MONTAGEM
JACQUES RIVETTE: Qual era o princípio das “jornadas” de Aix? Tomar como fio condutor a ideia de montagem, ideia que hoje ocupa igualmente o centro da reflexão em outras matérias que não as cinematográficas (cf. o fato, por exemplo, de que Philippe Sollers ou Jean-Pierre Faye podem citar Eisenstein no mesmo plano dos principais teóricos e praticantes da escrita): a partir desta constatação, ver ou rever um certo número de filmes, reagrupá-los, organizá-los, “sobrepô-los” e, desta sobreposição (como se se tratasse de desenhos), tentar extrair pontos comuns e divergências.
De maneira prática foram colocados em relação, ao lado de um exemplo-tipo: O velho e o novo (Staroye i novoye, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927-1929) – e foi apenas por razões materiais que não foi possível rever Intolerância (Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages, D. W. Griffith, 1916) –, alguns filmes-marco destes últimos dez anos: Algo diferente (O něčem jiném, Věra Chytilová, 1963), Made in U.S.A. (Jean-Luc Godard, 1966), Mediterrâneo (Méditerranée, Jean-Daniel Pollet, 1961-1963), Machorka-Muff (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1962-1963), Não reconciliados (Nicht versöhnt oder Es hilft nur Gewalt wo Gewalt herrscht, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1964-1965), O noivo, a atriz e o cafetão (Der Bräutigam, die Komödiantin und der Zuhälter, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1968), Marie pela memória (Marie pour mémoire, Philippe Garrel, 1967), A hora dos fornos (La hora de los hornos: Notas y testimonios sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación, Fernando E. Solanas e Octavio Getino, 1966-1968); colocamos em comparação a estes, partindo da hipótese segundo a qual o reaparecimento da montagem depois de dez anos está ligado à emergência do direto, duas etapas fundamentais desse “cinema direto”: Sombras (Shadows, John Cassavetes, 1957-1959) e Para que o mundo prossiga (Pour la suite du monde, Pierre Perrault/Michel Brault/Marcel Carrière, 1962-1963), Rouch estando ausente apenas por motivos de força maior; enfim, para colocar nossa teoria à prova, se é que houve uma teoria, dois limites, em forma de antítese, do cinema dito “clássico”: Mizoguchi (A Imperatriz Yang Kwei Fei [Yōkihi, 1955]) e Dreyer (Gertrud, 1964), – mas poderia ter sido igualmente Renoir, Ford ou Rossellini.
Na prática, a ambição desse reagrupamento era fazer, de maneira consideravelmente arriscada, até mesmo aleatória, uma tentativa de uma “montagem de filmes”: estabelecer relações, através desses exemplos, entre diferentes abordagens de métodos de estruturação de filme, e constatar o que esses raccords e cruzamentos produziriam.
SYLVIE PIERRE: Talvez tenhamos partido de um equívoco, na medida em que nós procuramos falar ao mesmo tempo dos problemas da montagem cinematográfica e dos problemas colocados, no cinema, por uma ideia mais abstrata, “a ideia da montagem”, nascida ela própria de uma espécie de extensão metafórica da montagem cinematográfica em domínios extracinematográficos[1]. Assim, de um lado nós investigamos a montagem como técnica de justaposição de planos, o que, muito naturalmente, nos levou a examinar filmes que representam casos extremos da montagem: sejam os filmes hipermontados (Eisenstein, Pollet), sejam os hipomontados (Dreyer, Mizoguchi)[2]. Enquanto que, por outro lado, a montagem como termo metafórico – isto quer dizer, de um modo geral, a colagem – nos leva a um terreno totalmente diferente da reflexão, por exemplo com Made in U.S.A..
RIVETTE: Não acho que tenha havido, na etapa da escolha dos filmes em questão, equívoco: digamos que colocamos, ou que nós pressupomos originalmente, uma espécie de a priori metodológico, fazendo a distinção entre todos os filmes que têm como ponto comum a passagem pela etapa da moviola como etapa criadora e os outros; ou ainda, ao inverso, entre os cineastas que “fazem” o filme essencialmente durante a filmagem (e na preparação dessa filmagem: por exemplo, portanto, Ford e Renoir), e aqueles para os quais esse trabalho de escrita, ou da estratégia, e da filmagem é apenas a acumulação de uma “matéria” (de um material), que é em seguida totalmente questionada e só ganha a sua ordem e o seu sentido na sala de montagem (e é tanto o caso de Rouch e Perrault quanto de Godard e Eisenstein): duas famílias que não vem ao caso hierarquizar, mas sim opor, ao menos provisoriamente, para tentar ver um pouco mais claro.
JEAN NARBONI: Um outro equívoco pode decorrer, a meu ver, da confusão ainda existente entre a montagem como noção de montagem e a montagem como efeito (ou efeitos, entendidos frequentemente de maneira pejorativa). Quando nós apresentamos esses filmes, não se tratava de centrá-los em torno apenas da segunda acepção – montagem-rei, príncipe soberano da organização do filme, manipulação dominadora –, mas sim, de uma maneira mais geral, da primeira: montagem (mesmo quando não se manifestava em “efeitos” evidentes) como trabalho produtivo essencial. É possível replicar que neste sentido todo filme, na medida em que ele é constituído por certo número de planos colocados de ponta a ponta e colados uns aos outros, reivindica a montagem, e que deste modo qualquer filme conviria (ou qualquer plano, já que Eisenstein notou categoricamente que a montagem não está ausente nem mesmo do interior do plano). É a razão pela qual eu empreguei as palavras trabalho, produção, montagem criadora, escrita da montagem, para melhor diferenciar os filmes que a ressaltam daqueles em que o gesto de ajustar os planos, de interrompê-los a tal ou tal momento, constitui apenas a continuação, a concretização – a não ser por algumas poucas nuances e melhorias – de uma intenção prévia e se contenta em perseguir um sentido já determinado em vez de fazer surgir um novo. Exemplares desse primeiro sentido são, por exemplo, dois filmes tão diferentes quanto Algo diferente e Para que o mundo prossiga, nos quais, sem estar presente através de “signos exteriores”, a montagem desempenha um papel de instância ativa, de motor, de propulsor, de suspensão móvel entre dois planos, mas também e sobretudo no nível das grandes unidades do discurso[3].
A propósito dos famosos “efeitos” de montagem, convém retornar com prudência e rigor a este termo e ao seu emprego, para não refazer os erros e as pressuposições que continuam a prevalecer perante todo filme “montado”. Se entendemos por “efeitos” de montagem procedimentos postiços, ornamentos adventícios, trucagens retóricas, será preciso reservar este termo muito especificamente aos filmes que os utilizam como tais, que aviltam ao nível da receita e do estereótipo o que constituía o fundamento essencial e não o conjunto do grande cinema russo mudo (Eisenstein, Vertov, Dovjenko), que escapa incontestavelmente a estas reprovações, por ter tomado a montagem como procedimento criativo dinâmico. Ao englobar na mesma categoria discutível todos os filmes em que a montagem desempenha um papel primordial, arriscamos cair no erro que, durante muito tempo, fez crer que o discurso poético era apenas o discurso da prosa com um algo a mais, precisamente o efeito ou a pimenta poética. Se finalmente interrogamos um filme como Gertrud, aparentemente bem distante das preocupações da montagem, damo-nos conta de que ela está fortemente presente, mas enquanto efeito de máscara, de revestimento, e que pode, em um filme, intervir como processo criativo tanto pelo seu trabalho de apagamento quanto pelas suas marcas (trabalho que não tem nada a ver com a “montagem transparente” do cinema americano, por exemplo). Podemos com proveito nos referir à fórmula já antiga de Jean-Luc Godard, que comparava a montagem a um batimento do coração e, prosseguindo com a comparação, dizia que, como o funcionamento cardíaco em suas alternâncias de diástole e sístole, de silêncios – grandes e pequenos – e de ruídos, a montagem é valorizada tanto por suas plenitudes quanto por seus vazios, por seus espaços em branco quanto por seus traços.
RIVETTE: É por isso que era necessário rever primeiramente o filme de Chytilová: filme em que o papel da montagem-manipulação é muito aparente, no qual vemos bem como o detalhe (plástico e dinâmico: o “traço”), como o efeito de cada emenda são sistematicamente repensados na moviola: mas, sobretudo, um filme em que esse primeiro nível do trabalho de montagem (o das microestruturas) repercute de forma ostensiva sobre o “pensamento” da totalidade do filme (sobre aquilo que os músicos chamam “a grande forma”) – e inversamente: um incessantemente se encadeando com o outro. O filme funciona então como a alternância irregular, a “mescla” de dois filmes autônomos, ou de duas hipersequências genéricas, cada uma sendo regida em todas as etapas por suas próprias leis formais, tanto naquilo que afeta os métodos de “mise en scène”, os princípios fotográficos, o controle dos protagonistas, quanto nas leis próprias da sua montagem interna.
Dito isso, o que justifica o interesse particular de Algo diferente é ver como esse princípio efetivamente funciona, não como a alternância pura e simples de duas ações paralelas, como a simples adição destas, mas como a multiplicação de cada um dos “níveis” pelo outro; e isto sem nenhuma interferência nem referência de um a outro mas, ao contrário, pela independência, a cada instante afirmada e restabelecida, reconstituída, recriada, de cada um deles: é por um trabalho incessante de recusa, bem mais do que de “raccords”, que se organiza o tecido microformal: o ato pelo qual a montagem se torna efetivamente um processo produtivo é estabelecido aqui a partir de um rigoroso sistema deceptivo[4].
