A ERA DE GODARD E A ENCICLOPÉDIA DE FRAMPTON
Para mover o mundo é preciso um ponto de apoio.
Viagens pelo mundo e a literatura permitiram a Hugh Kenner descrever o modernismo como figuras que moveram-se em torno de um mesmo ponto, representado por Ezra Pound. Essas figuras foram, entre outras, James Joyce, Marianne Moore, T. S. Eliot, Henri Gaudier-Brzeska, Wyndham Lewis, Ernest Fenollosa. Foram a poética da fragmentação, o desafio da tradução, a coexistência e sobreposição de camadas históricas, correspondências e conflitos entre o antigo e o novo, o romance e a tela, o ideograma e o verso. Elas traçaram órbitas no que Kenner denominou a Era de Pound[1].
Se uma eleição fosse convocada para definir um ponto de referência no modernismo cinematográfico, vários nomes seriam postos em dúvida, mas ao menos um teria lugar certificado. Não seria curioso ou surpreendente que um consenso crítico promovesse a Era de Godard. Nenhum outro cineasta entregou-se tão inteiramente a compreender as relações que permitiriam tal estudo. Nenhum outro fundiu tão inteiramente a própria vida à história de sua arte e ao interminável século XX. Nenhum outro questionou tanto a si mesmo, ao cinema, ao mundo.
Como admirador de André Bazin e Dziga Vertov, Godard cultivou o gosto pelo paradoxo, pela ambiguidade, pela dialética. Como cineasta, integrou um movimento que descobriu a partir de criações e criou a partir de descobertas. A nouvelle vague foi uma história parcial, um quadro narrativo; ainda assim, existiu não apenas como uma visão em retrospecto, mas como uma certa consciência na França dos anos 1950 e 1960. Eles se consideraram críticos; não tendo outro termo, nós os consideramos críticos. Eles descobriram algo novo no domínio do cinema, e expressaram esta novidade; criaram filmes e distribuidoras e abriram canais para comunicar e promover suas ideias; deram continuidade ao passado e o transformaram no que se revelou o nosso presente.
Em cada uma de suas etapas, a obra de Godard afirma a variedade do cinema e sua vocação para analisar a si mesmo e o campo histórico em que se encontra. Em cada uma dessas modalidades, sua importância é incontornável. O que ele descobriu permanece a essência do que sabemos, como a base de nossas intuições: suas descobertas são nossas leis. Somos godardianos, devotos ou resistentes, quando falamos de citações e referências, de fórmulas para o cinema e a política, de uma história das formas. Os pré-godardianos não se expressavam nesses termos, como os pré-newtonianos não falavam em termos de gravidade. Bazin, nas palavras de Éric Rohmer, teria efetuado a “revolução copernicana” no pensamento sobre o cinema, deslocando a ênfase do sujeito (a consciência criadora) para o objeto (o mundo sensível). O que Godard investigou não foram as órbitas num diagrama de forças já conhecidas, mas a própria constituição dessas forças. Na Era de Godard, nos deparamos com um universo no qual a matéria cinematográfica equivale à energia imaginativa, tornada visível por suas expansões e contrações.
Como Pound, Godard reconheceu o encanto dos fragmentos. Projetou neles sua vontade, como quem magnetiza um amontoado de poeira metálica; percebeu neles uma verdade que os blocos de matéria sólida pareciam encobrir; procurou neles a voz das gerações passadas, registrando os ecos que a ele retornavam, transmitindo (não sem alterar) suas frequências. A partir de fragmentos, elaborou ficções; descobriu, entre guerras e romances, o século do cinema; criou, para justificar a si mesmo, Hitchcock e Rossellini; destacou, por razões que talvez desconheça, momentos que ainda nos assombram; representou, ao longo dos anos, espetáculos e trivialidades para se libertar da impressão de irrealidade que a história (tudo o que não é o cinema) deve ter lhe causado. Seus esforços para certificar o conhecimento do que valorizou constituem grande parte da sua, e consequentemente da nossa história.
A gaia ciência (Le gai savoir, 1968-1969) nos mostra Jean-Pierre Léaud e Juliet Berto, jovens eloquentes e revolucionários, isolados num espaço fechado, cercado pela escuridão, no qual discutem problemas relativos à linguagem e à política da representação. Conhecemos estas figuras: são as encarnações usuais do universo godardiano, onde se multiplicam os comentários e a produção é implicada numa espécie de drama filosófico, marcado pela descontinuidade e a reflexividade. Dentro da cena, o pensamento ganha voz e corpo; fora dela, o embate ocorre entre imagens e sons, e a história segue o seu curso. O que o filme encontra ao olhar para o seu interior é a tensão inevitável entre as duas esferas. Nos anos seguintes, em colaboração com Anne-Marie Miéville, Godard aplicou este método às imagens de vídeo, com narrativas cada vez mais dobradas sobre si mesmas: Número dois (Numéro deux, 1975) e Como vai você? (Comment ça va?, 1975-1976).
