OS PIONEIROS ou O SENSO DE AVENTURA
por Sergio Sollima





A personagem fundamental expressa pelo cinema americano é o pioneiro do Oeste, o fundador anônimo da República Estrelada. Todas as suas sucessivas variações, mesmo que liberadas da típica ambientação do western, têm em comum os traços essenciais do seu caráter: a força, a coragem, a generosidade e sobretudo um indefinido e fascinante senso de aventura.

Além de ser a personagem fundamental, o pioneiro ou cowboy ou ainda o homem do Oeste foi o primeiro a aparecer nas telas estadunidenses.

G. M. Anderson, “Broncho Billy”, teve esta honra.

Mas é apenas com William S. Hart que o herói das pradarias começa a adquirir as suas características inconfundíveis. Primeiramente, o amor pela solidão. O escasso senso associativo de que eram dotados os homens com os quais os outros homens tinham sido principalmente inimigos ou pelo menos competidores foi bem expresso pela figura solitária de Bill Hart. Então, muito mais do que os seus sucessores, ele trouxe consigo o sentido da “justiça”. Inevitavelmente, o pensamento chega aos heróis, aos semideuses helenísticos e aos paladinos medievais. O herói das pradarias se torna assim o homem-destino, que chegava inesperadamente para resolver os casos mais complicados, restituindo a justiça para os fracos e protegendo os indefesos. A máscara de Hart fixa, austera, prenhe de destino, exprimia bem a formação puritana dos descendentes dos bisnetos dos exilados do Mayflower.

É de descarada descendência puritana o homem do oeste nas suas relações com a mulher, no seu casto idílio, quase sempre depois do confronto com as forças do mal: o amor como recompensa da luta.

Nos seus sucessores, esta atmosfera de mito acaba se perdendo um pouco para o benefício de uma épica mais trivial e popular.

Tom Mix alcança tons mais sinceros e pareceu ser mais comunicativo. Se William S. Hart parecia descender de uma linha direta dos colonizadores puritanos, Tom Mix mostrou claras características de uma descendência de pele vermelha. Ele também era tão sério e silencioso como Hart, mas era a austeridade do jovem guerreiro índio e não a do pregador e do resto, e, além disso, a austeridade era muitas vezes quebrada pela cordial alegria do jovem americano ou pela ironia maliciosa da mais pura marca anglo-saxônica.

Com Tom especificou-se ainda mais uma outra personagem fundamental do ciclo western, o companheiro inseparável, o único verdadeiro amigo do pioneiro e do cowboy: o cavalo. Não é possível não fazer uma analogia com os cavalos alados do ciclo do paladino. Tony não chegava a falar, como Baiardo[1], mas desempenhou igualmente numerosas tarefas de extrema delicadeza. Seguindo os passos de Tom Mix andavam Ken Maynard com seu cavalo Tarzan, Hoot Gibson e Buck Jones com Águia Branca. Aqueles com os menores, Fred Thomson com o seu Silver King, Jack Hoxie e outros, eram os “puros”, ou seja, atores que eram rigorosamente atrelados ao gênero western. Mas havia outros como Harry Carey, George O’Brien, Richard Dix, Richard Arlen etc., que às vezes não hesitavam em fazer aparições no mundo burguês.

No entanto, com o advento do som, os heróis das pradarias tinham uma maneira de viver mil e uma aventuras, todas surpreendentemente semelhantes em cenário e em desenvolvimento e ainda assim todas diferentes e igualmente excitantes.

Muitos cowboys, como já vimos, usavam outras roupas e interpretavam outros filmes. Mas havia algumas personagens que, apesar de viverem suas vidas bem longe das extensões intermináveis do velho Oeste, descendiam de uma estirpe ordinária e apresentavam os mesmíssimos traços característicos.

