não só o cinema não escapa propriamente, apesar de tudo, ao “sou eu quem está aqui”, mas por quê? Porque ele não escapa jamais ao fato de que, a partir do momento em que há plano, há campo; não se pode sair do campo e, quando a câmera ensaia sair dele, ela cria outro campo, com aquilo que chamamos de movimento de câmera. Mesmo A gaia ciência passa a sua duração jogando com um campo vazio, mas que ainda assim permanece sendo um campo.
JEAN NARBONI: Sem contar que o que é crucial em A gaia ciência é que nele há incessantemente a presença do campo ausente, que é aquilo a que eles assistem, uma televisão que funcionaria o tempo todo...
JACQUES RIVETTE: Só falamos, por enquanto, daquilo que diz respeito aos planos com dois intérpretes. Por um lado, não é por ser escuro que se trata de um espaço sem profundidade, a prova é que se avança e se recua nele e, por outro lado, há pelo menos dois fora-de-campo, um que é aquilo que eles olham e também aqueles que os olham, na medida em que eles são constantemente postos como se exibidos na televisão, como alguma coisa transmitida a não sei quantos milhões de residências francesas simultaneamente, em caixas no interior de outras caixas.
E, por outro lado, esse espaço bastante complexo se coloca em relação ao espaço chapado das cartelas.
SYLVIE PIERRE: Sim, mas esse espaço é completamente imaginário. A prova é que o filme, justamente, não é mostrado na televisão e que, portanto, esses famosos fora-de-campo frontais não existem; quanto ao espaço, ele é sem referente, eles não estão em lugar nenhum, eles estão na televisão pura; eles estão em um espaço de estúdio de televisão tornado voluntariamente abstrato...
PASCAL BONITZER: Um espaço de estúdio de televisão tornado tão abstrato que pode ser transformado pela palavra de Léaud, por exemplo, em qualquer espaço, onde pode se passar qualquer coisa; por exemplo, um espaço metonímico em relação àquele em que se vai atear fogo nos cinemas de Milão. Porque é, por um lado, um estúdio de televisão, ou seja, o próprio substrato mesmo do local em que se filma, e porque, estando vazio enquanto espaço de estúdio, é suscetível de ser preenchido por qualquer significação que os atores possam lhe conferir.
JEAN NARBONI: É apenas de um certo modo que isso ocorre, ou seja, esvaziando esse espaço, de modo a torná-lo suscetível a ser contíguo a qualquer outro espaço e também a qualquer outra cartela. Há também um trabalho que, primeiramente, consiste em apresentar isso, antes de tudo, como um espaço real...
(fim da bobina)
... uma certa realidade de profundidade, e fazer com que ali haja uma espécie de achatamento dos planos com Juliet e Jean-Pierre, para jogar completamente com o achatamento em seguida das cartelas, dos desenhos etc. e, por outro lado, para fazer com que se confunda o estúdio de televisão, onde supomos que eles estão, com uma tela de televisão. É o jogo da superfície e do fundo; há, aí, uma espécie de negação absoluta da profundidade.
SYLVIE PIERRE: Portanto, podemos dizer que a cena foi muito bem realizada.
JACQUES RIVETTE: Creio que o filme que mais lembra A gaia ciência, nesse sentido, é Akbar in Cineland (Jean-Marie Bénard, 1969), onde ocorre exatamente o inverso.
PASCAL KANÉ: Há algo de importante na cena de A gaia ciência, que é o fato de ser um local onde apenas se entra e sai; eles entram, eles falam, eles vão embora: é uma cena em que estão lá apenas para falar, opondo-se ao exterior onde se age.
JACQUES RIVETTE: É o local da prática teórica, de certa forma.
SYLVIE PIERRE: É essa a diferença em relação a uma cena, pois aqui se trata do espaço do discurso, onde não há nenhum drama.
JACQUES RIVETTE: Nenhum drama, então aí, realmente, vejamos, há sim: há o drama da questão colocada, a qual eles não solucionam; há inclusive, ao contrário, dramatização por parte de J.-L. (Jean-Luc Godard). Essa ideia do primeiro ano, do segundo ano, há aí um prazo, um suspense e um fracasso.
PASCAL KANÉ: Talvez sejam os atores que tentam desdramatizar...
JEAN NARBONI: Quanto ao fundo negro, é verdadeiramente a hipercena; é um dos filmes que mais dão significado à representação cênica.
JACQUES RIVETTE: Não, o filme em que a cena recebe um velho golpe é Pas de deux (Norman McLaren, 1968), onde também há personagens sobre um fundo negro.
PASCAL BONITZER: É a troca entre a cena e o grafismo puro.