Ao mesmo tempo, o entrelaçamento das tramas não é tanto o que reaviva o interesse (a participação), mas aquilo que o bloqueia, o frustra (o priva de seu benefício ao ameaçar o seu capital inicial), pelo deslocamento do índice – do referente: do “real”, na sua manipulação. Daí surge, consequentemente, todo filão aberto a todas as torções do espaço-tempo, sem a menor esperança de verificação pela anedota: podemos também pensar, se assim quisermos, que Chytilová abusa ou se abstém do uso. Espaço-tempo fictício (ficcional), rigorosamente não-psicológico (nada a ver com o imaginário que se seguiu a Robbe-Grillet), o continuum do filme é uma abertura, como o espaço (da cena) e o tempo (da banda magnética) para Cunningham, mas que aqui não preexiste, não precisa, portanto, ser preenchido, e não é nada mais que o vazio, como a pegada fóssil, escancarada pela deterioração do velho espaço-tempo narrativo e representativo.
PIERRE: No início, de todo modo, nós tínhamos considerado os filmes em três tipos de situações exemplares em relação à montagem:
1) Os filmes que se enquadram, como dizia Jean Narboni, na “escrita da montagem”: filmes fundados sobre a montagem como instrumento de uma dialética e de um discurso (Eisenstein, Solanas).
2) Os filmes que não parecem se situar em relação à montagem como um trabalho criador, nos quais a montagem está ausente como efeito soberano, mas nos quais, como vimos, a ausência aparente da montagem no estado criador pode esconder diversas manobras de montagem: seja na utilização, no máximo da sua eficácia, de um pequeno número de ligações entre planos longos, seja o deslocamento, através de diferentes articulações de combinação fílmica que não as da montagem propriamente dita, dos gestos de montagem (pela decupagem – como em Straub –, pela articulação no próprio interior do plano – como em Mizoguchi ou Renoir).
3) Os filmes fundados, como no primeiro caso, sobre um trabalho criador da montagem, mas que o utilizam menos no seu poder de veicular as significações e mais, ao contrário, no de obstruí-las. A montagem obedecendo, em suma, a uma preocupação de perturbação ou até mesmo de interdição do sentido (Pollet).
Nesta última categoria é preciso, evidentemente, considerar os princípios de montagem do cinema “underground” ou undergroundisante, onde frequentemente um verdadeiro furor de montagem parece responder, não tanto a um anseio – como em Pollet – de edificação poética do filme, mas principalmente a uma vontade de atomização, de uma explosão terrorista da própria noção de obra. A montagem, de preferência curta, sendo utilizada como meio (entre outros) de uma “desordem sistemática” do discurso ([5] e [6]).
RIVETTE: Agora talvez seja preciso abandonar, por um momento, o terreno das classificações a priori, e dar um salto[7] para tentar ver o que essas classificações “querem dizer”, ao que elas podem corresponder na própria atividade desses filmes. Nós percebemos bem rápido, efetivamente, que a partir do momento em que desejamos analisar um pouco mais de perto o “trabalho” de um desses filmes (trabalho do cineasta sobre o filme, operação do filme sobre o leitor), precisamos começar por examinar atentamente as categorias às quais ele é ordinariamente subordinado.
Assim, a propósito de Made in U.S.A., tínhamos que primeiro pôr em causa a ideia doravante aceita de “colagem”: não para negá-la, mas para tentar discernir melhor de que maneira ela agiria nos filmes, e que tipo particular de colagem é realçado pela prática de Godard. Pois o que diferencia seus filmes dos de Chytilová, Eisenstein ou Pollet, é que nele parece que há (que houve) um estado anterior do filme, que não se deixa supor nos outros casos. Em Made in U.S.A., Godard impõe o sentimento de um filme prévio, rejeitado, contestado, lacerado, despedaçado: destruído como tal, mas ainda assim “subjacente”. O filme só funciona em relação a referentes simultâneos, mais ou menos tácitos, mas proliferando, invadindo-se entre si até se entrelaçarem e traçarem sozinhos todo o tecido fílmico, já que podemos pensar, no limite, que não há nada, nem uma frase, nem um plano, nem um gesto, que não seja uma citação ou referência mais ou menos “pura”: o importante durante o desenvolvimento do filme, não é tentar descobrir a identidade de todos esses referentes, o que seria ao mesmo tempo impossível e inútil, mas saber (ver na perspectiva da ideia) que tudo é referente, mas referente encurralado e desviado, dessacralizado, por uma operação que é exatamente “terrorista”.
O primeiro movimento do filme, aquele que podemos sem dúvida considerar como o ponto de partida da ação de Godard, já é uma ideia de montagem: o que acontece se nós “montamos” juntos, se nós misturamos certo romance medíocre da Série noire e o caso Ben Barka: no caso não se trata, obviamente, da “realidade” deste acontecimento, que eu ignoro e que me escapa, mas como a pude ler nos jornais, como a pude reconstruí-la, inventá-la, pela colagem de múltiplos recortes de jornais; portanto, montagem de dois “textos” (e, igualmente, laceração de pré-textos). A leitura do filme propriamente dito, que se apresenta como “concluído”, deve, de certa maneira, refazer esse movimento por desmontagem e, através de uma decifração tanto dos retalhos da intriga policial quanto dos ecos das coordenadas políticas (a própria decifração perturbada, impedida, dada desde o início como inalcançável), alcançar enfim, a posteriori (e mais ainda em uma revisão), o nível da leitura imediata do filme, tal como ele se desenrola na tela.
Quase todos os filmes de Godard funcionam, de todo modo, por uma desorganização de subtextos: assim, em O desprezo (Le mépris, 1963), a Odisseia, Fritz Lang, o conto de Moravia, Cinecittà... Em contrapartida, em Mediterrâneo, Pollet utiliza a fascinação, que exerce um background ideológico bem semelhante: a tauromaquia, os templos gregos em ruínas, as estátuas egípcias, o mar; mas ele quer se servir de cada um desses elementos como de uma palavra fechada em si mesma, carregada ao máximo do seu “sentido” potencial[8], enquanto que, em Godard, na maior parte do tempo, existe doravante a recusa de uma enunciação clara e precisa da “palavra”; de todo modo, e cada vez mais, a referência de cada citação, se não é falsa, é ao menos falseada: enquanto que, nos seus primeiros filmes, a citação ainda desempenhava seu papel tradicional, apresentada claramente com a indicação da sua origem e suas conotações tradicionais, o despedaçamento dos referentes constitui agora o reforço e a própria matéria do filme e, de uma certa forma, seu fim.
PIERRE: Talvez não seja por acaso que em Made in U.S.A. vemos tantos cartazes rasgados. Rasgos que representam, em suma, uma operação complementar àquela da colagem. Pois, para que haja colagem, é preciso que haja primeiro um recorte de cada elemento em relação ao seu contexto, e existe nesta primeira operação uma violência ao menos igual àquela que consiste em produzir em seguida o choque da nova combinação. O que é ainda mais violento em Godard neste recorte do elemento é a sua perda de identidade (o fato de que não podemos reconhecer as citações, mas também de que tudo vire citação, mesmo aquilo que não é) em prol de uma espécie de superidentidade do todo: a hipergodardização do conjunto.
Em Pollet, a relação das partes com o todo não é da mesma ordem. Existe certamente uma perda de identidade (do nome próprio) das partes em benefício do todo (em outras palavras, a ideia do Mediterrâneo como um todo mítico), mas justamente, na medida em que nos reenvia a um todo tão prestigioso, cada elemento torna-se fascinante em si mesmo e pesa mais do que si mesmo. É preciso então que o comentário sustente o trabalho de laceração, tanto das partes (rompendo a fascinação que cada imagem exerce) quanto do todo (trabalho de desmistificação do comentário em relação justamente ao mito mediterrânico). Esse procedimento de comentário não pode, evidentemente, conduzir a uma pulverização dos elementos tão radical quanto em Godard. A montagem imagens-comentário de Pollet permanece edificante, no sentido de que o filme se quer um poema, um edifício.
NARBONI: O caso de Mediterrâneo é exemplar. Pode-se dizer que entre os filmes escolhidos ele instaura mais precisamente a questão em torno da qual a nossa escolha se ordenou, já que se trata de uma interrogação da montagem, uma questão indefinidamente colocada e recolocada à montagem: quando, como, por que passar de uma coisa à outra? Uma das frases do comentário de Sollers particulariza e detalha esta interrogação: “E se ao mesmo tempo em alguma parte de algum lugar inimaginável alguém calmamente começasse a substituir você?” (interrogar sucessivamente o “alguma parte”, o “inimaginável”, o “calmamente” nos levaria muito longe, mas sempre dentro da questão do filme e da questão que ele coloca à montagem). Desta forma, o “como acabar?”, “como começar?”, todas essas evidências aparentemente dadas de antemão, jamais interrogadas nos filmes (mas elas começam a ser: cf. por exemplo, A gaia ciência [Le gai savoir, Jean-Luc Godard, 1968-1969] ou Marie pela memória), são igualmente presentes em todos os momentos do filme e não somente no seu começo e no seu fim. É seu itinerário que as coloca[9]. Para aqueles que veem em Mediterrâneo apenas uma sucessão de planos compostos com mais ou menos felicidade, acompanhados por um comentário “literário”, lembremos que estas preocupações formam o próprio objeto de um romance, mais precisamente Drame de Philippe Sollers, sobre o qual Roland Barthes escreveu: “A narração é apenas a figura livre desta questão: o que é uma história? Em que nível de mim mesmo, do mundo, decidirei que me acontece alguma coisa? Os mais antigos poetas, autores dessas muito velhas baladas épicas, anteriores à Ilíada, exorcizavam a arbitrariedade aterrorizante da narrativa (por que começar aqui ao invés de lá) por um proêmio cujo sentido ritualístico era o seguinte: a história é infinita, ela começou há muito tempo (ela começou em algum momento?): eu a apanho neste ponto, o qual eu anuncio”.