A câmera é um recipiente fechado, atravessado pela luz, em cujos limites encontram-se uma lente e uma superfície onde a imagem é fixada. A sala de cinema se constitui de maneira análoga: um espaço fechado, atravessado pela luz, em cujos limites encontram-se um projetor e uma superfície onde a imagem é apresentada. Não é inesperado, portanto, que um modelo mental associado ao cinema seja o da tradição empirista, no qual a própria mente é um espaço abstrato, atravessado pela percepção, em cujos limites encontram-se o mundo sensível e o “teatro da memória”. Nos anos 1980, Godard explorou em filmes como Salve-se quem puder (a vida) (Sauve qui peut (la vie), 1979-1980) e Paixão (Passion, 1982) os modos pelos quais o espaço cênico é tornado um elemento ativo nessa operação, um ambiente cuja atmosfera influencia as transformações da matéria representada – transformações de velocidade, plasticidade, intensidade. Ao final da década, ele concebeu nas História(s) do cinema (Histoire(s) du cinéma, 1988-1998) outro nível dessa representação: uma camera obscura na qual o próprio movimento das imagens equivale ao fluxo de uma consciência cinematográfica.
Acompanhamos na série os elementos destacados na história da arte, seus ecos e desdobramentos, suas rimas e recorrências. As próprias obras tornam-se agentes em sua narrativa. Os relevos são identificados, os continentes mapeados, as fronteiras demarcadas. Temas são materializados e dissolvidos no fundo negro: o homem, a mulher, o mar, a literatura, o cinema, a guerra, o amor, a morte. A tendência às citações ganha um novo sentido. Quando Godard retira uma imagem de seu contexto original, manipula suas propriedades, dinamiza suas cores, estende seu movimento, ela se torna uma figura transposta ao espaço da camera obscura, representando tanto um evento no mundo quanto um motivo no imaginário do cinema. Destacar uma imagem torna-se algo como derivar uma função inconsciente das correspondências históricas.
O desafio neste projeto é contar a história do cinema, do qual se é apenas uma parte, e ao mesmo tempo contar a história do século XX, do qual o cinema é apenas uma parte[2]. A solução de Godard envolve a coordenação de metonímias: sobrepor sua vida e obra à história da arte, sobrepor o cinema ao século. Nessa visão estereoscópica, temos acesso a uma obra que atravessa décadas e continentes, que inclui graus elevados de tradição e inovação, dedicação e frustração; a uma arte caracterizada pela mais brutal materialidade e pelo distanciamento mais onírico, por uma dispersão global e uma concentração sedutora; a um século de invenções monumentais, destruídas e sublimadas. Na Era de Godard, a história é contada não como a variedade de indivíduos que a manifestaram, mas por um único indivíduo que expressou sua multiplicidade.
Em determinado momento, ele nos lembra que “os signos estão entre nós”; em outro, menciona “a fraternidade das metáforas”. Não deve surpreender que um cineasta veja na realidade os elementos potenciais de sua linguagem, mas é preciso enfatizar que entre as metáforas há de fato algo como um princípio ordenador que sustenta suas combinações. Godard percebe, e demonstra incansavelmente, a simpatia inerente do universo de imagens e sons. Que um escritor tenha publicado reflexões à parte do cinema, que as imagens da pintura tenham prescindido de ruídos e palavras, tudo isso lhe é irrelevante; o diálogo entre as artes é mais do que útil, é inevitável. Godard declama como se fossem seus todos os fragmentos porque, tendo entrado em seu domínio, eles de fato o são. Ele poderia dizer, parafraseando Paul Valéry, que o cinema corrompe tudo aquilo pelo que se interessa, sendo por natureza um desenvolvimento monstruoso das virtudes da visão, da audição, do intelecto. Deste alcance deriva também a preocupação de Godard com as grandes tragédias históricas (“Srebrenica, Mostar, Sarajevo”), e com as tensões entre a ética e a estética. Se para que haja cinema é preciso que o mundo queime a superfície da película, a esperança (como o desespero) de Godard é que desta alquimia nascerá uma fênix capaz de cauterizar os ferimentos dos quais a arte foi testemunha.
O acúmulo de corais e microrganismos é parte constitutiva do calcário. O mármore, derivado do calcário, é basicamente organismo petrificado, e quando os veios de uma escultura clássica dão forma a um homem, ou quando Boticelli pinta a Vênus sobre uma imensa concha, a imaginação mediterrânea parece reencontrar seus elementos constitutivos. O princípio subjacente é que a arte deve operar segundo a natureza de seus materiais, como um meio de filtrar o esforço humano. Na busca pelos elementos do cinema, Godard se deparou repetidas vezes com as questões que assolaram as vanguardas desde as primeiras décadas do século. O “específico cinematográfico” permaneceu, para ele como para tantos outros, um fantasma não-exorcizado.