JACQUES RIVETTE: Sim, mas esse grafismo puro se refere à arqueologia do cinema. Há algo aí de Marey (sic)[9].
SYLVIE PIERRE: Há uma coisa bastante relevante sobre a qual ainda não falamos. Somente Burch e Oudart falaram sobre isso, que é o espaço fora-de-campo[10]...
JACQUES RIVETTE: Não paramos de falar sobre isso. O espaço fora-de-campo é um problema real, mas privilegiá-lo é torná-lo um falso problema; ele é parte desse primeiro ponto, do jogo do filme em relação ao seu referente.
JEAN NARBONI: Não devemos reduzir o conceito, porque há dois fora-de-campo: um neutro, inerte, que é tudo o que está excluído do filme, e outro funcional, que é apenas um campo possível vindouro, e que é muito importante.
JACQUES AUMONT: Há também duas formas de excluir uma parte do espaço referencial para fora do campo: a rejeição porque não nos interessa ou a rejeição voluntária, em que a exclusão e o excluído são significativos.
SYLVIE PIERRE: Mas a própria leitura é espacial.
(...)
JEAN NARBONI: Há também um cinema que tratou como positividade aquilo que era lacuna em...
JACQUES RIVETTE: Há uma parte do cinema moderno que tomou uma consciência mais ou menos clara dessa repressão. (...) Se Kubrick não é..., se o fato de mudar de espaço não necessariamente produz um câmbio naquele espaço que é o do inconsciente.
JEAN NARBONI: Vamos cair mais uma vez no problema da articulação sistema-discurso.
JACQUES RIVETTE: Creio que todos os trabalhos que tentamos fazer são apenas preliminares a esse grande trabalho sobre a articulação discurso-sistema.
Notas:
[1] Os nomes dos participantes aparecem numa coluna, escritos a mão, em maiúsculas e sem o prenome, ao lado do título datilografado, “O Espaço. 1”, em ordem alfabética. Somente ao lado do nome AUMONT figura a menção “VISTO”. Parece, no mais, que as menções manuscritas sobre o texto datilografado sejam de sua mão.
[2] Ver Claude Ollier, “Les petits films modèles”, Cahiers du cinéma n.º 200-201, abril-maio de 1968, pp. 29-30; e “Projet de lettre à Jean Ricardou”, Cahiers du chemin n.º 2, janeiro de 1968.
[3] Ver Jean Ricardou, “Problèmes du nouveau roman”, Paris, Seuil, 1967.
[4] Ver Jean-Louis Comolli, “Le détour par le direct”, Cahiers du cinéma n.º 209, pp. 48-54, e n.º 211, abril de 1969, pp. 40-45; e “Développements de la ligne Jancsó”, Cahiers du cinéma n.º 212, maio de 1969, p. 32. No que concerne Jancsó, Comolli redigirá uma “Autocritique”, respondendo às críticas de Jean Narboni e Jean-Pierre Oudart, em abril de 1970 (Cahiers du cinéma n.º 219, pp. 40-45).
[5] Ver “Économique, idéologique, formel... : entretien avec Marcelin Pleynet et Jean Thibaudeau”, Cinéthique n.° 3, aprox. março-abril de 1969, pp. 7-14.
[6] Ver Louis Althusser, “Le ‘Piccolo’, Bertolazzi et Brecht”, em Pour Marx, Paris, Maspéro, 1965.
[7] Jean-Pierre Oudart, “La suture”, Cahiers du cinéma n.º 211, abril de 1969, p. 39.
[8] Cf. “O passado simples e a terceira pessoa do Romano não são nada além desse gesto fatal pelo qual o escritor aponta o dedo para a máscara que ele usa. Toda a Literatura pode dizer: ‘Larvatus prodeo’, adianto-me apontando minha máscara”, Roland Barthes, Le degré zéro de l’écriture, Paris, Seuil, 1972 (1953), p. 33.
[9] Neste ponto, parece haver um estranhamento por parte de quem transcreve o diálogo em relação à frase anterior de Rivette, indicado no “(sic)” grafado após a frase. Ela se refere, no entanto, a Étienne-Jules Marey, inventor da cronofotografia. Tal invenção admite como reminiscência as técnicas presentes no filme Pas de deux, citado por Rivette. Estas técnicas, nesse sentido, gerariam o “grafismo” descrito no diálogo. [N.T.]
[10] Cf. Oudart, “La suture”, art. cit. e Noël Burch, Práxis do Cinema, op. cit.
(1895 n.º 79, verão de 2016, pp. 104-135. Traduzido por Eduardo Savella, André Barcellos e Yuri Ramos) |
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