Como a montagem funciona em Mediterrâneo, qual o seu papel, sua função, seu mecanismo? Eu diria que ela me parece ir justamente no sentido de um apagamento dos sentidos e das conotações das quais o conteúdo dos planos é dotado antes mesmo de que o filme comece. Escolhendo uma série limitada de planos que versam sobre o Mediterrâneo, Pollet os monta e os articula, os apresenta e os redistribui segundo um processo, visando pouco a pouco a torná-los equivalentes, igualando-os em importância simbólica. Parece-me falso dizer que não existe texto preexistente a Mediterrâneo, que este institui um texto primeiro. A escrita do filme é certamente criadora, mas contra e em relação a um outro texto, extracinematográfico – sim – mas cultural e ideológico. O filme só adquire sentido (precisamente este de ser Mediterrâneo e nada mais) ao apagar todas as significações preliminares. Ele se articula em torno de dois tipos de planos, uns muito marcados, fortemente carregados de simbolismos e de conotações culturais (pirâmide, templo... ou lugares míticos modernos como usina e hospital), outros mais neutros, e sua fusão, sua distribuição e redistribuição, sua alternância e sua recorrência instituem, unicamente pela força do percurso, do trajeto do filme, pelo jogo de uma analogia de situação (todos esses planos são do filme), um processo de equalização, uma colocação sobre o mesmo plano. Os pares antinômicos antigo/moderno, marcado/não marcado dão lugar a um espaço onde as valorizações desiguais, os graus hierárquicos, as diferenças de temporalidade deixam de ter validade. É a razão pela qual me parece que Pollet se esforçou para fazer de cada um de seus planos o equivalente de uma palavra, ou pelo menos, já que a coisa é impossível, aquilo que mais se aproxima de uma palavra. Sabemos efetivamente, e Christian Metz definiu muito bem a questão em cinco pontos, que um plano de cinema, independentemente da avareza de suas informações, não poderia jamais ser o equivalente de uma palavra, mas ao menos de uma frase: 1) Os planos são infinitos, as palavras de uma língua têm um número finito. 2) Os planos são invenções do cineasta, as palavras preexistem em um léxico. 3) O plano libera uma quantidade de informações indefinida. 4) O plano é uma unidade atualizada do discurso, enquanto a palavra, unidade do léxico, é puramente virtual: a imagem de um “banco” significando efetivamente “eis aqui um banco” e não somente “banco”. 5) Um plano adquire seu sentido apenas em uma parca medida, por oposição paradigmática aos outros planos que poderiam aparecer no mesmo ponto da cadeia (já que estes são em número indefinido), ao passo que uma palavra sempre faz parte de um ou mais campos semânticos mais ou menos organizados. Percebemos, entretanto, que Pollet intuitivamente se esforçou em atenuar essas oposições trabalhando com cada um desses pontos: 1) ele limitou o número dos seus planos e jogou mais com a sua recorrência do que com a sua variedade; 2) ele os “inventou” ou “encenou” o mínimo possível; 3) ele, ao tentar reconduzi-los cada vez a uma única unidade de conteúdo, reduziu ao máximo as informações que eles poderiam fornecer; 5) ele procurou instaurar uma paradigmática rica do filme, inicialmente usufruindo do título, Mediterrâneo, como uma “reserva” que fornece um número limitado de planos, de modo que cada um deles de fato se esvanece no conjunto dos outros planos que o tema Mediterrâneo poderia fornecer (mesmo que nós não possamos imaginá-los, nós pensamos neles como o outro global e ausente de cada plano); em seguida no agenciamento dos próprios planos, cujo retorno periódico (mesmo quando filmado em um ângulo diferente) marca cada vez que ele foi escolhido, extraído, de um campo relativamente restrito; 4) enfim, operando uma perversão (o comentário é aqui capital) da atualização dos planos e do seu caráter assertivo, como o do “aqui está um banco” por exemplo, em um texto (imagético e sonoro) no qual caem as distinções sonho/sono, imaginário/real etc., e que acaba sendo por sua vez colocado em questão. O pivô, o eixo que constitui o comentário é o elemento fundamental em torno do qual se opera a inflexão do espetáculo, a inversão espectador/figurante, que vê/que é visto (“E se estivéssemos sendo vistos?”, “um espetáculo em que sabemos bem, entretanto, que não virá do lado de fora”). Nós estamos aqui muito longe da reprovação de “poetização” que o filme poderia ter recebido.
PIERRE: Esta reflexão de Pollet sobre a montagem que opomos ao cinema de montagem de Eisenstein se situa na realidade com Eisenstein no horizonte, com uma reflexão sobre a montagem segundo Eisenstein; com a ideia de que a montagem é a única maneira de fazer um cinema não-reacionário, em oposição ao cinema da sedução, da representação. Mas nesse caso é preciso ter uma extrema prudência e uma grande precisão nos termos, pois temos um pouco a tendência, a partir do momento em que se trata de implicações politicas, a nos deixar tomar por metáforas imprecisas. É certo que podemos pensar que um cinema que esconde suas ligações de plano a plano (montagem “apagada”, como vimos acima), ou que dá a preferência a planos longos (montagem “rarefeita” – idem –), manobra o espectador de uma maneira que poderíamos qualificar como reacionária, pois se trata no caso ou de ilusionismo (ocultar a descontinuidade cinematográfica) ou de fascinação pelo plano. Em ambos os casos é a impossibilidade de escapar àquilo que está na tela. Portanto, é por isso que podemos, por oposição, qualificar de “progressista” a montagem eisensteiniana, paradoxalmente pelo que ela tem de mais ditatorial: as passagens de um plano a outro tiram do espectador toda possibilidade de se esquivar do raciocínio, da necessidade de se colocar em relação ao plano em estado de distância reflexiva. Portanto, não há meio de se render à representação. E é esta impossibilidade que Pollet assume por conta própria, mas rejeitando a ditadura do discurso e do sentido.
NARBONI: Eisenstein procurava, é claro, fazer passar nos e pelos seus filmes um sentido, que não era apenas aquele do filme como sentido, autodesignação, mas o sentido do comunismo. O que o situa incomparavelmente mais alto que os outros cineastas propagandistas é que ele próprio partia à procura desse sentido – o qual detinha, cineasta marxista –, desmembrando-o e recompondo-o, conduzindo o espectador com ele, e verificando dessa forma as frases de Marx (que ele cita em Reflexões de um cineasta) sobre a necessidade de que a busca da verdade seja ela própria verdadeira, sobre o processo como parte da verdade tanto quanto o resultado, sobre a procura como verdade aplicada e dispersa se reunindo no resultado.
Na medida em que Pollet parte em guerra contra os sentidos que sobrecarregam, com todo o seu peso cultural, os planos de Mediterrâneo, ele tende a remeter apenas ao filme como sentido, afirmando, no filme, apenas o trabalho do filme.
RIVETTE: É também porque a ideia de sentido é “progressista” no contexto em que Eisenstein trabalha, ao passo que ela age de forma reacionária – como “verdade” – no contexto de Pollet (que também é o nosso): Eisenstein e, até certo ponto, Solanas[10] produzem seus filmes em um meio onde o sentido é ainda relativamente “inocente” (e eles levam rigorosamente em conta esse relativo), ao passo que para nós o sentido é, quer isso nos agrade ou não, sempre retomado pelo circuito da mercadoria, cúmplice da ideologia do comércio[11].
E não podemos esquecer como Eisenstein muito lucidamente trabalhou seu próprio “texto” pela perversão e inversão de um texto anterior. Griffith foi o primeiro que extraiu as consequências de sua situação histórica, ele fez a primeira grande síntese (O nascimento de uma nação [The Birth of a Nation, 1915]) das “descobertas” implícitas e dispersas dos seus predecessores; mas seu principal golpe continua sendo o fato de, tendo recém-finalizado The Mother and the Law, filme que remete a uma ideologia liberal inconscientemente reacionária, tê-lo imediatamente retomado como célula-mãe e elemento motor do futuro Intolerância: o próprio fato de entrecruzar quatro “histórias” em um único fluxo, de impor a mesma lei a quatro tempos, de substituir pouco a pouco a sucessão de intrigas por um único desenvolvimento fílmico (“gesto” revelador/anulador que comanda absolutamente toda a última bobina), reverte literalmente as significações do Ur-Film. É esta “intuição” griffithiana que Eisenstein escolhe retomar em plena consciência; alcançando à luz do marxismo aquilo que Griffith pôde apenas pressentir no interior da ideologia burguesa, ele faz, em relação a este, exatamente o mesmo trabalho que Marx fez em relação a Hegel e, pela refração e a reversão sistemáticas dos dados, dá o seu sentido pleno de luta de classes à má consciência liberal pós-dickensiana.