A nouvelle vague foi certamente uma vanguarda, como atesta a teleologia inscrita na obra crítica de seus integrantes. Foi, entretanto, uma vanguarda que se recusou a dizer seu nome, e que, devido à postura de uma consciência moderna da arte, tomou um lugar central em sua história. A dispersão do movimento não bastou para que o projeto fosse revisto, e o afastamento de seus contemporâneos da própria concepção de vanguarda tornou-se um dado significativo na trajetória de Godard. Coube a ele o papel de último sobrevivente, aquele a quem restou o trabalho de registrar os mitos e heróis, as conquistas e derrotas de sua tradição. Em sua juventude como crítico, ele havia notado o momento em que o gesto de um ator se convertia num sentimento e a figura de John Wayne na de Ulisses; mais tarde, já um cineasta experiente, ele seguiu em busca das mesmas reverberações, identificando os traços com os quais o espaço da tela foi povoado. Seguindo o princípio metafórico, Godard revelou correspondências entre Humphrey Bogart e Jean-Paul Belmondo, entre Maria Falconetti e Anna Karina, entre os períodos e gêneros do cinema. Ulisses, Orfeu, Alcmena e Maria tiveram suas vidas por ele narradas, comentadas, encarnadas no presente, atravessadas pelos conflitos de sua época. Nos anos 1990, sua obra dissolveu as próprias fronteiras, como se os fios devessem finalmente ser entrelaçados em uma só reflexão. Como Pound, os fragmentos de sua vida foram atraídos pela construção de “um poema que inclui a história”. Selecionando, reorganizando, condensando a memória do século, Godard elaborou seus versos. Como artista, ele representou a história miticamente não porque a história é mítica, mas porque a arte o é.
Por essa perspectiva, dois nomes merecem destaque entre as inúmeras citações das História(s) do cinema. Ambos são mencionados diretamente apenas nos últimos minutos, embora sua influência permaneça por todos os episódios. O primeiro é Jorge Luis Borges, o autor da fusão inextricável entre mito e história, tempo e memória. Godard cita “A flor de Coleridge”, um ensaio sobre a evolução de uma ideia através dos séculos. É por meio do escritor argentino que Godard coloca-se como o sonhador que atravessou o paraíso, recebeu uma rosa como a prova de sua passagem, e acordou para descobri-la em suas mãos. Borges, aquele que, mais do que qualquer outro, viveu para os livros, e cuja cegueira o permitiu imaginar mais claramente o universo da literatura, é a mais direta projeção de Godard sobre a figura do homem inteiramente consumido pela arte.
O segundo nome é mais secreto, e também mais resistente a uma compreensão imediata: por ser um cineasta, por ser diretamente associado às vanguardas, por ser ainda hoje alguém cujas produções e declarações permanecem incompletas ou ignoradas. Trata-se de Hollis Frampton, de quem Godard cita um trecho sintomaticamente editado: “Conforme uma era dissolve-se lentamente na próxima, alguns indivíduos transformam os antigos meios de sobrevivência em novos meios. Aos últimos, damos o nome de arte.” O corte é revelador. O trecho excluído é precisamente aquele no qual Frampton especifica a diferença entre os meios, indicando que os antigos seriam físicos, enquanto os novos seriam psíquicos, responsáveis pela “afirmação, imitação e reificação da consciência”. O argumento decorrente é que “nenhuma atividade pode se tornar uma arte até que a sua própria época tenha terminado, e até que tenha sido comprimida, como acessório para a sobrevivência física, à total obsolescência”.
Imitar a consciência, comprimir à obsolescência: são os termos de um problema, peças a serem conectadas.
Manual of Arms (1966) nos mostra sete homens e sete mulheres, jovens artistas, isolados num espaço fechado, cercado pela escuridão, no qual são filmados em uma série de retratos. Conhecemos estas figuras: são os representantes de uma geração unida em torno do projeto modernista, radicada em Nova York, dedicada à exploração das possibilidades formais em seus respectivos meios. Dentro da cena, os gestos contaminam a câmera, atraem seu olhar, ecoam seu ritmo; fora dela, resta apenas o jogo comparativo, o emblema de uma construção. O que o filme encontra ao olhar para o seu interior é o poder gerador da restrição, a ressonância de um campo fechado. Nos anos seguintes, Frampton aplicou este método a objetos distintos, em esquemas rigorosamente organizados: States (1967) e Palindrome (1969).
Nada no cinema é mais próprio que a narrativa para opor a vontade à necessidade, a consciência ao mundo. Contra a linearidade horizontal da narrativa, a tradição inaugurada por Maya Deren se caracterizou pelas incursões verticais, pela fragmentação da cena, pela ênfase no polo subjetivo. O espírito da vanguarda americana foi essencialmente metafórico em suas primeiras décadas: presidiu a transformação das imagens em formatos cada vez mais complexos. Qualquer ordem supõe uma desordem a ser reduzida, e essa tendência não poderia ser organizada senão por um foco no caráter mediador do dispositivo. Assim como as ciências aprenderam a combinar seus elementos e os reduziram a símbolos, também o cinema se viu, com a chegada dos filmes estruturais, transformado em uma arte puramente operacional. Frampton e seus contemporâneos reconheceram na tradição romântica o valor da curiosidade, do estranhamento do mundo; reconheceram também os limites da personalidade, a inclinação ao solipsismo, ao estranhamento que busca esgotar o mundo em si mesmo. Como Eliot, decidiram que a única forma de superar o romantismo seria analisá-lo.
