CAIXAS ÓPTICAS: MICHAEL SNOW, JEAN-CLAUDE ROUSSEAU E A PINTURA HOLANDESA DO SÉCULO XVII
por Luiz Carlos Oliveira Jr.
Um experimento
A travessia óptica do espaço, o transporte do olhar ao longo de uma extensão determinada (aquela de um “comprimento de onda”) é o postulado formal que estrutura Wavelength (Michael Snow, 1966-1967), filme que, grosso modo, consiste num lentíssimo zoom de mais de quarenta minutos, partindo da tomada geral de um espaço (um loft) até chegar a um detalhe contido nesse espaço (uma fotografia colada na parede situada no outro extremo do apartamento). A pista sonora é composta por ruídos de ambiente, sons sincronizados (a exemplo das falas durante os parcos e breves “eventos humanos” que ocorrem no filme) e, mais marcadamente, por uma onda sonora gerada por sintetizador, que começa com oito minutos de filme e vai até o fim num crescendo constante, do mais grave ao mais agudo, na mesma medida em que a visão migra do plano geral ao primeiro plano. Snow dilata ao máximo o tempo de deslizamento do olhar – um olhar sem corpo, que não pertence a nenhum sujeito particularizado – pelo espaço fílmico (esse espaço a meio caminho entre realidade e ilusão, apreensão objetiva e construção imaginária).
Wavelength tem um quê de experimento científico, de verificação empírica das possibilidades (e limitações) de um dispositivo. O espaço filmado por Snow se assemelha a um ateliê, ou a um “estúdio”, não no sentido que o cinema lhe atribuiu, mas naquele que a pintura do século XVII consignava ao local de trabalho do artista, num contexto em que a intensa correspondência entre as práticas da ciência e da arte – ambas empenhadas em usar a visão e a percepção ocular como ferramentas de conhecimento do mundo – fez do lugar de trabalho do pintor um correlato do laboratório científico. Como demonstra a historiadora da arte Svetlana Alpers, é na Holanda do século XVII que a atividade pictórica – através dos experimentos com o sistema de representação da perspectiva centrada monocular e dos estudos em torno das qualidades da luz enquanto presença óptica em espaços interiores – mais se aproxima da prática laboratorial da ciência empirista. Michael Snow (que cita Vermeer como uma inspiração para Wavelength, numa carta endereçada a Jonas Mekas e P. Adams Sitney e publicada primeiramente na revista Film Culture[1]) se reconecta com essa tradição do ateliê-laboratório começada na pintura de interior holandesa do século XVII. O que ele testa empiricamente, com as ferramentas específicas do cinema, é um trajeto visual que Samuel van Hoogstraten já induzira por meios pictóricos em seus famosos quadros perspectivistas, a exemplo de As pantufas, conservado no Louvre.
Samuel van Hoogstraten, As pantufas, c. 1654-62,
Óleo sobre tela, 102 x 71 cm.,
Paris, Museu do Louvre.
Boa parte das pinturas de Hoogstraten – sem falar no volumoso tratado artístico que ele escreveu no final da vida – dedica-se à experimentação de um sistema de construção perspectiva que, embora desenvolvido de acordo com as regras gerais da ciência pictórica, foi retrabalhado com uma forte dose de invenção pessoal.
Em As pantufas, o efeito perspectivo é sublinhado pela variação que o desenho quadriculado do piso sofre – tornando-se cada vez mais oblíquo à medida que se afasta do primeiro plano em direção ao fundo –, bem como pelo sutil jogo alternante de luz e sombra e pela apresentação sistemática de portas que se abrem umas sobre as outras formando uma série de reemolduramentos do quadro. A entrada do olhar no campo da composição é facilitada pela sucessão de portas abertas, que acentuam a ilusão tridimensional do espaço. O efeito de profundidade assim reforçado permite a Hoogstraten afunilar a percepção do espectador, fazê-la penetrar de forma mais aguda no espaço do quadro. O observador é convidado por essa série de portas abertas a um puro exercício escópico, que coloca em cena a pintura e a visão por ela engendrada. O quadro parece ser inteiramente construído em função de sua percepção; ele enforma uma mise en scène da percepção visual.
Há outros quadros de Hoogstraten que operam na mesma lógica, como, por exemplo, Vista de um corredor, pintado em 1662:
Samuel van Hoogstraten, Vista de um corredor, 1662,
264 x 136,5 cm.,
Dyrham Park, Gloucestershire (National Trust).