NARBONI: Quando Dreyer, retomando a temática e a construção de Intolerância, roda Páginas do livro de Satã (Blade af Satans bog, 1919-1920), ele reconstitui um filme em quatro histórias separadas, bem distintas, cronológicas, ignorando a possibilidade de reativação, de contaminação, de interação subversiva que o entrelaçamento dos episódios permitiu a Griffith. Este é na história do cinema o exemplo típico de alguém capaz de produzir uma forma ou conceito sem poder fazer corretamente a teoria desse conceito, e isso porque o presente histórico em que ele se situa, o texto cultural e a ideologia que ele herda de seu tempo não lhe fornecem nem os meios, nem o terreno, nem mesmo a necessidade[12].
RIVETTE: Ora, como todos sabem, esta “teoria” da montagem – se sua prática subsiste mal ou bem, aqui ou ali –, americana (mas Griffith segue isolado: Stroheim ou Vidor apostam desde cedo na “cena”, ou seja, no falado) ou soviética (Eisenstein, Vertov, Dovjenko), é, apesar do célebre Manifesto de 1928, como que apagada pela entrada do som. É, no entanto, a partir do verbo (Resnais, Godard)[13] ou do “direto” (Rouch, Leacock, Perrault e muitos outros) que se efetua pouco a pouco, depois de dez anos, a “retomada” de Griffith/Eisenstein: retomada dispersada, muitas vezes confusa ou pouco consciente de si mesma, mas vontade coletiva de reativar a ideia de montagem a partir, e em função, das aquisições dos trinta anos intermediários.
Desde Griffith, implicitamente, depois explicitamente em Eisenstein e em todos os cineastas que se querem um tanto lúcidos quanto às significações de seus trabalhos, pensar a montagem é pensar a crítica de um texto preexistente: de um “dado” que não é senão – e é isso o que revela o processo das operações textuais – uma fabricação. De onde vem esta hipótese de trabalho: se todo pensamento coerente de montagem é de facto pensamento crítico, toda forma de recusa, ou de desdém, da montagem não implicaria uma mentalidade teológica, ou seja, a aceitação do mundo como ele é e, se não a resignação, ao menos a contemplação passiva do estar lá como pura presença, sem História nem mediação, e todos os conceitos de permanência e de destino ligados a esta ideologia?
Claro, dizer que montagem e pensamento crítico estão de mãos dadas pode parecer uma simples tautologia; mas o que é necessário sublinhar é que é o trabalho material, a manipulação concreta da montagem (desde que ela exceda o nível do raccord ou da elipse, nível dos “aspectos do estilo” da narrativa) o que “conduz” esse trabalho do pensamento crítico, e isso em todos os níveis do filme, inclusive certamente alguns sobre os quais, sem dúvida, o cineasta não refletiu: todo questionamento das superestruturas repercute em um estremecimento no nível das infraestruturas. Outra consequência: esse movimento crítico não está limitado pelos resultados de sua ação no interior do filme, mas este o conserva tal qual pelo seu desenvolvimento: não como marca (“efeito de montagem” fixado), mas como dinâmica (montagem em ato), atuando como tal sobre o espectador; para ele é então impossível abandonar-se confortavelmente à condução de uma narrativa, à representação de uma fábula ou de um pseudo-real: ele deve, se ele quer ler o filme, retomar por sua conta esse trabalho crítico: se ele quer ver o filme, ele deve concretizá-lo.
NARBONI: Entretanto, a prática da montagem como manipulação absoluta, técnica onipotente de agenciamento e de bricolagem, foi por muito tempo e continua sendo tida como autoritária, manipuladora do espectador, ao qual ela imporia uma série de significações unívocas e indiscutíveis. Reconhecemos aí, grosso modo, as teorias de Bazin, mais sensível, por exemplo, ao cinema do plano-sequência ou da profundidade de campo, ao seu sentido mais respeitoso, a um só tempo, à liberdade do espectador – de quem o olhar e a compreensão não estariam sujeitos a um percurso programado – e à “ambiguidade do real”. Nós percebemos hoje que quando ele escreveu: “analisando a realidade, a montagem supunha, pela sua própria natureza, a unidade de sentido do evento dramático”, Bazin tinha razão em relação àquilo que concernia o cinema de Pudovkin, por exemplo, em que a pulverização cênica, a atomização em planos não tinha nunca outro objetivo senão o de analisar uma situação ao extremo, deslocá-la para dramatizá-la ou ampliá-la, sem fazer aparecer um sentido novo, mas não tinha a propósito de Eisenstein, para quem tratava-se sempre de “conduzir o espectador por um processo de produção de sentido”. A integração da montagem à plástica, na qual Bazin reconhecia a marca do cinema moderno, nós a reencontramos em muitas cenas, em vários escritos de Eisenstein, assim como a fórmula deste, “a quantidade de intervalos determina a pressão da tensão”, poderia perfeitamente se aplicar aos exemplos que serviram de fundamento às análises de Bazin (os filmes de Wyler, a cena da cozinha de Soberba [The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942], organizados sobre o princípio da diferença de potencial e da lenta carga dramática dos planos). A liberdade deixada nesses filmes ao espectador era apenas aquela que, guiada, orientada entre certos polos ou pontos fortes perfeitamente repartidos e dispostos no interior do plano, o cineasta queria conceder a esse espectador, para finalmente impor a ele um senso determinado de avanço, do qual o retardo que ele colocou para suscitá-lo poderia, no entanto, dar a impressão de que foi detectado por um olhar. É nesse ponto que podemos constatar a maior contradição das análises de Bazin, extraída, por um lado, entre a crença em uma ambiguidade do real e a certeza, por outro, de que existe uma linguagem do mundo, um sentido natural e escondido das coisas das quais o cinema, sem o ter produzido, e unicamente pela virtude de sua acuidade e de sua insistência, teria apenas capturado o surgimento.
RIVETTE: De fato, este pensamento do cinema como transparência, o qual podemos resumir pela tríade Renoir-Rossellini-Bazin, está situado ele mesmo historicamente em oposição a uma “perversão” generalizada (perversão no senso comum, perversão burguesa) da prática eisensteiniana; pois o que faz Pudovkin, senão retomar o invólucro dos princípios teóricos de Eisenstein e colocá-los a serviço do relato de uma história, a reboque de uma narração: o efeito de montagem é “utilizado” apenas para dar mais eficácia a uma narrativa submetida à progressão da personagem. Pelo viés de Pudovkin, essa degradação e essa caricatura da “arte da montagem” foram transmitidas a toda uma parte do cinema de consumo. (Podemos notar como, da mesma maneira e no mesmo momento – a mesma finalidade orientando o mesmo processo –, efetuou-se por intermédio de Pabst a liquidação do expressionismo em prol da estética da “mise en scène” como blefe formal que governa até hoje todo o cinema europeu e hollywoodiano: Clément, Preminger, Chukhrai, Rosi). Esta técnica da manipulação do “real”, em que o realizador é o mestre mais ou menos oculto, cessa rapidamente de ser a arte da montagem para se tornar a da decupagem (e, acessoriamente, do “enquadramento” ou da “direção” de atores). É contra a ditadura da decupagem que se colocaram Renoir ou Rossellini, não contra a montagem, que neles é mais como o lugar de uma censura, de um “branco”: o fato de que o cineasta não precisa mais ir para a sala de montagem, já não sente essa necessidade, os conduz praticamente, e ao que parece inconscientemente, a reinvestir uma parte do pensamento da montagem na etapa de construção do filme e, sobretudo, na etapa de filmagem (cf. o papel do plano-sequência ou da mobilidade da câmera nesses cineastas ou em Welles, Hitchcock, Mizoguchi, em oposição à técnica analítica generalizada, e como estruturação de níveis e de conflitos formais).
Podemos então, muito esquematicamente, distinguir quatro momentos: o da invenção da montagem (Griffith, Eisenstein), o do seu desvio (Pudovkin-Hollywood: refinamento das técnicas do cinema de propaganda), depois a recusa da propaganda (recusa ligada, de perto ou de longe, ao plano longo, ao som direto, ao ator amador ou cúmplice, à narrativa não-linear, à heterogeneidade dos gêneros, dos elementos ou das técnicas etc.); enfim, aquilo a que nós assistimos depois de dez anos, ou seja, a tentativa de “recuperar”, de reinjetar nas práticas contemporâneas o espírito e a teoria da primeira etapa, sem no entanto rejeitar a contribuição da terceira, ao invés disso tentando alimentar uma com a outra, dialetizá-las e, de uma certa maneira, montá-las.