Não há obra que represente mais claramente a disposição sistêmica do cinema que Zorns Lemma (1970), a súmula da fase inicial de Frampton. Na seção central, o filme multiplica as ordens e os padrões, criando um catálogo que se expande como se para abarcar toda uma cidade. São capturados e expostos de maneira cíclica objetos e ações; desfilam em silêncio, no pulso de um segundo, isolados na tela como sob o vidro de um museu imaginário. Na enumeração, na exploração, na substituição do alfabeto, a estrutura é mantida, investida de um valor ritualístico. Como Borges, Frampton considerou que não há classificação do universo que não seja arbitrária; imaginou que, se o universo é infinito, uma linguagem é tão válida quanto as outras, que um objeto não é menos fundamental que sua classe ou seu nome, uma coleção não menos redutiva que uma narração. Como o homem que observou o aleph, percebeu que o infinito é simultâneo, mas que não o é o discurso, e que reduzir o caráter linear conduz não tanto à incursão metafórica quanto à diagramação da forma. Concluiu que, se é impossível abarcar a totalidade do mundo, restaria ao menos a esperança de que sua ordem foi dominada, esboçada em um microcosmo.
Como Joyce, Frampton acreditou que há infinitas formas de contar histórias. Como o autor de Ulisses, decompôs narrativas em imagens e motivos; mostrou que as propriedades do mundo convergem e divergem e que narrar não é mais que um padrão estável de relações. No início dos anos 1970, o nexo de implicações ao redor da autoridade narrativa se tornou um dos tópicos centrais em sua série Hapax Legomena. Em (nostalgia) (1971), Frampton emulou a dinâmica da intervenção pessoal, da voz que se move por exposição, da intimidade à reminiscência; sustentou o caráter anônimo da consciência, projetando de sua identidade apenas o que exigia a anatomia de seus objetos; permitiu o acesso a tudo menos às impurezas de sua presença. A economia cirúrgica envolveu com parênteses o termo clássico, associado à memória. O talento já afinado pela sensibilidade estrutural distanciou a imagem e o som pela recusa da sincronia. O gênio modernista separou o autor do texto da voz que o inscreve no filme. Personalidade e narrativa se tornaram, como em Poetic Justice (1972), nada mais que configurações formais, passíveis de metamorfose, reais apenas na medida em que são conduzidas realisticamente. A faculdade de transformar as imagens, de combiná-las, de fazer coexistirem seus atributos, ganha a frente quando se reduzem as particularidades, quando vemos delas apenas a frequência e a sucessão, as medidas comuns, marcas de um pensamento. Fotografadas, dispostas regularmente, incineradas ou banhadas na luz, as coisas adquirem uma plenitude em sua nova moldura. Resgatadas do “inferno da entropia”, são observadas não como o que foram, mas como o que se tornaram após a absorção pela obra. Estes filmes, como inventários, deslocam os objetos de suas relações originais, abstraem suas funções, os submetem a um sistema – o alfabeto, a linguagem, a ficção.
Alfabeto, linguagem, ficção – mas não a história. Como Valéry, Frampton parece ter lamentado que não se tenha feito com a história o que as ciências fizeram consigo mesmas: revisar seus fundamentos, pesquisar com maior cuidado seus axiomas, enumerar seus postulados. Seu interesse pela teoria dos conjuntos não foi outra coisa senão o reconhecimento de uma disciplina fundadora, sincrônica em sua disposição básica. Contra a horizontalidade cronológica, investigou em sua obra modelos verticais – grades, tabelas, matrizes. Obedecendo escrupulosamente às regras do jogo em que se viu implicado na vanguarda americana, buscou derivar filmes de nada mais que os limites materiais da máquina do cinema. Com a insanidade da farsa, criou esquemas matematicamente precisos apenas para que gerassem ruídos, discrepâncias, valores irracionais. Uma vez gerados, foram integrados, sob a crença de que, conforme se torna mais complexo, um sistema assemelha-se ao próprio universo.