O protótipo deles e uma das personificações mais bem-sucedidas do espírito de aventura foi Douglas Fairbanks. Ele nasceu em 1883, em Denver, no Colorado, de uma família de classe média. O pai era um advogado. Aos dezessete anos entrou em uma companhia de teatro especializada em Shakespeare, na qual foi capaz de revelar escassas aptidões para a atuação. Depois de deixar o teatro, passou algum tempo na Universidade de Harvard, onde pensou em fugir para a Europa, vivendo dia a dia e exercendo os mais diversos ofícios. De volta à América entrou em grandes negócios, conquistando logo uma boa posição em Wall Street. Em 1906 casou-se com Beth Sully, a filha do “rei do algodão”, e teve o pequeno Douglas Jr. Pouco depois rompeu todos os laços com a família e com a sociedade de Nova York e voltou à Europa. De volta à América, Douglas retomou a estrada da Broadway, agora em colaboração com um empresário bem conhecido, William Brady. Desta vez as coisas correram melhor e ele permaneceu no teatro durante oito anos, conquistando sucesso.

Foi D. W. Griffith quem o notou e o introduziu ao cinematógrafo.

Depois de um longo casamento com Mary Pickford, em 1936 casa-se com uma mulher da aristocracia inglesa, Lady Ashley.

Douglas foi indiscutivelmente um fenômeno de proeza física e de irresistível simpatia, mas não apenas isto.

A coerência da sua personagem, a unidade de estilo dos seus filmes e aquele peculiaríssimo senso de aventura, aquele fôlego de imaginação que é a qualidade mais incrível e até hoje inigualada, tornam-no sem dúvida em uma das personalidades cinematográficas mais interessantes e atraentes. A personagem Douglas é confiada particularmente a quatro imagens: Zorro, D’Artagnan, Robin Hood e o ladrão de Bagdá.

Mas é com Zorro que a sua maturidade é alcançada.

Douglas tem em comum com os cowboys a virilidade, a coragem, a generosidade e, sobretudo, a função de justiceiro. Mas ele acrescenta algo ao antigo esquema – e, de fato, torna-o na sua própria característica – um novo elemento: o gosto pela zombaria. Parece-me muito evidente aqui, e as suas experiências confirmam, que outro ancestral deve ser levado em consideração na sua árvore genealógica: Puck, o espírito maligno da floresta. Puck geralmente executa suas empreitadas por encargo do seu mestre, o nebuloso Oberão, mas uma vez em ação sua própria natureza de espírito maligno sugere aquelas variações saborosas, aquelas lépidas zombarias. Assim, Douglas é empurrado para o caminho das aventuras pelas razões mais sólidas e inegáveis, mas uma vez nele eis que seus olhos brilham de satisfação, eis que o elemento da fantasia se envolve no curso tradicional do conflito, e acima de tudo, como eu disse, o gosto da zombaria. A propósito, seria interessante saber se entre as leituras de Douglas encontram-se Bandello e Boccaccio. Mas Shakespeare é certamente, junto com a figura tradicional do cowboy, o pai espiritual de Doug. De pais tão excepcionais não é surpreendente que tenha nascido uma criança excepcional.

Sobre o tema do aventureiro havia inclusive, durante o período do “mudo”, algumas variações de sexo feminino, como Texas Guinan, por exemplo, Pearl White, a rainha dos seriais ou filmes em episódios, e a sua concorrente, Ruth Roland. Após o advento do som, o senso de aventura não diminuiu, mas acabou assumindo uma tendência cada vez mais realista, em detrimento da essencialidade primitiva que havia constituído seu maior encanto.

A geração sonora dos cowboys é consideravelmente inferior que a anterior: Fred Scott, Jack Randall, Gene Autry e os demais, quase todos com uma bela voz e a intenção de usá-la, contaminaram a personagem do “homem do Oeste”. Somente John Wayne, depois de uma longa série de filmes medíocres, foi remodelado pelas mãos de artista de John Ford, dando nova vida ao tradicional herói das pradarias, enriquecido contudo pelas novas experiências realistas e humanas de No tempo das diligências (Stagecoach, 1939).