Assim como em As pantufas, o que se tem aqui é uma espécie de corredor de reverberação para o olhar. Com o acréscimo de que a construção perspectiva é agora ainda mais acentuada que no quadro anterior. A ausência quase total de figuras que bloqueiem o caminho ou prendam a atenção facilita a circulação do olhar ao longo do eixo de profundidade. Se, em As pantufas, era importante que o olhar se detivesse nos objetos, que fosse percorrendo-os um a um na medida em que se aprofundasse no espaço, até chegar àquele quadro dentro do quadro (reprodução de uma “admoestação paterna” de Gerard ter Borch) que era a própria figuração da mise en abyme do pensamento pictórico de Hoogstraten, em Vista de um corredor, diferentemente, o que está em jogo, acima de tudo, é a pura travessia do espaço perspectivo.
Em ambos os quadros, o substrato metapictural do doorkijkje (a vista através de portas, motivo composicional bastante comum na idade de ouro da pintura holandesa) não poderia se expressar de forma mais evidente: é toda a superfície da imagem pictórica que se apresenta como o vão de uma porta; o quadro em sua totalidade nada mais é que a vista exata que se tem através de uma porta aberta, o que a própria imagem deixa claro, sobretudo em As pantufas, ao figurar em sua margem direita a maçaneta e parte da porta. O que o doorkijkje de Hoogstraten tematiza é a própria contemplação da pintura como proposta de abertura de um campo perceptivo. Ele chega a uma solução visual centrada inteiramente no jogo dos espaços, assinalando uma pesquisa paralela àquela que o conduzirá às suas célebres “caixas de perspectiva”, das quais há um exemplar remanescente, hoje exposto na National Gallery de Londres.
Samuel van Hoogstraten, A Peepshow with Views
of the Interior of a Dutch House, c. 1655-1660,
Londres, The National Gallery.
Trata-se de uma caixa retangular cujas faces interiores representam um espaço doméstico. Três das quatro paredes internas estão pintadas mais ou menos no mesmo estilo visto em As pantufas. O teto e o assoalho também estão pintados, dando a ilusão de uma casa em miniatura. Uma das paredes é inexistente, permitindo a entrada da luz proveniente de uma fonte luminosa externa. O conjunto forma uma espécie de cubo cênico. Em cada um dos dois flancos laterais, há uma pequena abertura para o observador colocar o olho e ter a visão do interior da casa. Pelo ângulo de visão proporcionado nessa abertura, as distorções perspectivas e as anamorfoses percebidas através da vista frontal (isto é, olhando a casa do lugar onde não há parede) se convertem num efeito de tridimensionalidade.
Ora, no travelling óptico que compõe Wavelength, é como se Michael Snow chegasse a uma representação fílmica do olhar que explora uma caixa perspectiva como essa de Hoogstraten. O plano inicial do filme, aliás, dá uma visão bastante similar àquela oferecida pelos pontos de mira do peepshow conservado na National Gallery: o que se tem aí é o interior de uma habitação transformado numa espécie de câmara óptica, um cubo perspectivo que convida o olhar a explorá-lo, a viajar por seu espaço puramente visual, a descer até os seus detalhes, seus pormenores, suas imagens dentro da imagem. Mas a vertigem do detalhe, o mergulho do olhar na direção de um pormenor do quadro, em Wavelength, assume uma forma que demanda o agenciamento não só do espaço, como também do tempo, da duração – estamos migrando, afinal, de um meio heterócrono (a pintura, cujo tempo de fruição cabe ao espectador controlar) para um meio homócrono (o cinema, cujas obras possuem uma duração intrinsecamente programada, ou seja, quem regula o seu tempo de recepção é o filme, e não o espectador).
O espectro da atenção
A primeira tomada de Wavelength é um plano geral do ambiente: vemos o teto, o chão, parte das paredes laterais e toda a parede de frente com suas quatro janelas longilíneas. Poucos móveis e objetos se acham no cenário. Dentre eles, na porção central da parede de frente, destaca-se uma cadeira amarela (também havia uma em As pantufas).
Michael Snow, Wavelength, 1966-1967
A câmera, nesse primeiro momento, está bem elevada em relação ao chão, e o ponto de vista não é frontal, mas oblíquo, pois situado à direita do eixo central do espaço. Esse ângulo cria uma grande tensão entre as linhas de força do quadro. De certo modo, o espaço se acha reduzido à sua estrutura tectônica, ao seu esqueleto geométrico. Apresentando a imagem inicialmente como uma espécie de caixa, de cubo, Snow parece dizer: eis uma unidade elementar de cinema, um plano, um bloco de espaço-tempo, e agora vamos atravessá-lo de um lado a outro.