Em sua juventude como fotógrafo, Frampton havia refletido sobre a cronologia e a causalidade, sobre a arte como forma de superar o tempo. Mais tarde, já um cineasta experiente, percebeu nas exposições de Eadweard Muybridge, Paul Strand e Edward Weston o sonho de uma linguagem universal, e a estreita ligação com os arquivos globais que esteve na gênese do projeto fotográfico. Nessas exposições, viu objetos, seres e paisagens congelados, isolados do fluxo temporal; viu artistas que pareciam abarcar o mundo pelo zelo composicional, pela abstração de seus pretextos. Na organização regular de imagens que pareciam se multiplicar ao infinito, viu o mesmo demônio enciclopédico que assombrou o século XIX e que levou Flaubert ao desespero (e à esperança) durante a escrita de Bouvard e Pécuchet. Como leitor de Borges, Frampton reconheceu o princípio de que o universo é feito talvez para a memória, talvez para o esquecimento, mas certamente para a arte. Se Homero falou de deuses que provocam desventuras apenas para que os homens tenham sobre o que cantar, se Mallarmé declarou que tudo acontece para terminar em um livro, se Weston viu na Terra nada mais que a matéria a ser registrada pela fotografia, Frampton imaginou que sua tarefa seria dar continuidade a esta empreitada.
A redescoberta dos irmãos Lumière serviu, para ele como para tantos outros, a um projeto de revisão do modernismo no cinema. Como Brancusi retomando os monumentos cicládicos, Frampton observou que nada é tão novo quanto o que há muito foi esquecido. Como Picasso ao encontrar as imagens de Lascaux, descobriu na origem histórica de sua arte o código genético programado com a sabedoria do futuro. No catálogo Lumière, viu o que buscava nas inclinações enciclopédicas da fotografia: viu o esforço para capturar a realidade em formatos simples, dando a cada registro o caráter breve e compacto de um verbete; viu a recorrência das convenções, herdadas de outras artes, ou elaboradas por operadores à medida que solucionavam problemas concretos na filmagem; viu a tentativa de tocar um número suficiente de partes do planeta, sugerindo um retrato de sua totalidade. No aspecto elementar, viu novamente a sensibilidade que gerou a linhagem estrutural. Na inocência aparente, viu como se pela primeira vez a vocação revelatória do cinema. Encontrou ali os primeiros movimentos e truques, as primeiras comédias e viagens, as explorações narrativas e formais, da arte e do mundo. Nesse labirinto de linhas, viu a imagem de um cinema possível.
Magellan foi o nome do projeto que, a partir de meados dos anos 1970, orientou a obra de Frampton. Com a sua morte em 1984, permanece incompleto. Inspirado na circunavegação do globo por Fernão de Magalhães, seria constituído por inúmeros filmes, disposto num calendário, organizado em ciclos e epiciclos, refletindo em sua variedade formal as possibilidades da vida humana. O espectador ideal corresponderia a um viajante do vasto terreno do cinema. Em sua forma definitiva, teria mais de 30 horas de duração: incluiria filmes originais, compostos exclusivamente para integrar o conjunto; absorveria filmes já existentes, apropriando-se de seus materiais, total ou parcialmente; recriaria filmes ou partes de filmes, transfigurando cada um deles para seus próprios fins. A presença das citações ganharia outro sentido. Quando um plano fosse registrado ou refilmado, quando tivesse as propriedades manipuladas, as cores dinamizadas, o movimento estendido, seria em todo caso posto em relação ao formato diagramático. Uma vez definidos os elementos básicos, poderiam então ser combinados: um fragmento do primeiro cinema poderia servir como introdução a uma reflexão textual em vídeo, a dicção visual de Brakhage poderia ser aplicada à iconografia de Vertov, intervenções gráficas poderiam marcar o ritmo de uma cena derivada de Duchamp. A morfologia proposta seria não a de um filme como produto a ser consumido em determinado local e período, mas de um organismo que evolui em resposta à “suprema mediadora” – a consciência. Na Enciclopédia de Frampton, o cinema seria racionalizado, e veríamos finalmente a arte como ela seria caso não dependesse das circunstâncias históricas.
A política dos autores elaborada pelos “jovens turcos” defendeu a criação por meio do mecanismo restritivo dos estúdios: a imaginação submetida ao condicionamento industrial e narrativo. A nouvelle vague se constituiu pela reformulação desses termos, mas permaneceu em grande parte ligada a eles. Outro tipo de autoria permeou os cineastas da vanguarda americana. Frampton, como Maya Deren e Stan Brakhage, buscou uma independência dessas condições, e as batalhas travadas por eles ocorreram num plano diverso, envolvendo instituições acadêmicas e museológicas. Apropriando-se da tecnologia cinematográfica, defenderam uma produção artesanal; criaram filmes e distribuidoras e abriram canais para comunicar e promover suas ideias; deram continuidade ao passado, mas suas investigações não integraram de modo semelhante o discurso sobre o cinema. Suas formas divergiram em decoro e duração do modelo industrial, e em contraste à centralidade dada à nouvelle vague, foram mantidos nas periferias da história. Viram nessa restrição a condição mesma para a realização artística, o motor que permitiria o desenvolvimento de uma tradição.
