POR ONDE PASSAM OS ENIGMAS
por Bruno Andrade



O céu resplandecente das manhãs é o marco do desenlace das grandes jornadas.

Dois velhos amigos e um rapaz são encarregados de transportar o ouro da mina “Coarse Gold”, na crista de Sierra Nevada, a um banco na cidade de Hornitos, na Califórnia. Em uma jornada inesperadamente regeneradora, acompanhamos as mudanças no clima e na paisagem e o seu reflexo nas transformações que lentamente se instalam no coração das personagens: uma menina que foge das garras do pai por anseios da juventude; um garoto prestes a ultrapassar a linha tênue que poderia levá-lo ou não para trás das grades; dois homens que sentem a velhice nos calcanhares, um deles se esquecendo por algum tempo do princípio que separa um homem de um animal e o outro com a única preocupação de viver e morrer honestamente. O ouro surge como símbolo da ganância dos homens, e a mulher como símbolo do que existe de mais valioso a ser protegido por um homem. Cabe às personagens, no intervalo da jornada, descobrir o real valor de cada coisa. De um lado, os homens que se empenham, resistem, lutam a boa luta, mas ainda assim se veem a cada dia compelidos a tarefas mais atrozes; do outro, os chacais, aqueles que sempre adiam a luta, que para se verem livres abandonam seus ideais e crenças em troca das necessidades mais imediatas.

De uma forma ou de outra, trata-se de uma luta sem fim, sempre renovada pelo nascer do sol.


De onde partem os enigmas


Steve Judd (Joel McCrea) tem o punho da camisa puído, um furo na sola da bota, um relógio de dois dólares. Tem também a tranquilidade e o humor de alguém com uma única preocupação: viver com dignidade. Ao longo da viagem ele é o único a manter uma relação estreita com o ambiente selvagem, como no pequeno ritual em que, já sem as velhas botas, repousa os pés descalços num riacho sob o olhar de incompreensão do garoto. Este, insensível ao regozijo de um velho senhor, arremessa no chão o papel que envolvia seu lanche, um gesto agressivo que não deixa de comportar uma falta de paciência para com aquilo que pode parecer supérfluo a um jovem. “A montanha não precisa do seu lixo”, repreende Steve. Essa jornada não se reduzirá à simples cobiça garimpeira: o teor da relação de Steve com a natureza diversificada do lugar, que vai do barro à neve, seu compromisso de dose justa com todos com quem se relaciona, dos que o traem aos que cooperam, é indicado durante todo o filme em pequenos momentos como esse.

Conhecemos o rosto de Joel McCrea de alguns bons westerns como Buffalo Bill (William A. Wellman, 1944), Golpe de misericórdia (Colorado Territory, Raoul Walsh, 1949), O testamento de Deus (Stars in My Crown, Jacques Tourneur, 1950), Paladino dos Pampas (Saddle Tramp, Hugo Fregonese, 1950), Estouro da manada (Cattle Drive, Kurt Neumann, 1951) e Choque de ódios (Wichita, Jacques Tourneur, 1955). Vimos esse rosto envelhecer nesses filmes e com ele o gênero que o estampou e os mitos que este narrou. Mas nunca avistamos no rosto deste homem uma expressão tão serena como aquela que acompanha Steve nos seus instantes finais, diante da presença dedicada do velho amigo, agora reformado e inspirado pela vida que dele se despede. Tudo se passa como se ao final os princípios morais da personagem estivessem sendo recompensados, mas uma análise mais atenta nos leva a outra conclusão, bastante afastada de palavras contundentes como virilidade, fibra, resiliência. No seu leito de morte, um homem alcança a consciência total irradiando-se na natureza que o rodeia, aspiração final de toda grande personagem do western, a qual podemos pressentir sempre que eles, ao contemplarem a imensidão dos espaços, alinham-se com orgulho ou assombro, permitindo-nos entrever a vontade de pertencer e sentir-se parte daquele universo.