NARBONI: Eisenstein, Pudovkin: hoje não devemos mais pensar sua oposição nos termos, segundo as categorias e sob as relações geralmente aceitas – montagem intelectual/montagem lírica, cinema-grito/cinema-canto, dominante criativa/dominante teórica –, mas fundada sobre as suas concepções exclusivas da dinâmica cinematográfica, tal como ela se manifesta nos seus filmes e se esclarece nos seus textos. Aqui é necessário citar um texto decisivo: “O elemento fundamental do cinema soviético, seu problema específico, é a montagem. A montagem não é nem um meio de mostrar ou de narrar, fragmento após fragmento, como um pedreiro empilha tijolos (Kulechov), nem um procedimento para desenvolver uma ideia através de uma sucessão de planos (princípio lírico de Pudovkin). A ideia deve resultar do choque de dois elementos independentes.” Nós vemos então muito claramente o que separa a escrita de Eisenstein (efeitos transformativos sucessivos cujos elementos motores são ligados por signos dinâmicos de correlação e de integração, onde as operações em ato são de multiplicação e de produção, onde o entrechoque de dois elementos engendra, por um salto decisivo, um conceito novo) daquela de Pudovkin (encadeamento de planos veiculando alternadamente uma ideia única, segundo um processo de ordenação simples). O que separa então um espaço e um tempo multidimensionais, organizados segundo os princípios de uma polifonia complexa, um alcance significante, um volume em expansão constante, uma cenografia, de um tempo linear, falsamente dialético. Nós tomaremos emprestadas de Louis Althusser uma questão e uma resposta: “Como uma dialética pode estar atrasada? Pela condição única de ser o outro nome de uma consciência”... “não há, no sentido estrito, dialética da consciência que resulte, pela virtude de suas próprias contradições, na própria realidade... Pois o acesso da consciência ao real não se dá pelo seu desenvolvimento interno, mas pela descoberta radical do outro além de si.” É este outro da consciência que Pudovkin jamais obtém. Um filme como A mãe (Mat, 1926), por exemplo, centrado em uma personagem central, uma consciência abarcando em si a totalidade das condições do drama, utiliza abusivamente a máscara de um filme dialético e marxista, na medida em que o cinema de Pudovkin estava submetido a uma lógica narrativa simples que lhe interditava colocar em jogo temporalidades múltiplas, descontínuas, mas somente um tempo definido por uma sucessividade uniforme.
NARBONI/RIVETTE: Isso leva a questionar o próprio tema da “tomada de consciência” e a revelar sua cumplicidade com o método segundo o qual Pudovkin só “progride” em seu trabalho se seguir o fio de uma ideia que percorre o filme em filigrana e que nunca é produzida pelos planos, mas transmitida por eles. Se nós colocamos em paralelo A mãe e O velho e o novo constatamos que o primeiro conta a história (é a narrativa) de uma personagem, cuja visão de mundo se modifica pouco a pouco, por acumulação, seguindo as etapas e as modalidades da anedota (essa história pôde, por exemplo, ser contada por Ford – melhor – em Vinhas da ira [The Grapes of Wrath, 1940]: mas cf., para a contraprova, a versão de Brecht a partir do mesmo texto de Gorki); ao passo que o segundo nos faz assistir, e colaborar, a uma metamorfose, por uma série de mutações, do “intermediário-protagonista” que escande o curso do filme – e que não é mais personagem, mas um nó de forças e de atos: ator (atua/atuando), e funciona na organização das sequências como uma palavra que se transforma e esgota, uma após a outra, todas as suas virtualidades –: consciência descentralizada que, em nenhum momento, reflete ou domina a situação no seu todo, mas é dada toda vez como um efeito da dinâmica do filme. Nenhuma “cena” mostra, nem demonstra tal estado (consciente e refletido) do “longo e duro caminho” da camponesa; é somente a práxis que modifica sua aparência; é porque o trator entra em pane que ela faz (que ela sofre) o salto qualitativo decisivo: ela ocupa então um estágio Z correspondente ao ponto final da sua “evolução” como camponesa (por saltos do estágio de camponesa alienada ao de camponesa “esclarecida”), o trator para, o mecânico rasga sua saia, livrando-a dos ouropéis de sua presente condição, para utilizar os farrapos como trapos (que participam assim no conserto do motor), há aqui um salto brusco, inesperado: ela é tratorista. (E todo o fim do filme é apenas a montagem dela mesma com ela mesma: seus rostos sucessivos combinando com a imagem de seu avatar “final” – no tempo do filme.) A personagem, longe de submeter a lógica da narrativa às leis da sua reflexão, é produzida pelo mecanismo transformacional das sequências[14].
NARBONI: E não se imagina que esta descontinuidade na evolução apresentada da camponesa seja uma descontinuidade secundária, operada a posteriori, por eliminação de etapas intermediárias e de tempos de ligação filmados, que ela possa ter sido pensada na ordem da elipse ou do efeito de estilo. Poderia ocorrer a Eisenstein acumular na filmagem, em vista e com a ideia da montagem, um material fílmico amplamente superior àquele que ele tinha intenção de manter, ele se precavia frequentemente em relação às possibilidades de articulações imprevistas, de encadeamentos inéditos, de valências a saturar, ele podia na montagem romper e escavar uma continuidade primitivamente filmada, manter apenas algumas etapas de um gesto, momentos de um percurso, pontos fortes de uma situação, mas não se concebe, nesse caso preciso da camponesa em O velho e o novo, que ele a possa ter filmado na gênese contínua e respeitada da sua evolução. Sua aplicação rigorosa das teorias marxistas do salto, do corte brusco como momento revolucionário da remodelação do todo, o proibia completamente.
RIVETTE: Desvio, pelo qual devemos retornar, talvez, à problemática das relações entre o direto e a montagem; pois um filme como Para que o mundo prossiga mostra de maneira muito clara como Perrault (como Rouch) soube muito rapidamente ultrapassar a etapa da montagem como simples seleção e ordenação de uma matéria, por definição superabundante em relação ao “projeto” do filme, e como o filme, para além do seu valor de documento, apenas assume valor poético na medida em que esta matéria se encontra retomada no decorrer do filme em esquemas formais muito precisos, ao mesmo tempo em que essa matéria os sugere e os informa dialeticamente: isto tanto no nível da relação plano a plano quanto no nível da estruturação do filme em movimentos (musicais) e capítulos (ficcionais ou temáticos). O que é ainda mais explícito em O reino do dia (Le règne du jour, Pierre Perrault, 1965-1967), assim como a intervenção criativa da montagem é mais flagrante em A caça ao leão com arco (La chasse au lion à l’arc, Jean Rouch, 1958-1965) que em Jaguar (Jean Rouch, 1954-1967) ou Eu, um negro (Moi, un noir, Jean Rouch, 1957-1959): estes estão mais próximos da forma-crônica, aqueles mais próximos da forma-epopeia.
Outra observação, decorrente da precedente, outra similitude: assim como, para Eisenstein, o horizonte da montagem é proeminente desde o estágio da pré-filmagem (mais ainda, durante a filmagem, mesmo que apenas pelo uso por vezes sistemático de múltiplas câmeras: cf. o artigo de Noël Burch sobre as “Funções do risco”, n.º 194), assim também o cineasta do direto acumula uma matéria para a montagem, no horizonte de um questionamento desta matéria bruta e de sua destruição como tal. Perspectiva que atua o mesmo papel motor em Cassavetes, mesmo que seja na óptica de uma dramaturgia (porém denunciada, minada radicalmente pelo emprego de tal material: desviada e redirecionada) que ele opere sua prática de captação do “texto” (nessa etapa, do pré-texto, no seu primeiro estado de “surgimento” espreitado pelo sentido)[15].
Inversamente, no caso de Não reconciliados, vemos bem que o detalhe da montagem é rigorosamente dominado, como Straub cerrou, ou descerrou, cada ligação, trabalhou com as variações de tempi etc. – em suma, fez resultar na moviola o princípio do filme, mas como também só filmou o estrito necessário seguindo a “previsão” da obra acabada, como o filme preexistia, portanto, à sua matéria desde a etapa da escrita; mas, ao mesmo tempo, é preciso observar como esse trabalho de condensação, escolha e reordenação foi na verdade efetuado a partir de um vasto material de base (i.e. Bilhar às nove e meia, o texto de Böll, que passa aqui por uma operação de redução, deslocamento e conversão que não tem mais nada a ver com o que habitualmente chamamos de “adaptação”): aqui, portanto, o trabalho preparatório da escrita funciona como montagem[16].
