À CAÇA
O DIA DA DESFORRA (La resa dei conti). 1966. P.E.A. – Produzioni Europee Associate/Tulio Demicheli S.L. (110 minutos). Produção: Alberto Grimaldi, Tulio Demicheli (não creditado). Roteiro: Sergio Donati e Sergio Sollima, baseado em argumento de Franco Solinas e Fernando Morandi. Fotografia: Carlo Carlini (Techniscope, Technicolor). Música: Ennio Morricone. Cenografia: Carlo Simi (p.d.), Raphael Ferri, Enrique Alarcón (s.d.). Montagem: Gaby Peñalba, Adriana Novelli. Elenco: Lee Van Cleef (Jonathan “Colorado” Corbett), Tomas Milian (Manuel “Cuchillo” Sanchez), Walter Barnes (Brokston), Nieves Navarro (a viúva), Gérard Herter (barão von Schulenberg), María Granada (Rosita Sanchez), Roberto Camardiel (xerife Jellicol), Ángel del Pozo (Chet Miller), Luisa Rivelli (prostituta de Willow Creek), Tom Felleghy (pai de Chet Miller), Calisto Calisti (Sr. Lynch), Benito Stefanelli (Jess, rancheiro da viúva), Nello Pazzafini (Hondo), Antonio Casas (irmão Smith & Wesson), José Torres (Paco Molinas), Antonio Molino Rojo (rancheiro da viúva), Spartaco Conversi (Mitchell, guarda prisional), Romano Puppo (Rocky, rancheiro da viúva), Fernando Sancho (capitão Segura).
O terceiro filme de Sergio Sollima é um dos emblemas do western europeu.
A tendência a dar protagonismo, arbitrariamente, à sujeira, à violência, ao sexo e ao humor menos sutil, empregando para isso zooms e câmeras lentas, fazendo com que as escalas de plano se atropelassem umas às outras e utilizando uma trilha sonora tão estridente quanto aparvalhada – ou seja, a deriva habitual no subgênero continental do mais americano dos arquétipos fílmicos –, aparece em O dia da desforra com certa contenção e possui uma importância relativa dentro de uma trama familiar para qualquer aficionado: a itinerante e frequentemente iniciática história do caçador de recompensas.
O dia da desforra não se converte em um filme marcante por conter atenuados esses elementos “tergiversadores”, mas por ser um irmão mais velho, menos rude e um tanto “confeccionado à antiga” de tantos filmes desencaminhados pela meia-noite dos anos 1960 em busca de um cadáver jovem, porém feio, que lhes permitisse pelo menos se distinguir dos seus antepassados. Sollima simplesmente roda com dinamismo, heterodoxia e a irreflexão que os novos tempos traziam uma história episódica, ainda que cheia de atrações, como costumavam ser as de muitos bons westerns desconhecidos de outros tempos.
Apesar de suas discretas qualidades, e considerando a proverbial ausência de tradição em se adaptar o gênero americano por excelência para o cinema do velho continente até essas avançadas datas de colapso dos grandes estúdios e a busca por cenários alternativos na Itália e na Espanha, pode-se ver O dia da desforra como uma pequena raridade e observar curiosas variações sobre temas familiares. Questões estéticas ou de ambientação, como as caravanas de mórmons que parecem pasolinianas (e não do melhor Pasolini, certamente) ou um México mais genuinamente centro ou sul-americano que “chicano”, aparecem atreladas a apontamentos sociológicos, políticos ou morais que recordam que por volta de alguns anos, nas últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, desembarcaram em massa italianos, chineses, poloneses, suecos, irlandeses e outros nos Estados Unidos, para mudá-lo para sempre.
Aqui, diríamos que “eles já chegaram”: os mandachuvas parecem da máfia; os fugitivos, imigrantes ilegais; as mulheres, pin-ups nórdicas ou centro-europeias.
Esses filmes não tinham como ter nada contra o passado, sua iconografia e sua infinita gama de matizes, a menos que os seus diretores, como era o caso de Sergio Sollima, conhecessem estes bem e não se dedicassem a depredar, por puro vício, muito do que tinham de mais valioso. Não se obteve nada tão ousado, divertido e engenhoso como tantos filmes de George Sherman nesses anos. Uma questão em particular era a visão muito pouco enaltecedora dos Estados Unidos e dos seus mitos, porém não se partia da ironia dissimulada ou da astúcia do imigrante – alemães e eslavos em primeiro lugar – para introduzir um novo ponto de vista, mas sim do distanciamento.