Como Godard, Frampton representou uma etapa tardia, talvez inevitável, de uma arte que alcançou um certo nível de consciência sobre a própria trajetória. Esta consciência foi, em vários círculos, o que se chamou de modernidade. Não é casual que essas tradições tenham se voltado, de maneiras distintas, à evolução das formas cinematográficas; que tenham se fundado em debates críticos, em releituras da produção das décadas anteriores; que tenham feito a passagem da reflexão à criação, buscando muitas vezes superar essas categorias; que tenham se deparado com o problema da expressão do pensamento. A noção do filme como um ensaio, uma forma heterogênea, que integra diferentes convenções em uma espécie de diálogo interno, é uma consequência direta desses fatores. Uma vez atingido o ponto da consciência moderna, o cinema, como as outras artes, não pode evitar tomar a si mesmo como objeto. A partir deste momento, a arte não pode também evitar ver a si mesma como a grande metáfora para pensar a realidade.
Um problema central, que marca a distância entre os dois grupos, é a distinção entre a arte como um campo aberto ou um campo fechado, que deve ter sua autonomia enfatizada ou sua permeabilidade explorada. Trata-se não de uma cisão irremediável, mas de uma polaridade. Se Godard confrontou o campo externo da política, ou o sistema das ideologias, isso não o afasta de Frampton tanto quanto o complementa. “A linguagem”, como reconheceu Frampton, não é apenas um sistema de formas, mas “uma arena de poder”. A investigação politicamente engajada, no ponto de vista de Godard, é capaz de avançar e desenvolver o campo da arte; a manipulação desinteressada das formas, de acordo com Frampton, pode levar a consequências históricas. É provável, talvez inevitável, que certas descobertas estéticas não tenham ressonância direta no campo histórico; é provável que o inverso seja igualmente verdadeiro. Mas o que caracteriza o temperamento de Godard e Frampton é uma espécie de suspensão da certeza quanto aos resultados possíveis. Ambos foram “políticos do pensamento”, céticos que, apesar da desconfiança, concordaram em levar as proposições até as suas consequências derradeiras. Este é, em última instância, o caráter experimental de seus projetos, a hipótese de trabalho de seus filmes.
As divergências entre as “duas vanguardas” ocorreram ao redor dessas questões, como reconheceram Annette Michelson e Peter Wollen[3]. Das premissas formais, políticas, filosóficas, ergueram-se os respectivos cânones, e a partir deles uma série de oposições podem ser traçadas. Se por um lado a “ontologia fotográfica” de Bazin se converte em uma preocupação com a “tela centrífuga” e na revelação do neorrealismo, por outro lado a rejeição narrativa de Brakhage resulta de uma cadeia que inclui a afirmação do fotograma como ícone da “visão interior” e a apoteose conceitual do “filme estrutural”. As relações entre o domínio formal e a realidade social guiaram os cineastas em direções distintas, e o passar dos anos viu o contraste de postulados atingir um equilíbrio no qual reações individuais não bastavam para alterar o estado geral. Os dois lados permaneceram em grande parte incomunicáveis, com demonstrações ocasionais de hostilidade perturbando brevemente uma superfície de relativa ignorância. Frampton representou, sobretudo nos anos 1970, o papel de advogado do diabo na vanguarda americana, insistindo na herança modernista ao mesmo tempo em que buscava reintroduzir a palavra, a narrativa, a ficção ao domínio do cinema experimental. Godard foi também uma exceção em seu campo, exibindo já em sua primeira fase uma consciência aguda dos fatores dali excluídos[4]. É revelador então que, apesar de sua oscilação entre os extremos, apenas em Adeus à linguagem (Adieu au langage, 2011-2014) Godard verbalize os ideais de Brakhage que permeavam seus filmes desde os anos 1990. É ainda mais revelador que, para dar continuidade a este raciocínio, apenas em Imagem e palavra (Le livre d’image, 2014-2018) ele mencione, desta vez de forma completa, o trecho de Frampton que poderia talvez integrar as peças do problema. De maneira característica, os termos são apresentados, mas não resolvidos: apesar da citação, a frase permanece desprovida de comentário, com o isolamento ressonante de uma inscrição oracular.
Em 1971, Frampton se referiu à “metahistória do filme” como a busca pelas condições de possibilidade da máquina cinematográfica. Em uma antecipação do projeto que tomaria o resto de sua vida, imaginou um vasto campo de formas, um tabuleiro de xadrez composto por incontáveis linhas e colunas, onde cada lance representaria um gesto criativo. Em autêntica chave borgeana, propôs que o mundo fosse visto como uma grande banda visual e sonora, da qual fotogramas seriam retirados para compor obras particulares. Mais do que um historiador, preocupado com o registro dessa totalidade factual, propôs que o cineasta fosse um “metahistoriador”. Sua tarefa seria aquela declarada por Eliot: inventar um “conjunto de monumentos” para inseminar consistência ressonante no campo de sua arte[5]. O horizonte da consistência, influência dos sistemas lógicos, coexistiria com um impulso contrafactual, essencialmente imaginativo. Se o cineasta deve, entre todos os filmes possíveis, realizar aqueles que elevam a consistência do campo, alguns destes incluiriam necessariamente a correção, o comentário, a distorção de obras já existentes. Na Enciclopédia de Frampton, o artista se tornaria um crítico da história na medida em que a interpreta e a expande, tomando-a como o material de sua crítica, mas não como o seu critério.