Além disso, Straub impõe ao espectador (ao menos o espectador virgem da primeira visão, mas também, em parte, ao das seguintes) uma linguagem obscura, obstinadamente desviada, em que o ignorante parece ser o destinatário (ainda que, contudo, ele preencha essas funções, mas tacitamente), e que o impede de conquistar diretamente o “saber” que ela parecia encarregada de lhe transmitir[17]: o filme funciona diante dele, dir-se-ia, como um sonho, como produto de um inconsciente (mas inconsciente de quem? do texto literário? de cinquenta anos de história da Alemanha? dos Straub? das próprias “personagens” do filme?), cuja estrutura é feita de múltiplos recruzamentos e ecos literais, no limite do jogo de palavras e/ou de imagens, todos os elementos informativos estando assim capturados no quebra-cabeça, porém deslocados, ocultados, embaralhados: tal como o monólogo central da mãe (que não por acaso está no lugar em que convergem e de onde divergem os componentes da fasces)[18], discurso de um espaço-tempo onde são colididos e confundidos (retomados em uma operação de montagem/mixagem) todos os tempos e todos os espaços. Ora, foi diante de uma problemática bastante próxima que a revisão de Gertrud nos colocou algumas horas mais tarde: se o filme de Dreyer, mais “lógico”, em todo caso mais cronológico, não opera formalmente como sonho, ele impõe, no entanto[19], também, o vocabulário “onírico”: ao mesmo tempo narrativa do sonho e sessão de análise (análise em que os papéis são constantemente trocados; submetida à corrente, ao fluxo regular dos planos longos, aos passos magnéticos dos movimentos incessantes da câmera, à igualdade monocórdica das vozes, à fixidez dos olhares – sempre desviados, frequentemente paralelos, em nossa direção: um pouco acima de nós –, à imobilidade constrita dos corpos, retraídos em poltronas, sobre divãs atrás dos quais o outro permanece silencioso, congelados em atitudes ritualísticas nas quais eles não são mais que o local de passagem para a palavra, deslizando em uma penumbra arbitrariamente pontuada por zonas luminosas nas quais os próprios sonâmbulos vêm se inscrever...)[20]. Portanto, dois filmes que impõem, através de vozes convergentes, a mesma analogia entre o seu funcionamento (sua operação) e aquele de “tudo” o que designamos sob o nome de inconsciente: mas, ao mesmo tempo, dois filmes em que o trabalho fundamental parece ter lugar no nível da intenção e da escrita (pulverização do texto original em Straub; em Dreyer, condensação e “concentração” desse texto)[21]: mas enfim, filmes em que o momento da montagem “atua” como concretização desse trabalho, mas também como intervenção do arbitrário. Ora, essa função “enigmática” da montagem, constante em Dreyer, é sempre operada por ele por “imposição” de lacunas (marcas da censura?): cf. como cada início e fim de planos em A queda do tirano (Du skal ære din hustru, 1925) são sistematicamente interrompidos, picados, ocultados no movimento (sempre parcialmente lacunar), cada raccord “falso” de algumas imagens: cf. mais ainda todo o A paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, 1928), e como, de O vampiro (Vampyr, 1931-1932) a A palavra (Ordet, 1955), Dreyer interrompe e corta no meio quase todos os seus movimentos de câmera: cf. enfim, em Gertrud, os três ou quatro cortes-elipses, na emenda de dois planos-correntes, que intervêm tranquilamente na suposta continuidade da cena: elipses provocantes, voluntariamente perturbadoras, e que fazem que o espectador sinta-se obrigado a se perguntar, por exemplo, para onde “foi” Gertrud: ora, ela saiu durante a emenda. E talvez seja por esta vontade deliberada de introduzir, na etapa da montagem (ao invés de se limitar a fazê-la recopiar o texto da pré-filmagem, ou de fazê-la desempenhar, como em Bresson, um papel antes de tudo “musical”), na escrita, tão precisa e monitorada quanto ela pôde ser nas etapas precedentes, esses cortes, essas rupturas, esses saltos: este irracional – que a “passagem” do in-consciente, encurralado pelo jogo literal, se efetue.
NARBONI: A referência à música, que acabou de ser feita acerca de Bresson, pode convir também a todos os filmes de Straub, seja porque eles são trabalhados por preocupações que vão nesse sentido, seja porque eles são a pesquisa de homologias possíveis. Podemos citar, um pouco ao acaso, a repartição e a dosagem dos tempi, a alternância de zonas de tensões e de abrandamentos, de núcleos densos e de períodos silenciosos, o jogo complexo e variável da autonomia e da interdependência das “células”, a composição em blocos largos ou elementos pontuais, em expectativas ou rompimentos, a combinação de estruturas fortemente sólidas e de outras mais “livres”, enfim, a aplicação do princípio jamais contestado de Stravinsky, da recusa da expressividade. Lembremos os termos, válidos também para todos os filmes de Straub, com os quais Stockhausen escreveu sobre Machorka-Muff: “O que me interessou no seu filme foi a composição de um tempo próprio ao filme – como na música. Você alcançou boas proporções de períodos entre as cenas em que os acontecimentos quase não contêm movimento – como é espantoso, num filme de duração relativamente curta, a coragem de fazer pausas e tempi lentos! – e aquelas em que os acontecimentos são extremamente rápidos – é cintilante a escolha de trechos de jornais dispostos em todos os ângulos na verticalidade da tela. Além disso, a relativa densidade das mudanças nos tempi variados é justa... Deixar que cada elemento venha no seu momento insubstituível, que seria impensável suprimi-lo; nenhum ornamento. ‘Tudo é essencial’, diria Webern nestes casos (mas com cada coisa no seu tempo, deveríamos acrescentar) (...) Essa agudeza, esse comportamento estranhamente fulgurante da câmera nas ruas, no hotel (muito bom o fato de vermos longamente as paredes vazias do quarto de hotel, de cuja nudez não podemos nos desprender), na janela... E também a condensação ‘irreal’ do tempo, sem que nunca se tenha pressa. É nesta cortante aresta entre a verdade, a concentração e a agudeza (que penetra e queima na percepção do real) que o progresso será possível”.
Válidas para o dia narrado em vinte minutos – dia particularmente rico em eventos – de um oficial da Alemanha Ocidental, essas observações se aplicariam também ao tratamento, à transformação em cinquenta e cinco minutos de filme de cinquenta anos não menos carregados da História alemã (Não reconciliados) ou de trinta anos de criatividade musical intensa em uma hora e meia de fluxo de imagens e sons (Crônica de Anna Magdalena Bach [Chronik der Anna Magdalena Bach, 1967-1968]). Simplesmente, podemos tentar identificar a função atribuída por Straub a tal tratamento do tempo: com o que rima esta combinação entre nós significantes sobrecarregados, saturados de informações (no limite por vezes ou para além da nossa capacidade de assimilação, da nossa rapidez de decifração), e pausas, “expectativas”, feixes rápidos, borrões e transbordamentos temporais “inúteis”, durações vagas (que podem ocorrer no começo ou no fim de um plano, por vezes atuar sobre um plano na sua integralidade, na insistência de seu desenvolvimento). Parece que podemos dividir esta função em três registros, ligá-la a três ordens (pelo menos) de preocupações: 1) estruturais, rítmicas, composicionais: jogo do contínuo/descontínuo, da retenção/protensão, regrado sobre o modelo do “corpo lacunar”[22]; 2) antiexpressivas: referindo-se, portanto, à frase de Stravinsky, segundo a qual a música seria incapaz de exprimir o que quer que seja, tendo por corolário os planos “vazios” (mas não obrigatoriamente vazios de personagens), esvaziados de tudo aquilo que poderia ser preenchido por um sentido, dominação de uma intenção prévia; 3) transformacionais: de uma parte o tempo específico ao filme opera a captura e a mutação a seu proveito do tempo cronológico, referencial, “vital”, mas é necessário também, para validar esse regime propriamente fílmico (chegar, por exemplo, a fazer passar toda uma vida, a dar o sentimento de que ela se desenrola em uma hora e meia, ao invés de ter sido capturada em certos estágios privilegiados e emblemáticos), reinvestir esse tempo da vida em planos cujo ritmo e continuidade parecem fluir dele. Marcar, ao lado de lacunas e brechas em que a duração (“vital”) se precipita e desaparece, momentos em que temos a impressão de que ela tem o tempo de passar no tempo do filme. Efeito que podemos chamar “efeito do real temporal”, engendrando um tipo muito particular de suspense sem finalidade, que age em nós como função de renovação e de recarga, submetendo nossa atenção a um batimento, um desenvolvimento pulsátil.
RIVETTE: E suspense puramente formal: o que o plano vai ser? – e não: o que vai ser no plano? Ao mesmo tempo, essa vontade de esvaziar certos planos, de fazer seguir um plano que acumula as informações por um plano que parece não fornecer nenhuma, ou, igualmente, em certos pontos, a proliferação de informações falsas (falsas porque não referenciais ao contexto do filme, não “informativas”: pistas falsas em que a capacidade de atenção e memória do leitor se perde – a pilha de nomes próprios, a páprica...), tudo isso me parece fazer parte daquilo que permite ao filme funcionar como narrativa do inconsciente. É preciso que o filme termine para que a sua leitura (sua releitura) possa ser efetuada; é preciso que a narrativa do sonho seja concluída para que a análise, descartando todo o material não-literal, possa identificar os elementos recorrentes, realmente significantes, e os lapsus, máscaras, metamorfoses, censuras.
Notas:
[1] No início de nossa (tentativa de) reflexão sistemática, a leitura do primeiro número da revista Change, intitulado justamente “A montagem”, e, sobretudo, o próprio fato da sua aparição, foram extremamente importantes e por assim dizer encorajadores. Pois, guardada todas as proporções, tratava-se para nós, examinando mais particularmente a montagem no cinema, de nos situarmos dentro da mesma problemática geral, a saber, a interrogação de todas as ideias de ligação, justaposição, combinação (e seus corolários: diferença, corte, análise). Interrogação que também esperávamos que fosse implementada ao mesmo tempo na nossa análise das próprias obras e no jogo, ele mesmo combinatório (já que instaura múltiplas passagens de uma obra à outra), desta análise.