As razões, basicamente geográficas e históricas, que atuaram como uma barreira para preservar o western dentro dos limites do território americano (e que não existiram quando se tratou de adaptar outros gêneros populares e bastante desenvolvidos em Hollywood até que se tornassem emblemáticos de sua produção, com diferentes prolongamentos e múltiplas particularidades nacionais, como no caso do film noir ou do musical) se redistribuem sobre uma gama muito ampla de atitudes, a qual qualifica por si só os cineastas que praticaram um deslocamento em si mesmo bastardo, pois ainda foram produzidos grandes westerns no país de origem do gênero, os mais desencantados de sua história.
O senso de humor (que também foi virtude de alguns velhos cineastas, mas não era um recurso tão habitual nos filmes de cowboys) ou a audácia de afirmar a deterioração de muitos conceitos não valida a confusão e o superficial entendimento de como funcionava uma sociedade, nem a miopia de muitos novos cineastas que não viram – porque são coisas que não foram escritas em maiúsculas – a rebeldia, a corrupção, a incorreção política, o ódio e o desejo, a brutalidade de uma conquista, a ambiguidade moral etc., e decidiram que já era hora de gritá-las, esfregá-las, removê-las de debaixo do tapete como faria quem crê ter descoberto a sujeira de um império.
Sollima dá um passo atrás e inteligentemente coloca em primeiro plano uma espiral de duelos que deixa em segundo plano o que fascinou a outros.
Assim, pelas terras carecidas da Almería, a caça empreendida por Jonathan Corbett (Lee Van Cleef em sua segunda carreira, inimaginável pouco antes, como protagonista) para capturar esse esfarrapado “Cuchillo” Sanchez (o cubano Tomas Milian, que vinha não menos inesperadamente do Actor’s Studio, da Broadway e de Jean Cocteau) estiliza-se de tal forma que pode se permitir não ter referências patentes.
Esses cineastas europeus não foram os primeiros cinéfilos, mas sim os primeiros que se basearam unicamente no cinema. Pelo menos uma geração anterior (Fuller, Aldrich, Ray, Penn...) tomou emprestadas tanto coisas do território e dos seus mitos como daquilo que os diretores anteriores fizeram com elas, mas a terra e a História seguiam sendo as mesmas e quando um filme se passava em torno dos Grandes Lagos respeitava-se que aquele era o lar dos Sioux e não dos Apaches, e quando o mítico Jesse James novamente recebia vida na pele de algum ator, dificilmente poderia deixar de se olhar novamente para a Guerra de Secessão.
Para Sollima, Leone, Corbucci, Valerii, Tessari, Castellari, Martín, Romero Marchent e companhia, a única base era os filmes de outros. Nenhum cineasta italiano ou espanhol integrou a “brigada” europeia que filmou westerns em Hollywood nos bons anos, mais de um da lista acima nunca chegou a pisar nos Estados Unidos nem revezou atividades com cineastas mais veteranos no gênero, como foi o caso dos cineastas americanos que foram tentar a sorte em “suas” terras e que ademais, nas raras vezes em que foram para a Europa com mais do que um punhado de homens de confiança, praticamente não filmaram westerns.
E, suponho que ainda mais importante do que tudo isso, o fator decisivo foi quais desses filmes clássicos ou de recente sucesso os produtores gostavam e quais aspectos entendiam como mais comerciais aqueles que se arriscaram – com “subvenções” ou não – a recriar em Almería ou Cinecittà os povos ou as estradas de ferro que serviram para civilizar os Estados Unidos. Exceto por um grupo muito reduzido de filmes amplamente conhecidos e recordados (No tempo das diligências [Stagecoach, John Ford, 1939], Os brutos também amam [Shane, George Stevens, 1951-1953], Matar ou morrer [High Noon, Fred Zinnemann, 1952], talvez Sangue de heróis [Fort Apache, John Ford, 1948] e alguns outros), praticamente nada anterior a 1955 ou 1958 do que foi filmado nos EUA cabia nos filmes (nem para os espectadores, ansiosos por, no mínimo, novidades como Sete homens e um destino [The Magnificent Seven, John Sturges, 1960]) que foram produzidos na Europa naquela década e meia de auge que bruscamente se apaga por volta de 1973, coincidindo com o surgimento de uma verdadeira legião de novos ícones do submundo cinematográfico dos anos 1970: Bruce Lee, os inefáveis detetives John Shaft e Johnny Wadd, as muito duras Coffy (Coffy – Em busca da vingança [Coffy, Jack Hill, 1973]), Cleopatra Jones (Cleópatra Jones [Cleopatra Jones, Jack Starrett, 1973]) e Foxy Brown (Foxy Brown, Jack Hill, 1974), o cativante Blacula (Blacula, o vampiro negro [Blacula, William Crain, 1972]), Antonio Fargas, o traficante Priest, Yu Wang, Marilyn Chambers e Linda Lovelace, o bando de Car Wash, onde acontece de tudo (Car Wash, Michael Schultz, 1976)...
(Traduzido por Bruno Andrade e Valeska G. Silva) |
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