Acima da cadeira, na parede, estão afixadas três fotos. Num primeiro momento, à distância, são apenas três pequenos retângulos indistintos. Somente com a aproximação do zoom elas se mostrarão com maior clareza. Uma delas – aquela em que a câmera se concentrará aos poucos, como se a tivesse mirado como alvo, ou como se estivesse atraída por ela como um pedaço de metal por um ímã – é uma fotografia de ondas do mar, sobre a qual o filme se concluirá, preenchendo toda a tela com a imagem fixa das ondas, que lá será mantida por um bom tempo antes do desfoque final. Ao cabo da intensa aventura perceptiva que nos leva às ondas, a eventual impressão de vê-las se movendo, apesar da fixidez da foto, é um efeito colateral perfeitamente compreensível, e provavelmente previsto por Snow.
As figuras furtivas que vemos nos quadros de Hoogstraten – como o cachorro, o gato e as duas presenças humanas longínquas e imprecisas mostradas em Vista de um corredor – tornam-se, em Wavelength, eventos ou aparições transitórias que se sucedem no tempo: pessoas vêm e vão, acontecimentos (incluindo a morte de um homem, cuja causa se dá no fora de campo) se inscrevem no espaço “cênico” (se é que o termo se aplica ao filme), mas nada se fixa no mesmo lugar ou no mesmo estado; os seres e os eventos passam pelo filme, ou melhor, o filme passa por eles, já que a câmera continua seu movimento óptico impassivelmente, indiferente aos acontecimentos. O cinema, arte do espaço, mas também da duração, se afirma como superfície de passagem, de escoamento permanente.
Assim como os quadros de Hoogstraten eram meditações sobre os componentes estruturais da pintura de interior, o filme de Snow constitui em si mesmo uma teoria sobre os meios e os materiais que estruturam a apreensão do espaço e a percepção cinematográfica do tempo. O próprio Snow escreveu que o que pretendia com Wavelength não era menos que “uma declaração definitiva sobre o espaço-tempo fílmico em estado puro”. Foi nesse sentido que Sitney considerou Wavelength a suprema realização do cinema estrutural no que este tem de eminentemente metalinguístico; o filme seria, segundo ele, “uma experiência continuamente mutante de ilusão e anti-ilusão cinematográfica”. Com efeito, o percurso de Wavelength é uma espécie de redução do cinema à realidade última de seu suporte, uma jornada rumo ao que o objeto-filme é materialmente: imagens planas e fixas, fotografias – se bem que a experiência da projeção o negue sob a ilusão de volume e profundidade e a percepção contínua do movimento. O que há, portanto, é uma ativação da dialética entre o filme como objeto, o rolo de película, imenso enfileiramento de fotos estáticas, e o filme como experiência, aquilo que é percebido pelo espectador durante o tempo da projeção.
Idealmente, ou conceitualmente, Wavelength consta de um movimento fluido, contínuo, ininterrupto, que atravessa o espaço como se ignorasse as constrições materiais do meio físico, quase como um movimento mental. Na prática, porém, o espectador facilmente percebe que o filme é constituído não só por esse movimento constante e uniforme, mas por uma série de descontinuidades e heterogeneidades. O zoom é interrompido e retomado sub-repticiamente, e sua progressão não é perfeitamente estável, mas afetada por “uma leve gagueira visual”[2]. Ainda que avance em linha reta, a câmera não desce até a foto num só impulso: ela vai camada por camada, desfolhando o espaço visível cadenciadamente. O filme tampouco dispõe de um bloco temporal monolítico, pois é feito de múltiplos registros acoplados de modo a forjar a continuidade do movimento.
Essas “imperfeições”, antes de serem escamoteadas, são assumidas e intensificadas por Snow, que deixa à mostra os pontos de amarração do material filmado. Vemos, assim, em paralelo aos “defeitos” sutis (discretas variações de eixo, ligeiros recuos ou avanços na passagem de um pedaço de registro a outro), rupturas assaz exclamativas: passagens bruscas do dia para a noite e vice-versa, manipulações deliberadas da imagem, trechos em negativo, sobreimpressões, sub ou superexposições, mudanças abruptas de cor por conta do uso de filtros etc. O filme faz questão de admitir a defasagem entre o pensamento organizador da obra e a realidade técnica de sua execução. E, no entanto, sua ideia-motriz é tão poderosa, sua estrutura conceitual é tão presente, que nada a atrapalha no fim das contas. Os distúrbios da viagem, tanto os acidentais quanto os propositais, são reabsorvidos num fluxo de continuidade ideal, que segue esse fio imaterial e invisível, essa linha pontilhada imaginária que conduz o olhar até a fotografia na parede, a fotografia das ondas, imagem final que, durante o tempo em que ocupa toda a tela, abre um novo espaço dentro do espaço já esgotado pela câmera. A foto prolonga virtualmente (ao infinito?) o campo do olhar, convidando o pensamento a inventar formas a partir da imagem das ondas (um pouco como quem adivinha a figura nas nuvens ou tenta enxergar o desenho no tapete). Terminado o movimento da câmera, continua o da mente.