[2] E aqui parece evidente, em prosseguimento às discussões de Aix, que é preciso considerar duas direções negativas: a montagem rarefeita, pela duração dos planos (Gertrud e Marie pela memória), e a montagem apagada, em filmes em que uma continuidade – narrativa ou musical – atenua as passagens de um plano a outro (A Imperatriz Yang Kwei Fei e A regra do jogo [La règle du jeu, Jean Renoir, 1939]). No primeiro caso (montagem rarefeita), a avareza das ligações pode evidentemente ser tática: montagem tão articulada que economiza os seus meios e os seus efeitos. No segundo (montagem apagada), é na medida em que se faz esquecer, ocultar seu trabalho de descontinuidade, que a montagem se exerce. Então nos dois casos há a possibilidade de uma inversão da ideia negativa: rarefazer ou apagar a montagem é em algumas ocasiões ainda manobra de montagem.
[3] Uma confusão continua a prevalecer, que, no entanto, aparentemente poderia ter sido eliminada há muito tempo: a que identifica a montagem (nos seus efeitos ativos) e montagem curta, aquela que quer que o trabalho de montagem seja feito obrigatoriamente com a profusão e a atomização dos planos. No cinema russo mudo a fragmentação das cenas podia, a rigor, mobilizar a atenção até perder de vista o rigoroso trabalho de articulação das sequências entre elas (sabemos que para Eisenstein e Dovjenko esta composição era, no entanto, de primeira importância), mas se compreende mal que, depois de dez anos, esta assimilação abusiva da montagem rápida, descontínua, picotada, continua a ter valor. Assim, em uma boa parte do cinema moderno, efetuam-se deslocamentos de blocos compactos, o ajustamento de longas correntes contínuas, a imbricação regrada e obtida pouco a pouco de partes homogêneas, de fragmentos de narrativa que parecem eles mesmos procurar e designar o lugar que lhes convêm na economia global do filme. A chinesa (La chinoise, Jean-Luc Godard, 1967) é um exemplo-tipo, em que nenhuma intenção definitiva preexistia à disposição das partes, em que a lógica da narrativa impôs seu poder mais do que ela foi imposta pelo “autor”, criando suas próprias ligações, entrelaçando no movimento da sua criação a inserção de uma parte, a recusa de outra, titubeante, hesitante, mais tarde indiscutível, cada bloco deslocado mantendo o traço de suas passagens e de suas redistribuições, o empréstimo, a marca da combinação. A montagem, portanto, não é o trabalho sobre um material preexistente, mas trabalho desse material, auto-formador, auto-produtivo, ao mesmo tempo molde e matéria, lugar de um movimento e soma dos elementos que constituem esse movimento.
Marie pela memória: próximo em certos pontos de A chinesa: blocos homogêneos, indivisíveis, unidades se deslocando como índice ao longo de uma matriz ainda ausente da montagem, incrustando-se nos seus lugares (tornando-se, nos seus pontos de inserção, índices, objetos designados). A montagem então não poderá ser considerada melhor ou pior do que ela poderia ter sido (ilusão normativa que refere um produto a um modelo definitivo e perfeito), sendo, pelo que ela é, ao mesmo tempo nela mesma todos os seus atributos. Deduzir o que disto?: 1) todas as acusações de pertencimento à ordem do simbolismo formuladas contra o cinema de Garrel (para nós ao contrário, na força de sua materialidade, literal, corpo tomado ao pé da letra, letra tomada como corpo) são suspeitas. É preciso aqui diferenciar radicalmente o “simbolismo”, como sistema fixo e rígido, da ordem do “simbólico”, como entendido por Lacan: movendo-se ao contrário, deslizamento incessante e substituições, deriva dos significantes; 2) esta noção da montagem como sendo o que é não pode ser desvencilhada da ordem do qualquer coisa-eu-quis-assim do autor, uma vez que tira a sua necessidade do trabalho, ao qual serviu como elo e do qual guarda vestígios, na forma de um transtorno surdo, profundo, que foi feito e que persiste no estado definitivo do filme (cada plano garante o seu lugar por si mesmo). Trabalho, em se tratando de Garrel, a ser tomado em sua acepção ginecológica: como a gravidez contém os meses em que duram as preocupações do seu estado prenhe, também é assim com um filme: misto de tranquilidade e de febre. E o parto, a fecundação dos planos atuou em todos os sentidos, na reciprocidade, ao avesso igualmente (assim, no filme, Marie, mãe, mulher e filha de Jesus).
Em La concentration (1968) tomou lugar outro procedimento: Garrel filma durante três dias sem interrupção, fechado com sua equipe e seus atores em um pequeno estúdio. A tensão, a fadiga e outros fatores atuantes levam-no a acreditar em certo momento que a sucessão de planos (que deveria ser também a sucessão cronológica do filme, já que pela primeira vez a ordem da montagem foi prevista por ele) não seria dotada de uma grande intensidade, sobre-excitada. Ele troca então a ordem da filmagem, filma primeiramente o fim do filme, depois o terceiro quarto. Aqui temos, então, uma montagem produtiva da filmagem e de seus modos?
[4] Podemos, talvez, ao falar do filme de Chytilová, entrever como o próprio princípio da montagem corre o risco de ser o princípio de recusa e de supressão – e não somente de elisão, mas literalmente de subtração, de esfoliação, ou ainda de impedimento e de “intimidação” (do espectador-voyeur: assim Sergei M. Eisenstein lhe recusa a contemplação da trajetória do gesto e o compele a criar a “ideia” do ato ao negar-lhe a fruição e ao provocar um curto-circuito nos termos). Montar não seria então adicionar, mas retirar (e a retirada em ação), não fazer, mas desfazer: o negativo a trabalhar. É preciso ver o filme como resíduo, a rede dos traços deixados pelo procedimento duplo de uma ação (a filmagem dos planos, processo de acumulação) e da sua negação (a montagem, processo de consumação): este funciona então “vazio”, não como uma ausência, mas como o próprio ato de esvaziamento, de apagamento, o movimento de recuo do Outro.
No limite, o filme é a recusa do filme, sua contradição (seu “anti-filme”?): subsistem apenas suas marcações, os índices de sua “passagem”, para sempre passado/futuro: como o filme no projetor só existe por apagamento de uma imagem por outra, a incessante diferença, a consumação-destruição de todas as suas “imagens”: falsa presença, decepção sempre renovada, sempre adiada. A montagem é o funcionamento desta decepção.
[5] O extremismo desta sistemática seria muito bem representado por um filme como European Diary (Taylor Mead, 1967) que, filmado imagem sobre imagem, pode economizar a etapa da montagem e montar diretamente na filmagem. A extrema rapidez das ligações chega a interditar a própria percepção de cada plano. Uma vertigem monótona toma o espectador nesta obstinada confusão. Mas talvez outro discurso se constitua então (se o espectador investe uma certa boa vontade, ou se apoia em uma certa paraconsciência) não do filme, mas do próprio espectador, a partir de fragmentos infraperceptíveis do filme. Como esses sonhos complicados, muito ricos, imediatamente esquecidos ao se acordar (a).
(a) Horizonte inverso: o (mais) famoso (que visto) Chelsea Girls (Andy Warhol e Paul Morrissey, 1966). Não-montagem absoluta, já que o filme é a alternância ou a justaposição (ela mesma ao acaso) de bobinas “correntes fílmicas” tal como saíram da câmera, contidas nelas todos os seus acidentes de percurso e sobras de película; e, portanto, o simples fato da projeção, logo da sucessão e da simultaneidade (pela coexistência de duas telas) de planos brutos, constrói a montagem: a cada exibição uma diferente, mas inelutável. Como se não pudéssemos sair do cerco, como se fosse impossível cruzar o encerramento da montagem. (Jacques Rivette)
[6] É um emprego bem diferente da montagem que temos em Cassavetes: naturalista. (O cinema de Cassavetes é um “expressionismo natural”, disse muito justamente Jean Narboni.) Ele trata de veicular: febrilidade, dúvidas, tentativas, fulgurâncias, expressões fugazes e contraditórias, lassitudes, nervosismos, tempos mortos ou vivos sucedendo-se como na vida. A montagem é então o meio privilegiado: o instrumento da pincelada. E é apenas metaforicamente que assim falamos: como na pintura uma pincelada de verde coloca uma contradição realista em um vermelho. Dessas contradições ancoradas na vida, por respeito à vida. Não se trata de nuance (nada mais assertivo que a nuance), mas, por tremores e hesitações, de guerra feita ao sentido enquanto inexatidão vital.
[7] A entender circunstancialmente na sua acepção ginasial e esportiva, mais do que na marxista, eu presumo (como nós a entenderemos mais tarde). (Jean Narboni)
[8] Cf. mais à frente a crítica, por Jean Narboni, desta assimilação do plano à palavra: mas é fato que Pollet quer conduzir cada elemento do filme: Veneza, bloco operatório, templo grego, ao seu ponto mais extremo de “asseio” (e de propriedade): como a palavra no poema mallarmeano (a referência ao Coup de dés é explícita ao longo de todo o texto de Sollers), polido, cercado, cristalizado, como se cortado de toda a impureza do dicionário. Enquanto Godard se esforça em destruir esse elemento-simples (esse monema): assim Joyce “trabalha” suas palavras ao mesmo tempo no “interior” e no espaço do léxico: recortadas, desmembradas, colididas, confundidas.
