A LEI
Numa sociedade de caráter nitidamente individualista em que, portanto, a luta e o antagonismo são por isso mesmo a própria condição de vida, não pode deixar de conter especial interesse o conjunto de normas que melhor regula esta convivência e que é chamado de Lei.
O problema, como se sabe, torna-se particularmente premente durante a proibição e, uma dezena de anos depois, torna-se popularíssimo em todo o mundo graças ao cinema. Mas na sua essência toda a história da República Estrelada está impregnada da mentalidade: “quem faz a lei é o mais forte”, e certamente essa é a única nação na qual por dezenas de anos, e até há pouco tempo, uma grande parte da sua população teve de considerar como artigo de vestuário indispensável para qualquer operação do dia uma pistola com o cartucho no barril.
O primeiro filme americano digno de nota, O grande roubo do trem (The Great Train Robbery, Edwin S. Porter, 1903), narra um episódio de banditismo. Todo o gênero western é definido na luta contra os bandidos. Mas é apropriado notar que a luta raramente é apresentada como “lei contra fora-da-lei”.
O “ele” da situação, o herói, raramente é o xerife. E o criminoso geralmente não é um outlaw, um fora-da-lei, mas um cidadão ilustre do local, abastado e respeitado por todos, que só mais tarde se descobre que é o chefe da quadrilha. O conflito então ocorre geralmente fora da legalidade. E o fato de o herói ser um cowboy ao invés do xerife, e que este deve se sujeitar à sua iniciativa, atesta sobre a desconfiança popular inata para com os homens da lei e, talvez, para com a própria lei. É essa mesma desconfiança, embora existente em todos os países insuficientemente democráticos, que determinou o nascimento do detective privado como herói moderno. Em Conan Doyle, em Simenon, em Wallace, como em Agatha Christie e Van Dine, o detective suscita a simpatia geral não só e nem tanto por ser mais hábil que o criminoso; mas por ser mais hábil que a Polícia.
Há também um outro elemento típico e bastante frequente no gênero western: nele, às vezes, o vilain e o xerife são a mesma pessoa. Esta coincidência paradoxal entre lei e fora-da-lei será expressa com maior precisão nos filmes de gângsteres, mas também é possível testemunhar naqueles ambientados em 1800 fragmentos de história que mostram como a Autoridade, a Lei e o Estado coincidiram muitas vezes com a força bruta, a ilegalidade e interesses antinacionais, ou pelo menos dependiam deles. Uma figura característica destes filmes é efetivamente o velho juiz encarregado de exercer a justiça e financiado por bandidos. Ainda recentemente o revimos em Quero-te como és (Honky Tonk, Jack Conway, 1941) e em Atire a primeira pedra (Destry Rides Again, George Marshall, 1939).
Tal figura ainda vamos reencontrar nos filmes de gângsteres, sob as vestes de senadores, talvez, ou de governadores. Figura que, com demasiada frequência, ainda encontramos nas crônicas dos jornais quanto mais não seja por recomendarem o uso imediato da bomba atômica.
Com certeza em 1919, quando foi aprovada a XVIIIª Emenda que proibia o álcool e até a cerveja e o vinho mais leves, a criminalidade americana, continuamente revitalizada por elementos imigrantes, encontrou o seu grande momento. Puderam-se criar as organizações de caráter nacional, sustentados e sustentando os mesmos órgãos estatais, sobretudo o Senado e, às vezes, o próprio Governo.
Nenhum filme poderá ser mais épico e apaixonante que a história de Harry Daugherty, o homem que primeiro “fez” Warren Harding governador de Ohio e depois presidente dos Estados Unidos e formou o governo em que lhe foi reservado o cargo de attorney general, ou seja, ministro da justiça.
Depois da morte misteriosa de Harding, Coolidge ordenou uma investigação que demonstrou que Daugherty “controlava” algumas gangs muito poderosas.
São desses anos os empreendimentos de Dutch, de Diamond e de Al Capone, aos quais muitos senadores e homens da política deveram a sua nomeação.
Era ingênuo acreditar que o crime organizado desapareceria com o fim da Lei Seca. Aqueles homens tinham uma força grande demais nas mãos e acima de tudo serviam interesses demasiado poderosos. Tornaram-se racketeers e cobradores de dívidas de impostos coercitivos, kidnappers ou sequestradores de crianças, e continuaram a controlar as eleições. É a era dos “inimigos públicos”, dos Dillinger, dos Floyd, dos Hamilton, dos Hauptmann.
Hollywood não podia deixar de se ocupar deles. Ocupou-se na verdade de tal modo que em breve o gângster torna-se, com o cowboy e a chorus girl, a sua personagem mais popular, levando a todo o mundo a mensagem de uma civilização em crise.
Começaram Rouben Mamoulian e Mervyn LeRoy com Ruas da cidade (City Streets, 1931) e Alma no lodo (Little Caesar, 1931), nos quais a figura do criminoso era tratada com uma certa simpatia.
Scarface: a vergonha de uma nação (Scarface: The Shame of the Nation, Howard Hawks, 1932), com Paul Muni, George Raft e Ann Dvorak, foi talvez o mais realista. Segue-lhe A fera da cidade (The Beast of the City, Charles Brabin, 1932), com Walter Huston e Jean Harlow. Vieram as primeiras sátiras, benevolíssimas entenda-se: Precioso ridículo (The Little Giant, Roy Del Ruth, 1933) e Dama por um dia (Lady for a Day, Frank Capra, 1933).
O homem que nunca pecou (The Whole Town’s Talking, John Ford, 1935) marcou o fim do primeiro período. Nele, um pequeno empregado, depois de ter sofrido mil dissabores, revolta-se e mata o bandido. A partir de então os protagonistas dos filmes começaram a ser agentes da ordem: os novos heróis eram os G-Men. Eis Contra o império do crime (‘G’ Men, William Keighley, 1935), Armas da lei (Public Hero Number 1, J. Walter Ruben, 1935), Guerra sem quartel (Show Them No Mercy!, George Marshall, 1935), Dr. Sócrates (Dr. Socrates, William Dieterle, 1935). A série é muito longa.
Entre os mais notáveis dos últimos anos estão Anjos de cara suja (Angels with Dirty Faces, Michael Curtiz, 1938), com James Cagney, Pat O’Brien e Ann Sheridan, e A morte me persegue (Each Dawn I Die, William Keighley, 1939), com James Cagney e George Raft. Em um filme de um gênero totalmente diferente, A mulher faz o homem (Mr. Smith Goes to Washington, 1939), com James Stewart e Jean Arthur, Frank Capra satirizou com certa eficácia a corrupção do Senado americano.
(Il cinema in U.S.A. Roma: Anonima veritas editrice, 1947, pp. 206-209. Traduzido por João Palhares) |
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