Snow, em Wavelength, nada faz senão traçar uma linha, o mais curto caminho entre um ponto e outro (ainda que essa linha seja percorrida num movimento ondulatório). A linha une dois pontos, e o ponto é um instante. Se a linha conjuga dois instantes, ela é uma quantidade de tempo. “A mão que segue e fixa uma linha apreende o tempo e lhe dá forma”[3]. Isso vale também para o olho que segue e apreende visualmente uma linha (real ou imaginária). O trajeto óptico de Snow, portanto, indo de um ponto a outro daquele loft, equivale ao traçado de uma linha e, consequentemente, à apreensão de uma determinada extensão do tempo. Como assinalou Annette Michelson, Snow “redefine o espaço como sendo o que Klee já defendia: essencialmente ‘uma noção temporal’”. Na medida em que “a linha se torna a consciência de um espaço de tempo”, ela traduz também “a dimensão de uma ideia projetada no e com o tempo” (Brusatin): quem liga dois pontos já está seguindo uma linha de pensamento ou construindo o fio de um raciocínio. O movimento da câmera de Snow, sua lenta caminhada por dentro do loft, pode ser então equiparado a um “movimento da consciência” (Michelson).
Nesse sentido, o filme se assemelha a um processo de organização mental ou perceptiva cujo sistema delineia a estrutura básica da atenção: selecionando um ponto de interesse dentro de um campo visual mais vasto e nele se concentrando com mais e mais intensidade, ofuscando e excluindo aos poucos as partes que ficam na periferia do objeto focalizado, Michael Snow estaria nos convidando a avaliar o espectro de intensidade da nossa atenção. A questão da manutenção da atenção já havia se tornado, no último quartel do século XIX, um dos grandes problemas da modernidade. Dentre as muitas questões então surgidas – de ordem neurofisiológica, sociológica, psicanalítica, filosófica etc. –, achava-se o problema, ainda atualíssimo, de como manter um “estado de atenção” dentro do regime de sobrecarga sensorial que marca a vida moderna. Snow talvez esteja partindo de questionamento similar: sua insistência em manter-se focado no mesmo objeto, concentrado no mesmo movimento, no mesmo ritmo, durante os 45 minutos de Wavelength, enfrentando todas as forças de dispersão, variação e descontinuidade que encontra pelo caminho, pode ser uma reação paroxística à cultura moderna de saturação e “distração”. Mas já nas décadas de 1880 e 1890 sabia-se que a atenção trazia consigo as condições de sua própria desintegração, sendo incompatível com qualquer modelo de olhar estético prolongado. Como Jonathan Crary demonstrou em Suspensões da percepção, a atenção – na esteira da crise epistemológica generalizada do final do século XIX – teria deixado de estar relacionada à noção de estabilidade perceptiva para ser reconhecida como um processo dinâmico, que não se dá de forma homogênea, mas por uma constante variação de intensidades, “uma modulação temporal, repetidas vezes descrita como de caráter rítmico ou ondulante”. Atenção e distração não formariam polos opostos, mas existiriam em “um continuum no qual as duas fluem incessantemente de uma para a outra”. Essa definição moderna de uma percepção instável, modulável e ondulante é bastante apropriada a Wavelength, que seria como que a demonstração cinematográfica de quão precário e problemático é o processo de síntese do campo perceptivo, dividido entre a atenção fixa (o olhar contínuo) e a autoimposição de uma visão fragmentada, disruptiva e mutável.
Hitchcock-(Antonioni)-Snow
O movimento que Wavelength perfaz, isto é, esse mergulho do plano geral ao plano-detalhe, é similar ao movimento-padrão da engrenagem hitchcockiana. Basta pensar num dos planos célebres de Hitchcock, aquela grua que desce do teto de uma mansão e chega até a mão de Ingrid Bergman, focalizando a chave que ela está trazendo em segredo e que será o objeto-pivô do ponto de virada da trama de Interlúdio (Notorious, 1946). O plano é literalmente uma plongée, um mergulho na cena. A câmera vai da tomada geral ao detalhe em um movimento preciso, decidido, enfático, resumindo perfeitamente o movimento dos filmes de Hitchcock: “da paisagem em direção à mancha, do plano de conjunto ao primeiro plano”[4]. Em meio a todas aquelas pessoas e todos aqueles objetos, a câmera sabe exatamente o que buscar. Ela seleciona, aproxima e indica para o espectador o objeto que mais importa naquele ambiente e naquele momento. Hitchcock conduz nosso olhar, dirige nossa atenção para um ponto específico.