Até aqui falamos de homens, de lutas, de honestidade, de dignidade, de mitos, mas através dessas figuras estávamos na realidade falando unicamente do espírito que se agita através desses homens, dessas lutas, desses mitos. O western, um gênero estruturado sobre a rotina das convenções, inicialmente permitiu que a partir de um mesmo tema (as qualidades, os defeitos, os desafios do espírito manifestando-se nas ações dos homens) se estabelecessem os arquétipos (os homens necessariamente passando pelas caravanas, pelas primeiras cidades, comprando terra para criar bois na região ainda selvagem, lutando contra os ladrões de gado que podiam tanto ser delinquentes quanto latifundiários) capazes de permitir as invenções poéticas mais singulares (ao final da Guerra Civil Americana um soldado confederado se recusa a aceitar a derrota de suas tropas, vai para o Oeste e se integra à tribo dos Sioux, cf. Renegando o meu sangue [Run of the Arrow, Samuel Fuller, 1956-1957]). Esse terreno, tão propício para a consolidação do mito, foi abundantemente nutrido e deu seus frutos mais notáveis nos anos 1940 e 1950. Com o tempo, a matriz do gênero (pois trata-se antes de tudo de um padrão, um esquema, um modelo) foi como que erodida por todas as passagens dos elementos novos que precisou integrar e pelos quais pôde se recompor e se reinventar, o que por um lado fez com que os criadores necessitassem de intervalos cada vez maiores para formularem invenções capazes de manter o gênero fecundo, e por outro fez com que essa matriz precisasse de um tempo correspondente para se ajustar aos novos elementos que deveria incorporar para não morrer.

Estamos no início dos anos 1960. Esse cinema passa por uma encruzilhada, semelhante àquelas que tantos dos seus heróis enfrentaram: no final dos anos 1950, o western alcançou uma perfeição arquetípica que lhe permite cindir os conteúdos psicológico, político e moral que outrora fundaram e orientaram as evoluções das tramas e das personagens dessa extensa trajetória que começa com a história da ocupação do território dos Estados Unidos da América. Em filmes como O homem que luta só (Ride Lonesome, Budd Boetticher, 1959) e Cavalgada trágica (Comanche Station, Budd Boetticher, 1960), toda psicologia e toda reflexão social é esvaziada em prol de uma descrição austera do itinerário moral de uma personagem vagante, sem raízes. Já um pequeno filme movimentado como Com o dedo no gatilho (Hell Bent for Leather, George Sherman, 1960), ou um título célebre como Onde começa o Inferno (Rio Bravo, Howard Hawks, 1959), reduzem esses conteúdos a esquemas que preservam apenas o esqueleto mais rudimentar do gênero, acentuando a energia frenética de perseguições e caçadas ou o relevo das caracterizações em jogos combinatórios que devem mais a antepassados ilustres do western, como o filme de capa e espada e o folhetim, que ao itinerário definido do ano de 1939 (a modernização pelas estradas de ferro, a descrição da formação das primeiras cidades, a ocupação dos primeiros povoados do Oeste, cf. Uma cidade que surge [Dodge City, Michael Curtiz], A lei da fronteira [Frontier Marshal, Allan Dwan]) a 1959 (quando são realizados os últimos grandes faroestes clássicos, aqueles em que o quadro da ação contempla e sintetiza o contexto psicológico, social e moral do Oeste, cf. A árvore dos enforcados [The Hanging Tree, Delmer Daves], Balas que não erram [No Name on the Bullet, Jack Arnold]).

O western, entre os anos de 1960 e 1962, veste os mesmos trajes puídos e assemelha-se bastante à figura de Steve Judd: visivelmente fora de moda, exaurido pela escolha aparentemente pouco promissora entre um futuro indigno e a última chance de manter-se arraigado aos seus valores. Não é pela sua morte que esse homem quer afirmar esses valores, mas se for necessário é por ela que eles se perpetuarão. À semelhança desta personagem de homem da lei aposentado, envelhecido e sem grandes perspectivas, o western terá de passar por algum tipo de teste decisivo; após narrar e popularizar tantos mitos, o gênero precisa converter-se ele próprio em mito. É o que ocorre ao fim desta jornada: um pouco antes do final, no clímax do conflito, Steve passa pelo dilema da vingança com o amigo que lhe traiu tentando roubar o ouro que transportavam. Acaba decidindo entregar seu velho parceiro à justiça e sua posição é irredutível. Mas o destino, peça-chave na composição dos mitos, coloca-se à frente da vaidade dos homens: o clã dos Hammond embosca Steve, seu amigo, o garoto e a menina. A gravidade do tema da vingança, seja ela levada a cabo ou não, nada mais é que o motor dos conflitos das mais belas e comoventes histórias. A vingança de Steve não se cumprirá, pois o amigo virá ao seu socorro e passará a luta final ao seu lado (podemos agora dizer que se trata de Randolph Scott, outro importante rosto do western). Ambos se oferecem em sacrifício, mas somente Steve é abatido, fechando esse ciclo com o perdão mais puro.