Mas o ator-personagem que apanhou a herança de Douglas, e no qual todos os motivos tradicionais dos homens de aventura confluem, é Errol Flynn. Entendamo-nos: ele é muito inferior ao modelo e por trás dele não há Shakespeare e Puck, mas apenas Sabatini, Curwood e Zane Grey, mas a contribuição que ele deu à personagem consiste, ao que me parece, essencialmente no “sentido do tempo”. Soberbamente definida pelo Capitão Blood (Captain Blood, Michael Curtiz, 1935), a figura de Errol Flynn sempre pareceu um pouco esfumaça na distância, como uma velha impressão.

Mesmo a sua vida, desordenada e aventureira, é a de um “fora de época”.

Ele nasceu na Irlanda do Norte, em 1909[2]. Seu pai era um professor universitário de fisiologia. Em 1928 ele participa das Olimpíadas de Amsterdã, na equipe de boxe inglesa, e é vencido. Em seguida, a aventura. Austrália, Mares do Sul, Nova Guiné, África: milhares de ocupações diferentes. Por volta dos vinte e cinco anos, retorna à Inglaterra e começa a atuar no teatro. Aparece também ao lado de Herbert Marshall. Parece realmente um descendente de Fletcher Christian, o famoso líder da revolta do “Bounty”, e chegou a interpretá-lo no filme australiano de 1933, In the Wake of the Bounty, de Charles Chauvel. É chamado a Hollywood.

Além do fato de que apenas uma pequena parte de seus filmes pertencem à era moderna, Errol mostra-se realmente mais à vontade apenas em um figurino, seja o aventureiro de capa e espada como em Capitão Blood, O príncipe e o mendigo (The Prince and the Pauper, William Keighley, 1937), O gavião do mar (The Sea Hawk, Michael Curtiz, 1940), com Brenda Marshall, Meu reino por um amor (The Private Lives of Elizabeth and Essex, Michael Curtiz, 1939), com Bette Davis, seja o uniforme do sentinela avançado ou do cowboy como em Uma cidade que surge (Dodge City, Michael Curtiz, 1939), com Olivia de Havilland e Ann Sheridan, Caravana de ouro (Virginia City, Michael Curtiz, 1940), com Miriam Hopkins e Randolph Scott, ou em Cidade sem lei (San Antonio, David Butler, 1944-1945), com Alexis Smith, e A estrada de Santa Fé (Santa Fe Trail, Michael Curtiz, 1940), com Havilland e Raymond Massey. Sua personagem é, portanto, a do aventureiro de outros tempos e também nos westerns ele sempre participa de eventos históricos.

Muitos outros atores americanos têm usado essas roupas, mas apenas ocasionalmente. Gary Cooper, por exemplo, criou figuras inimitáveis de homens do Oeste, mas a complexidade de sua personagem lhe assegura um lugar em outro posto. Fred MacMurray também carrega um ar sólido de aventureiro moderno, e não apenas em Atiradores do Texas (The Texas Rangers, King Vidor, 1936). Na mesma linha de Cooper temos Joel McCrea e Randolph Scott, que também parecem que saíram vivos e pulsantes das páginas de um Zane Grey ou Bret Harte. Mas a partir do molde original da personagem do pioneiro começou a surgir um dia uma contaminação estranha, mas inevitável. De fato, dos sentinelas avançados aos G. Men e do bandido a cavalo ao gângster no carro, a distância é curtíssima. Edward G. Robinson, Cesar Romero, o Humphrey Bogart precoce, Lloyd Nolan, Bruce Cabot, Pat O’Brien, Chester Morris e, especialmente, George Raft e James Cagney são as personagens mais bem-sucedidas neste mundo de lutas e aventuras.

É interessante notar que todos ou quase todos esses atores tenham interpretado indiferentemente personagens de gângsteres ou detetives. Isso demonstra plenamente como o fundo deles é comum e o que é um individualismo exasperado e o senso de aventura.

Uma outra contaminação urbana e convidativa do homem aventureiro é Cary Grant, um epígono mais realista e moderno do velho Douglas.