Outro exemplo famoso se acha numa cena de Jovem e inocente (Young and Innocent, 1937), em que a heroína, afoita para inocentar seu companheiro (tomado como falso culpado de um assassinato), vai ao hotel em que ela sabe que se encontra o verdadeiro criminoso, que poderá ser reconhecido por conta de um inconfundível tique nervoso nos olhos. Assim que ela chega ao hotel, a grua realiza um movimento que parte de um grande plano geral do hall de entrada e depois passa para o salão de baile, onde vários casais dançam animados pela música tocada por uma orquestra que, pouco a pouco, torna-se o foco de interesse da câmera. O quadro vai lentamente se fechando sobre a orquestra posicionada ao fundo do salão, até isolar apenas o baterista, chegando cada vez mais perto de seu rosto (que está pintado, mascarado) e, em seguida, concentrando-se nos olhos, onde, por fim, manifesta-se o tique nervoso (o traço delator, que revelará a identidade do assassino a despeito do seu disfarce). É como se a câmera tivesse saído em busca do segredo que Hitchcock queria compartilhar com a plateia (o assassino é o baterista da banda).
Mais ilustrativa ainda é a abertura de Frenesi (Frenzy, 1972), uma tomada aérea de Londres com a câmera percorrendo o rio Tâmisa, quase uma apresentação turística da cidade – um plano-cartão postal. Mas, quando a câmera desce e encontra o prefeito fazendo um discurso sobre a despoluição das águas, alguém avista o corpo nu de uma mulher morta boiando no rio. A aparição do cadáver acusa a parte sórdida da realidade, que a imagem oficial da cidade omitia. (Essa cena tem a mesma lógica do trabalho conceitual do artista plástico Richard Hamilton em Whitley Bay, de 1965: corromper a imagem do cartão postal para fazê-la revelar as sujeiras que a vista de longe mascarava. Hamilton partiu da cópia fotográfica de um detalhe destacado de um cartão postal e foi ampliando-o até que se obtivesse uma imagem em que – junto ao aparecimento dos grãos e cristais que são a própria matéria da imagem fotográfica – surgissem figuras residuais, aspectos do mundo que estavam silenciados no fundo da imagem, mas que então emergiam como num processo de desrecalcamento do inconsciente óptico daquela foto pertencente ao imaginário popular. Qualquer semelhança com Blow-up – Depois daquele beijo [Blowup, Michelangelo Antonioni, 1966] pode não ser mera coincidência).
Se Michael Snow reemprega em Wavelength a estrutura típica do plano hitchcockiano – esse fechamento progressivo do campo perceptivo, essa concentração da câmera num objeto preciso –, ele o faz de acordo com uma premissa ao mesmo tempo visual-estética e intelectual-teórica, que termina por evidenciar aquilo que Hitchcock ainda empacotava como parte do espetáculo: o arbitrário da forma. Embora já subordinasse a mise en scène a um “postulado formal”, a uma ideia visual de base, Hitchcock ainda a justificava em termos de narrativa e construção dramática: o mergulho da câmera no espaço cênico, seu movimento do plano de conjunto ao primeiro plano, por mais extravagante e arbitrário que pudesse parecer, estava totalmente integrado a um programa ficcional. Em Wavelength, esse movimento é preservado apenas como esquema, desenho, forma de estruturação do campo visual. De certo modo, é como se Snow submetesse o famoso plano da chave de Interlúdio (ou o do baterista de Jovem e inocente) a uma extrema ralentação, fazendo o trajeto durar quarenta e cinco minutos e não quarenta segundos. Nessa velocidade infinitesimal, o movimento perde parte de sua precisão e agudeza, de sua fluidez; amplificam-se as perturbações, as claudicâncias do foco, os microestremecimentos da câmera. Ainda que os caminhos sejam outros, a lógica de fundo não é tão distinta daquela de Blow-up – Depois daquele beijo. Lá, o fotógrafo ampliava os pormenores da imagem para enxergá-los mais de perto, desencadeando um processo em que a perda de precisão analógica da foto, sua progressiva deformação, era compensada pela revelação de acontecimentos materiais e figurais antes imperceptíveis. Aqui, a aproximação do olhar em direção ao detalhe constitui-se de maneira diferente, como deslocamento no espaço, travessia de um ponto a outro – o que Snow “amplia” não é o tamanho da imagem, e sim a duração, a extensão temporal desse deslocamento –, mas, entre o ponto de largada e o enquadramento final, exploram-se, como em Blow-up – Depois daquele beijo, as forças de (des)figuração intrínsecas ao material fílmico, desvelando as nuanças que o plano magistral de Hitchcock ignorava em seu movimento ansioso. O que era um convite à pronta hipervisibilidade em Hitchcock torna-se uma maratona da percepção em Snow. De Hitchcock a Wavelength, o percurso do olhar é mantido, mas o espetáculo da mobilidade do olho cinematográfico se desdobra num problema perceptivo e epistemológico.