[9] Questão (questões) que coloca também, pelo seu próprio título, o filme de Chytilová. De qualquer maneira, podemos observar como quase todos os títulos desses filmes são “significantes” do seu próprio funcionamento: Algo diferente, claro, mas também O velho e o novo (que estão na obra, e em conflito, em cada sequência, cada célula, cada fotograma), Não reconciliados (como cada um de seus planos, fechados sobre a palavra: exílio voluntário fora do mundo adenaueriano dos compromissos, negação calma de uma harmonia falsa), Intolerância, Made in U.S.A., Para que o mundo prossiga, Mediterrâneo (“mar no meio das terras”...): cada um desses títulos funciona como o manual de instruções do filme. Enquanto que Gertrud e A Imperatriz Yang Kwei Fei são apenas etiqueta (mas será sem dúvida fácil achar em Renoir, em Rossellini, mas também em Ford ou Dreyer, títulos ambivalentes, e que compartilham mais ou menos claramente a mesma consciência da forma como “conteúdo da forma”...) (Jacques Rivette)
[10] E justamente, na distância tomada por Pollet em relação a Eisenstein (a rejeição da ditadura dos sentidos), é preciso considerar o caso Solanas. Em A hora dos fornos, existe uma ditadura muito violenta do discurso (trabalhado essencialmente pela montagem do som e da imagem). Para nós que, no contexto francês, somos afeitos à ideia de que o sentido obrigatório é um princípio reacionário, é necessário de repente ir muito longe na relativização do nosso raciocínio, até colocá-lo em relação com a atual situação da Argentina. Esse sentido, então, está sendo imposto aos argentinos (que o peronismo, como força de reagrupamento de massas populares já existentes, deve ser o ponto de partida da propaganda e da ação revolucionárias)? Confessemos que não sabemos nada. Mas, de toda maneira, a própria ideia de violência política (como em uma revolução, mas ela poderia ir também no sentido da reação ou do fascismo) não impõe por ela mesma, como corolário, a ideia da violência do sentido? Então não seria mais a produção de um sentido obrigatório o que deveríamos considerar como reacionário, mas apenas o sentido produzido é que precisaríamos interrogar. Seríamos nós obrigados a esta regressão pela própria política? A ideia de obra aberta, em suma, apareceria como um dos últimos avatares do liberalismo ocidental? Ou talvez seja necessário interrogar com mais rigor os contextos da obra? (Sylvie Pierre)
[11] Cf. os textos decisivos de Jean-Joseph Goux: “Marx et l’inscription du travail”, “Numismatiques” (Tel quel n.ºs 33, 35 e 36).
[12] Inversamente, sabemos em que sentido Eisenstein retoma Dr. Mabuse, o jogador (Dr. Mabuse, der Spieler, Fritz Lang, 1922) para remontá-lo e corrigi-lo. Sabemos também como ele trai, para lhe dar seu pleno sentido político, o romance de Theodore Dreiser, Uma tragédia americana, “indiscutivelmente um romance de grande classe – ainda que não seja, do nosso ponto de vista, um romance de uma classe”, livrando-o de tudo o que o encobria de ideologia vagamente “progressista” em vez de fornecer aos seus produtores “um filme policial sem complicações, em torno de um bom assassinato e de uma boa história de amor” (também lhe recusaram seu projeto). (“Reflexões de um cineasta”, páginas 117 e seguintes).
[13] Ver como é a própria vontade de juntar ao “vocabulário” contemporâneo do filme, para um, o texto de Duras, Robbe-Grillet, Cayrol, mas para o outro a palavra mais ameaçada (cotidiana, contingente, trivial, fugaz) – que os conduz, diríamos, a recuperar as práticas da descontinuidade.
[14] Nem o título russo (O velho e o novo) nem o título em francês (La ligne générale, “A linha geral”) dão conta da economia global e do dinamismo próprio do filme, na medida em que um e outro pertencem ainda à categoria de um tempo linear e contínuo, progressivamente gerado, tempo do desenvolvimento histórico (desenvolvimento rompido no título russo pela brusca passagem ao Novo, movimento de progressão tenaz em direção ao comunismo no título francês). O filme, ao contrário, atuando por blocos e conjuntos, por séries descontínuas, não é jamais, de uma vez por todas, atravessado pela barra miraculosa que marcaria a passagem definitiva do Velho para o Novo (tipo de “progresso” característico de filmes “liberais” americanos, respondendo à ideologia de uma história ininterrupta orientando-se sobre qualquer horizonte de “luzes”), mas cada cena é ela mesma atravessada pela barra velho/novo, o movimento é aquele de saltos mais e mais radicais de cena a cena, cada uma englobando todas as precedentes para ser por sua vez retomada. Podemos resumir esse movimento por um esquema: 1) {Velho/Novo} VELHO / 2) {Velho/Novo} NOVO. Vemos então que o próprio filme, integralmente, e somente no seu fim, pode ser declarado “o Novo”, com a reserva essencial de que quando o último plano acaba, ele por sua vez volta ao Velho, pedindo que seu movimento revolucionário seja retomado, prolongado, perseguido pelo espectador, e desta vez na vida.
A impossibilidade de nossa linguagem ocidental unidimensional imaginar o movimento do filme de Eisenstein prova a qual ponto ele instaurou um corte decisivo na História (história em geral e do cinema) pela formulação de um espaço volumétrico, de um tempo plural, de uma topologia complexa. (Jean Narboni)
[15] Do que o (som/cinema) direto é a “prova”? Cf. antes de tudo “Le détour par le direct” (Jean-Louis Comolli, Cahiers n.ºs 209 e 211). Som direto = marca do surgimento de um fragmento do “real”, traço da operação de captação, em dado momento preciso da História (hic et nunc, mas também passado/em outro lugar), de algo acidental: a tomada é produto do “fenômeno” pela mecânica, inscrição primitiva pelo encontro: daí os rushes, estado nascente do filme. E montagem = tática dos encontros entre imagens-sons sucessivos, mas ao mesmo tempo entre banda-imagem e banda-sonora, em direção “ao” filme em seu estado póstumo. Dupla dupla-operação, e produtividade através da relação (em conflito) desses dois “blocos” repartidos: filme 1 e filme 2 (diante/atrás da objetiva // coexistência/sucessão de imagens-sons). Dupla intersecção espacializando o processo do filme (“cubo” dinâmico) sobre todos os vetores do espaço-tempo.
[16] É preciso notar, de qualquer maneira, que é pela presença do discurso oral – da “série” de fragmentos de discurso, na verdade – que governa o filme que Straub acabou como que constrangido (depois de um primeiro “tratamento” cronológico) à sua construção definitiva.
[17] Não por intenção de obscuridade, mas, ao contrário, porque ele conduz ao seu ponto de fusão, simultaneamente, todas as funções (rigor de ligações, autonomia dos elementos) que não são comumente utilizadas a não ser sucessivamente e de maneira mais folgada, e reduzindo muito, praticamente toda, a parte de imprecisão à qual estamos acostumados: ao mesmo tempo, há um lado do texto mallarmeano que é “obscuro” apenas por força da lógica e da rapidez, por força da clareza.
[18] Forma que vai “de si”, já que é o fascismo que está aqui em questão. No mesmo “espírito”, reconhecemos que resistimos mal ao desejo de escrever: na medida em que o filme é estruturado como uma linguagem, ele age como (ele imita a ação de um) inconsciente.
[19] O que assinalam, sem ambiguidade, tanto o sonho dos cachorros (e seu retorno na tapeçaria) quanto as três alusões precisas ao grupo de Charcot e aos métodos hipnóticos.
[20] O que é sugerido aqui a propósito de Dreyer poderia sem dúvida ser também (com todas as “correções” e deslocamentos que se podem supor) em relação a Mizoguchi: mas mais do que A Imperatriz Yang Kwei Fei é Contos da lua vaga (Ugetsu monogatari, 1953) ou A vida de O’Haru (Saikaku ichidai onna, 1952) que precisariam ser revistos. Lembremos simplesmente segundo qual fenômeno de deslizamento entre níveis múltiplos – favorecido pela indecisão, pela instabilidade dos “signos” que referenciam cada um deles – efetua-se o próprio movimento do filme e da maior parte dos seus elementos...
[21] Então, uma questão deve ser feita (questão que aqui continua aberta): os filmes em que o trabalho formal só intervém na etapa da montagem, sem o trabalho primeiro sobre a escrita, podem remeter tão diretamente ao jogo do inconsciente? Certamente, Mediterrâneo “joga” com o inconsciente (do leitor), mas ele funciona como um? Ou ainda: se há economia do pré-texto, pode haver um “retorno” do reprimido?
[22] Podemos abordar esses “buracos” produtivos como “silêncios” em Webern, dos quais Pierre Boulez dizia que não atuavam somente como elementos rítmicos, mas que modificavam os sons ambientes, atuando sobre a morfologia dos cumes. O “silêncio” nos filmes de Straub tem uma função operacional similar, não sendo somente uma pausa, escansão, mas atuando sobre a “frequência”, a vibração do plano precedente (ou do início do plano do qual ele é o fim) e do seguinte (ou a continuação do seguinte do qual ele é o começo).
(Cahiers du cinéma n.º 210, março de 1969, pp. 16-35. Traduzido por Cauby Monteiro e André Barcellos) |
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