Ele nasceu há cerca de quarenta anos em Bristol, Inglaterra, sob o nome de Archibald Alexander Leach. Provido de escassas habilidades escolares e um notável talento para acrobacias, com a tenra idade de 15 anos foge de casa para participar de uma companhia de acrobatas. No ano seguinte vai para Nova York, aos 17 retorna à Inglaterra e aos 19 volta à América para atuar em comédias musicais. Quatro anos mais tarde, ele veio a ser contratado pela Paramount.

Cary Grant herdou de Douglas esse espírito de elfo que apenas um tem e uma centena deseja. Sua personagem é o da criança adulta, para quem a vida é um jogo sempre saboroso e surpreendente e cujas ações são motivadas exclusivamente pela sua própria imaginação. No fundo, seria a personagem ideal de Saroyan, se não fosse desprovido do sentimento doce e patético. Ele se realizou completamente em Levada da breca (Bringing Up Baby, Howard Hawks, 1938) ao lado de Hepburn e em Cupido é moleque teimoso (The Awful Truth, Leo McCarey, 1937) ao lado de Irene Dunne, e sem dúvida a proximidade destes dois grandes comediantes era preciosa para ele. Em Boêmio encantador (Holiday, George Cukor, 1938) ele encontrou novos acentos de humanidade. Seus filmes mais recentes mostraram que ele ainda é muito bom, mas talvez um pouco “carygrantenesco”. No entanto, sua personagem é uma das mais precisas e definidas do Olimpo americano.

Pura expressão do senso de aventura é Johnny Weissmuller, que é talvez o único ator de Hollywood que interpretou na sua não curta carreira apenas uma personagem. Quanto ele tem a ver com a criatura de Edgar Rice Burroughs – e os maliciosos acrescentariam “com um ator de cinema” – não está bem claro. No entanto, o seu Tarzan, depilado e gorjeador de palavras estranhas, detinha uma capacidade física excepcional.

Mais interessante é Jon Hall, nascido no cinema como indígena havaiano em O furacão (The Hurricane, John Ford, 1937) e novamente em Ao sul de Pago-Pago (South of Pago Pago, Alfred E. Green, 1940) com Frances Farmer e Olympe Bradna. Ele transmitiu bem – conscientemente ou não, não importa – a simplicidade do espírito do homem que vive de acordo com a natureza. Seu irmão literário me parece ser Billy Budd, a criação poética de Melville. Jon Hall também interpretou a personagem de Kit Carson, famoso guia da época pioneira, no filme de mesmo nome (George B. Seitz, 1940). Da mesma linhagem de Weissmuller e Hall, há Larry (Buster) Crabbe, ele também, como o alemão, um ex-campeão de natação. Depois de O homem leão (King of the Jungle, H. Bruce Humberstone e Max Marcin, 1933), Crabbe foi para a série B, interpretando, entre outras coisas, a figura de Flash Gordon, que ficou famosa pelos jornais para os jovens, em uma longa série de filmes de episódios. Atualmente ele está nos westerns.

Mas é certo que até agora Douglas permanece a expressão mais completa do espírito de aventura e todas as refilmagens dos seus filmes, de As aventuras de Robin Hood (The Adventures of Robin Hood, Michael Curtiz e William Keighley, 1938), com Errol Flynn e Os três mosqueteiros (The Three Musketeers, Rowland V. Lee, 1935), com Walter Abel a A marca do Zorro (The Mark of Zorro, Rouben Mamoulian, 1940) com Tyrone Power e a versão inglesa de O ladrão de Bagdá (The Thief of Bagdad, Ludwig Berger/Michael Powell/Tim Whelan/Alexander Korda/Zoltan Korda/William Cameron Menzies, 1940), com Sabu, estão aí para provar isso.


Notas:


[1] Cavalo alado pertencente a Reinaldo de Montalvão, personagem fictícia da literatura medieval e renascentista europeia. [N.T.]

[2] Escrito em 1947. Mais tarde descobriu-se que Flynn nasceu na Austrália, em Battery Point, distrito de Hobart, Tasmânia. [N.T.]


(Il cinema in U.S.A. Roma: Anonima veritas editrice, 1947, pp. 131-138. Traduzido por Kevin Albuquerque)

 

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