Uma ciência do olhar
Por caminhos diferentes, mas partindo talvez das mesmas interrogações, Jean-Claude Rousseau, em Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre, de 1983, se lança a uma especulação estética que traz vários pontos em comum com o filme de Michael Snow. A relação com a pintura holandesa, reivindicada já no título (tomado de empréstimo a um quadro de Vermeer), é explicitada por Rousseau ao longo do filme. Como explicar essa coincidência, essa mesma inspiração em Vermeer e na pintura de interior holandesa do século XVII em dois filmes que visam refletir, cada qual à sua maneira, sobre os parâmetros estruturais do cinema?
Uma primeira tentativa de resposta pode partir da constatação de que a pintura holandesa se organiza através da “visão metódica”. Conforme indicado pelo historiador da arte Victor I. Stoichita, o pintor holandês se instala diante da tela para entender o que é a pintura. O ato da percepção pictural é aí tematizado como percepção autorreflexiva. Ora, analogamente, Snow e Rousseau se instalam atrás de suas câmeras para entender o que é o cinema, para confrontar os ilusionismos cinematográficos com as condições materiais e fenomenais de sua verdade perceptiva de base. Daí a pintura holandesa surgir como referência óbvia, num processo genealógico que reconhece como parte da história do cinema o modelo óptico da perspectiva monocular e o sistema projetivo da camera obscura (que foi o dispositivo que, consoante com a cultura científica e técnica então vigente, presidiu à representação pictórica da Holanda do século XVII).
Curiosamente, o filme de Rousseau é do mesmo ano da publicação do livro fundamental de Svetlana Alpers sobre a pintura holandesa, seu famoso The Art of Describing. A tese de Alpers, já elogiada e contestada por muitos (destacaria, sobretudo, os comentários de Louis Marin e Georges Didi-Huberman), é a de que a pintura holandesa não se dedica à narrativa de histórias, mas à arte da descrição do mundo visível. O quadro holandês, ao contrário do quadro renascentista italiano, não é uma janela dando vista para um conteúdo narrativo, mas uma superfície de inscrição de signos figurativos que cumprem uma função descritiva. Não se pode narrar o enredo de um quadro holandês: tudo o que se pode fazer é olhá-lo. A idealidade albertiana, o predomínio do semântico, do narrativo, da istoria, encontraria uma oposição na pintura holandesa, empenhada apenas em descrever, isto é, em dar a evidência de que o mundo se depositou por si mesmo (com sua cor e sua luz) numa superfície. A primazia do significado dá lugar à primazia do referente.
O fundo epistêmico dessa arte descritiva derivaria do sistema kepleriano da visão, alicerçado numa maneira caracteristicamente nórdica (e materializada na caixa óptica holandesa) de alienar o olho do restante do corpo. O modelo ocular de Kepler, que Descartes corroboraria em sua Dioptrique, separa o problema físico da formação das imagens retinianas (a realidade vista) dos problemas psicológicos da percepção e da sensação. Ele desantropomorfiza a visão. A percepção, na análise de Kepler, é em si um ato de representação: é uma imagem com existência própria independente do sujeito da visão; um resultado passivo do registro instantâneo dos raios de luz numa superfície.
A ruptura é significativa. No modelo do Quattrocento, a “construção legítima” (isto é, aquela obtida pela técnica da perspectiva linear) concebia um espaço cênico-teatral em que se representava uma narrativa oriunda da mitologia antiga ou da tradição cristã. Essencialmente, então, a pintura em perspectiva do Renascimento italiano tinha por missão aclimatar num contexto opticamente realista os significados espirituais dos textos mitológicos ou religiosos que fundamentavam sua representação. O que Alpers afirma é que a pintura holandesa do século XVII viria superar esse paradigma e instaurar em seu lugar uma teoria da visão como replicação ou duplicação da coisa. O modelo da pintura holandesa não pode mais ser o da janela de Alberti. O quadro holandês é uma superfície (e não uma abertura ilusória na parede) em que, como numa tela (o fundo da camera obscura, a retina do olho, a placa fotográfica), o mundo visível se reproduz independentemente do sujeito construtor (este ainda era central no sistema perspectivo albertiano). Assim sendo, a categoria fundamental da produção de imagem não é mais o ícone ou o símbolo, mas o índice, o traço, a impressão: a marca da própria coisa. A fotografia – e o cinema – não estava longe do horizonte dessa arte encarada como ciência do olhar.
Du côté de chez Vermeer
Há um momento, em Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre, em que Rousseau refaz o quadro de Vermeer no qual se inspirou.