Magellan é a culminação dos esforços metahistóricos de seu criador, e o exemplo quintessencial da vocação enciclopédica da vanguarda americana. Na primeira metade dos anos 1960, esta vocação se manifestou nas formas “mitopoéticas”: Heaven and Earth Magic (Harry Smith, 1950-1961), Scorpio Rising (Kenneth Anger, 1962-1963), Dog Star Man (Stan Brakhage, 1961-1964). Na segunda metade da década, esteve presente nas abordagens da forma-variação: Ray Gun Virus (Paul Sharits, 1966), Morning (Ernie Gehr, 1968), Tom, Tom, the Piper’s Son (Ken Jacobs, 1969-1971). A partir dos anos 1970, foi evidente a virada anatômica em certas obras: Rameau’s Nephew (Michael Snow, 1971-1974), Grand Opera (James Benning, 1978), Journeys from Berlin/1971 (Yvonne Rainer, 1980). O projeto inacabado de Frampton representa não apenas uma referência para essa tradição, mas a mais direta formulação de seu caráter utópico. Projetos grandiosos e absolutos marcaram as vidas de Brakhage e Frampton, Kubelka e Markopoulos[6]; analogias entre o filme e a mente, a obra e o espaço de exibição, o cinema e o universo orientaram as criações nesse contexto. O ponto de fuga desses ideais não difere do que parece ter guiado Eisenstein durante a passagem ao sonoro. Trata-se de algo como um alfabeto do pensamento, a equivalência do cinema a uma linguagem universal, “mais compacta e eficiente que a linguagem verbal”, e que seria capaz de processar a realidade como uma grande máquina combinatória, espelhando o poder gerador da imaginação. Um dos modelos para essa reflexão é, naturalmente, a “Biblioteca de Babel” de Borges, na qual o conjunto de possibilidades formais é descrito com perfeita regularidade, alimentando paradoxos e pontos cegos sob o ilusório domínio da razão.
A compreensão do que P. Adams Sitney chamou de “mímese da mente humana” é fundamental para a evolução do cinema experimental nos Estados Unidos, e um problema diretamente ligado à obsolescência mencionada por Frampton[7]. É neste ponto que se conectam as peças citadas por Godard, e no qual se revelam a força e o limite (talvez inevitável) da vanguarda americana. Rejeitar a narrativa, rejeitar o diálogo com a indústria, muitas vezes com a história, permitiu a eles imaginar a completude do cinema, sua existência plena, absoluta; também os condenou ao isolamento, às margens, impediu a realização de suas ambições mais emblemáticas. Como a biblioteca borgeana, esses projetos sustentam a energia imaginativa por sua abstração, sua quase pureza conceitual, a mesma que os torna irrealizáveis. Se a obra de Godard tocou no problema da obsolescência, o fez pela via dialética que caracterizou sua postura desde os anos 1960. Diferente das História(s) do cinema, enraizadas e sobredeterminadas historicamente por seu autor, Magellan parece projetar a imagem de um espectador perdido no espaço e no tempo: no tempo, porque se as formas repetem-se a ciclos arbitrários, não há realmente um quando; no espaço, porque se recorrem em locais arbitrários, não há realmente um onde. Frampton parece ter considerado este um preço aceitável pelo radicalismo modernista. Mais do que uma história possível, dedicou-se a imaginar uma enciclopédia impossível. Ecoando o narrador de outro conto de Borges, ele poderia se perguntar: como não se submeter à minuciosa e vasta evidência de um cinema ordenado? Inútil responder que a história também ordena o cinema. Magellan, como Tlön, seria talvez um labirinto, mas um labirinto consciente, criado por um homem, destinado a ser compreendido pelos homens. Quanto à possibilidade de as duas ordens coincidirem, Frampton, como Godard, manteve um estratégico silêncio[8].
Borges escreveu que à realidade agradam as simetrias e as repetições. Em 1967, enquanto Godard filmava o universo em uma xícara de café, Frampton atuava em uma obra que concentrava as aspirações metafísicas de Michael Snow em uma fotografia. Em meados dos anos 1970, enquanto Godard retomava o material de sua fase inspirada em Dziga Vertov, a homenagem de Frampton ao cineasta soviético ganhava forma. Em 1984, enquanto Godard filmava a encarnação de um milagre, Frampton tinha seu próprio funeral sublimado na película por Jonas Mekas. Tudo ocorreu como se, à distância, as duas vozes mantivessem uma obscura consonância. Mas, se paralelismos acusam uma semelhança estrutural, indicam também uma convergência impossível. Como dois polos de um globo, Frampton e Godard não se conheceram; nunca estabeleceram, portanto, o diálogo que o movimento dos anos parecia exigir. E, se esse diálogo não existiu, é nosso dever criá-lo.