A reelaboração figurativa operada por ele respeita o sentido geral da luz, da composição e da atitude corporal observadas na imagem de origem. No entanto, o diretor insere em seu plano – na parede atrás do homem que substitui a leitora de Vermeer – um elemento que não constava no quadro original: um mapa – objeto visual que, embora ausente da obra que serviu de referência ao filme, era uma presença recorrente na pintura do século XVII, aparecendo em vários outros quadros de Vermeer. Se Rousseau inclui um mapa em sua recriação fílmica de Moça lendo uma carta à janela, é porque deseja formular uma reflexão sobre os objetos que funcionaram como emblemas da representação visual na modernidade europeia, dentre eles, é claro, a janela e o mapa. A presença do mapa sugere também que – como a blusa azul do homem que segura a carta parece confirmar – Rousseau realizou uma espécie de fusão de Moça lendo uma carta à janela com um quadro posterior de Vermeer, um dos mais belos, sem dúvida: Mulher de azul lendo uma carta, no qual se acha um mapa atrás da figura feminina.
Johannes Vermeer, Mulher de azul lendo uma carta,
1663-64, óleo sobre tela, 46,6 x 39,1 cm.,
Amsterdã, Rijksmuseum.
O plano inicial de Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre já mostra o mapa (que ocupa toda a tela). Em seguida, outro plano apresenta um quadro invertido, talvez uma pintura de grande formato, mas tudo o que vemos é o seu dorso, com uma mancha de luz retangular se projetando sobre ele. E, mais adiante, um terceiro plano enquadra uma janela aberta, dando vista para o mundo exterior (no caso, a fachada de um outro edifício com várias outras janelas).
Janela, quadro, mapa: três degraus, três etapas do trabalho de abstração que conduz à representação, aqui percorridos em sentido inverso, ou descendente, como se o olhar partisse da mais codificada das três imagens (o mapa) para retroceder àquela que ainda sequer tornou-se imagem (a janela), com o quadro ficando na posição intermediária – pois, se a janela ainda não é quadro, o mapa já não o é mais (a bidimensionalidade da representação cartográfica é de um tipo que já não guarda o sonho de profundidade do quadro-janela albertiano). O mapa é uma imagem que não prolonga o espaço, mas tão-somente o representa sobre um plano. É uma imagem, mas não um quadro: uma representação que não resulta da intersecção da pirâmide óptica; uma superfície preenchida por signos que compõem a descrição de um território. Os artifícios do mapa não são o velum, a tavola, a janela, a perspectiva, mas a rede das coordenadas, a escala, a projeção triangular. A vista através da janela é feita para ser olhada, contemplada; o mapa para ser decifrado, lido. Não é uma paisagem observada de longe: é o produto de uma panorâmica abstrata, que achata o espaço numa superfície plana. Enrolado, dobrado, esticado sobre a mesa, pendurado na parede (como é o caso no filme de Rousseau): qualquer que seja a forma de utilização do mapa, ele nunca fornece uma “vista através”, como o faz o quadro, mas uma “vista sobre”.
Esse é o primeiro ponto a se reter dessa sucessão de signos emblemáticos do processo representacional com que Rousseau abre seu filme. O segundo concerne especificamente à janela, que aqui demarca menos uma comunicação com um exterior do que um retraimento do olhar para dentro do “ateliê” do artista ou, até mesmo, para dentro da sua consciência, numa reflexão, num dobrar-se pelo qual o cinema reconhece seus mecanismos de representação, o que rima com a proposta do filme – e nisso, mais uma vez, ele está em sintonia com Wavelength – de efetuar uma passagem do método contemplativo/mimético para o reflexivo/analítico.
Mas resta aquele quadro encostado à parede e filmado de costas, sem dúvida o mais enigmático dos três elementos colocados em cena por Rousseau. Seria uma reprodução da pintura de Vermeer? Que “obra-prima desconhecida” o cineasta esconde de nós?
Na retórica visual das cenas de ateliê da pintura do século XVII, o quadro invertido era um motivo relativamente comum, sobretudo nos autorretratos de pintores. Um quadro visto de costas constitui o paradoxo de uma imagem não exatamente escondida, mas exibida como invisível. Esse quadro de costas, por se anular como imagem, emerge como objeto, chassi, suporte – uma representação em negativo, ou melhor, o negativo da representação, a imagem de uma não-imagem. O quadro invertido não joga com os desejos suscitados pela imagem: ele joga, antes, com o próprio ato de suscitar o desejo de imagem.
Essa mecânica da atração escópica, que está na base da própria definição de espetáculo, vinha sublinhada, no quadro de Vermeer, por um elemento que Rousseau preferiu deixar de fora de sua versão fílmica da pintura: uma cortina em primeiro plano, como se alguém tivesse acabado de abri-la para autorizar a visão da cena representada no quadro.
Johannes Vermeer, Moça lendo uma carta à janela, c. 1657-1659,
óleo sobre tela, 83 x 64,5 cm., Dresden, Gemäldegalerie.
Se, por um lado, Rousseau acrescentou um elemento (o mapa) que não existia no quadro de Vermeer, por outro, suprimiu quase inteiramente – através da decupagem seletiva de uma porção limitada do espaço plástico da pintura – esse artefato crucial, a cortina, cujo uso bastante simbólico não é um caso único na obra de Vermeer, tampouco na pintura holandesa como um todo. Há múltiplos outros exemplos de pinturas em que a cortina desempenha essa mesma função de supervalorização do conteúdo da cena representada. Um dos casos mais conhecidos e discutidos é um quadro de Rembrandt representando a Sagrada Família.
Rembrandt, A sagrada família, 1646, óleo sobre madeira,
46,8 x 68,4 cm., Kassel, Staatliche Kunstsammlungen.
Rembrandt cria todo um dispositivo de trompe-l’oeil para ritualizar a aparição (no sentido religioso, mas, sobretudo, espetacular) da imagem, deixando claro que o papel da cortina é figurar “a mise en scène da tentação escópica, a autodenotação do quadro como quadro, da contemplação como desvelamento” (Stoichita). Um objeto figurativo como esse torna visível o trabalho metapictural que confronta, no interior mesmo da pintura, dois sentidos que não se excluem, mas se completam: o quadro como abertura na parede e como superfície que contém a imagem. A função original da cortina – de um lado, proteger a pintura da poeira e da luz excessiva; do outro, aumentar seu impacto e seu efeito de surpresa sobre o espectador – é subvertida, uma vez que já não se trata de uma cortina de verdade, que só seria retirada da frente do quadro no momento especial de mostrá-lo a um grupo seleto, mas de uma cortina pintada, incorporada à plástica da imagem e transformada num exercício de ilusão pictural enraizado na antiga fábula que narra o triunfo de Parrásio sobre seu rival, Zêuxis: este tinha pintado cachos de uvas tão reais que atraíram passarinhos, mas o primeiro o superou ao mostrar um quadro coberto por uma cortina; Zêuxis pediu que Parrásio abrisse a cortina para ver o quadro, dando-se conta, em seguida, do engano da sua visão: a cortina já fazia parte do quadro, ou melhor, ela era o quadro (este consistia na cortina pintada). Se Zêuxis era capaz de enganar os pássaros que vinham bicar suas uvas pintadas achando que elas eram verdadeiras, Parrásio era ainda melhor pintor, porquanto enganava até mesmo o olhar de um mestre. Numa tradição artística assombrada pelo fantasma da mimesis perfeita, a cortina em trompe-l’oeil pontua o fim (no duplo sentido de meta atingida e limite estacionário) do trabalho de reprodução do mundo visível e de suas possibilidades representativas. Nos quadros de Rembrandt e Vermeer, a cortina pintada constitui uma pintura que se abre sobre outra pintura, mas não no sentido de desfazer a opacidade da tela para permitir a transparência da finestra aperta albertiana – tudo é parte da mesma superfície e, se a cortina se abre, é para desvelar a única verdade da pintura, a saber, sua opacidade, sua planaridade.
Em seu filme, Rousseau deixou de lado a cortina, pois seu interesse principal não estava na dimensão teatral (ou erótica?) da representação, mas na especulação em torno dos desvios, rupturas e transformações implicados pela migração de um dispositivo plástico de um campo artístico para outro. Assim como Snow, Rousseau revisitou um topos da pintura ocidental e o transcodificou para o cinema. As cenas de ateliê são aí retomadas menos como pontos de ancoragem numa tradição artística do que como propulsores de reflexões metafílmicas totalmente originais em suas formas. Entre os filmes estruturais de Snow e Rousseau e a pintura de interior holandesa do século XVII, o que resta, acima de tudo, é uma premissa em comum: a de fazer uma arte em que a luz e a percepção visual que ela possibilita sejam os verdadeiros temas.
Notas:
[1] Cf. P. Adams Sitney, Visionary Film: The American Avant-Garde 1943-1978, 2.ª ed., Nova York: Oxford University Press, 1979, p. 380. Ver também Regina Cornwell, Snow Seen: The Films and Photographs of Michael Snow, Toronto: P.M.A. Books, 1980, pp. 77-78.
[2] Annette Michelson, “Toward Snow”, Artforum vol. 9, n.º 10, junho de 1971, p. 31-37. Republicado em P. Adams Sitney (org.), The Avant-Garde Film: A Reader of Theory and Criticism, Nova York: New York University Press, 1978, p. 174.
[3] Manlio Brusatin, Histoire de la ligne, Paris: Flammarion, 2013, p. 85.
[4] Cf. Pascal Bonitzer, “Le suspense hitchcockien”, Le champ aveugle: essais sur le cinéma, Paris: Gallimard; Cahiers du cinéma, 1982, p. 61.
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