Conforme uma era dissolve-se lentamente na outra, os meios de sobrevivência física são convertidos em meios de sobrevivência psíquica. Talvez encontremos na obra recente de Godard os meios e termos para esta conversão. Talvez os encontremos na obra pregressa de Godard, na de seus contemporâneos, na própria vanguarda americana. Talvez estejam à nossa espera na origem histórica do cinema, ou em suas margens. Talvez devam ser encontrados outros meios, ainda desconhecidos. Se no horizonte nos espera a obsolescência, talvez devamos suspeitar que a Era de Godard está prestes a acabar e que a Enciclopédia de Frampton perdurará: solitária, infinita, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Notas:
[1] Hugh Kenner, The Pound Era (Berkeley: University of California Press, 1971).
[2] Em 1978, Godard já havia esboçado o projeto quando, a convite de Serge Losique, diretor do Conservatório de Arte Cinematográfica de Montreal, apresentou uma série de palestras, comentando as etapas de sua obra em relação a filmes de outros cineastas. Ver sua Introdução a uma verdadeira história do cinema (São Paulo: Martins Fontes, 1989).
[3] Annette Michelson, “Film and the Radical Aspiration”, Film Culture n.º 42, outono de 1966, pp. 34-42+136, republicado em P. Adams Sitney (ed.), Film Culture Reader (Nova York: Cooper Square, 2000). Peter Wollen, “The Two Avant-Gardes”, Studio International, vol. 190, n.º 978, novembro-dezembro de 1975, pp. 171-175, republicado em Readings and Writings: Semiotic Counter-Strategies (Londres: Velso/NLB, 1982).
[4] Entre os artigos da fase inicial de Godard, ver por exemplo “Défense et illustration du découpage classique”, Cahiers du cinéma n.º 15, setembro de 1952, pp. 28-32, e “Montage, mon beau souci”, Cahiers du cinéma n.º 65, dezembro de 1956, pp. 30-31.
[5] Hollis Frampton, “For a Metahistory of Film: Commonplace Notes and Hypotheses”, Artforum, vol. 10, n.º 1, setembro de 1971, republicado em Bruce Jenkins (ed.), On the Camera Arts and Consecutive Matters: The Writings of Hollis Frampton (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2009).
[6] Peter Kubelka foi o idealizador do “Invisible Cinema”, sala de exibição original do Anthology Film Archives, um espaço que buscava neutralizar quaisquer interferências na experiência da projeção, desde os estímulos visuais da própria arquitetura da sala até as legendas dos filmes. Annette Michelson comenta o caráter emblemático do projeto de Kubelka na vanguarda americana em “Gnosis and Iconoclasm: A Case Study of Cinephilia”, October n.º 83 (verão de 1998), republicado em On the Eve of the Future: Selected Writings on Film (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2017). Gregory Markopoulos retirou de circulação seus filmes nos anos 1970, na esperança de compor a partir deles uma única obra com duração de 80 horas, organizada em ciclos: Eniaios. Seu objetivo era projetar os filmes em uma paisagem grega, num festival chamado Temenos. O último capítulo de P. Adams Sitney, The Cinema of Poetry (Nova York: Oxford University Press, 2014) é uma descrição detalhada do projeto de Markopoulos, que vem sendo realizado gradualmente por seu companheiro, Robert Beavers.
[7] P. Adams Sitney, “The Idea of Morphology”, Film Culture n.º 53-54-55, primavera de 1972, 1-24. Uma discussão sobre a obsolescência como problema e ao mesmo tempo fator de estímulo à criação na vanguarda americana pode ser encontrada na mesa redonda “Obsolescence and American Avant-Garde Film”, October n.º 100, primavera de 2002. Annette Michelson, uma das participantes no diálogo, foi uma defensora constante do componente político do cinema experimental, um tópico fundamental no diálogo com a vanguarda francesa representada por Godard.
[8] Uma proposta de complementaridade, ao menos no domínio da crítica, foi feita por Roland Barthes: “É muito possível que, no plano da ‘vida’, exista apenas uma totalidade indiscernível de estruturas e de formas. Mas a ciência despreza o inefável: ela precisa falar a ‘vida’, para poder transformá-la. Contra um certo dom-quixotismo, aliás, infelizmente platônico, da síntese, toda a crítica deve admitir a ascese, o artifício da análise, e na análise, tornar apropriados os métodos e as linguagens. Menos aterrorizada pelo espectro de um ‘formalismo’, a crítica histórica teria sido, talvez, menos estéril; teria compreendido que o estudo específico das formas não contradiz em nada os princípios necessários da totalidade da História. Antes pelo contrário: quanto mais um sistema é especificamente definido em suas formas, tanto mais é dócil à crítica histórica. Parodiando uma frase conhecida, diria que um pouco de formalismo afasta-nos da História, mas muito formalismo aproxima-nos dela.” Roland Barthes, Mitologias, trad. Rita Buongermino e Pedro de Souza (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001), pp. 133-134. |
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