Homens, mitos, formas, valores. De O grande roubo do trem (The Great Train Robbery, Edwin S. Porter, 1903) a Terra bruta (Two Rode Together, John Ford, 1961), o western compôs, através do retrato ora enaltecedor, ora doloroso da formação da identidade de um país, a grande saga do espírito que animou a aventura de pioneiros, peregrinos, posseiros, vaqueiros, homens da lei, renegados, forasteiros, caçadores de recompensas, dançarinas, damas de estabelecimento, noivas, noivas viúvas, viúvas herdeiras, esposas abnegadas, esposas fiéis e infiéis, mães dedicadas, cafetinas, jovens sonhadoras e destemidas, ex-prostitutas que procuram refazer a vida. E foi através das personagens femininas que o western designou aquilo que forma o elo central de toda a epopeia da formação da sociedade americana. Eis por que coube à mulher o papel de símbolo do que existe de mais valioso para um homem proteger; eis por que, ao preservar aquilo que havia de mais valioso nessa nova terra, o homem do western precisou enfrentar os desafios impostos por esta; eis por que foi através desses desafios que o seu espírito, posto tantas vezes à prova, pôde se sedimentar no solo americano.

Um desses homens, capaz do mais generoso dos gestos, olha a montanha à sua frente. Nós, ao fim de um filme, olhamos esse homem. Quando seu corpo tomba no chão e nosso olhar permanece na montanha, o que vemos na realidade é o espírito de um homem inscrito no território que o acolheu, um espírito que, ao fim da sua última jornada, faz jus ao maciço desse território. Um estrondo rasga a tela e conseguimos entrever nele a dimensão da grandeza de um homem em plena posse do que cultivara por toda a vida, de um gênero em plena posse daquilo que o nutriu por anos e anos de formação. Podemos agora enxergar ambos mais claramente, agora inscritos na monumentalidade de uma escarpa flanqueada por uma cadeia montanhosa.

O western, vimos até aqui, passou de gênero, de forma, de convenção, de mito para chegar à condição de símbolo: um homem morre e a sua morte dá lugar a um novo dia. A ocasião é singular o bastante para que o título do filme (Pistoleiros do entardecer [Ride the High Country, Sam Peckinpah, 1962]) seja mencionado.


Por onde passam os enigmas


Contudo, o western é um gênero que, como qualquer outro, contém em si várias possibilidades formais. De imediato, podemos falar de uma forma embrionária, bastante comum, na qual o interesse da narrativa confina-se a imagens idílicas ou mortais (desfiladeiros, estradas de areia, terrenos férteis no meio do deserto...) enquanto as personagens vivem uma vida alheia a esses cenários. O conflito, a ação propriamente dita, não se funde na natureza desses ambientes paradigmáticos, que finalmente contam na sua autonomia uma história mais evocativa do velho Oeste que a das engrenagens de uma trama ou um drama mal engendrados. De outra classe são os westerns em que o conflito, o drama e a ação nascem da relação que as personagens estabelecem com esses cenários, os quais, ao invés de servirem como suportes de uma fascinação primitiva, são valorizados por um movimento que aprofunda as motivações das personagens em função das engrenagens de uma narrativa cujas premissas foram bem estabelecidas. É através dessa intertextualidade do gênero que vemos o estímulo da ação decisiva arremessando tudo – conflito, personagens, drama – aos confins das paisagens que constituem um inventário das variantes dinâmicas do western. Mais do que abrigar, essas paisagens compõem a aventura: o suspense na cena em que homens e mulheres atravessam com suas carroças um desfiladeiro, a exaltação durante a perseguição de foras-da-lei por homens da lei ou de peregrinos por índios em uma estrada poeirenta, as paradas imprescindíveis nesses oásis em que as personagens, agora saciadas por uma fonte de água antes encoberta por alguma vegetação, acumulam novas energias para mais tarde retomarem o trajeto, a fuga, abrindo de uma maneira ou de outra os caminhos da aventura.

Entre tantas variantes ontológicas do gênero, porém, há uma que se destaca. Nela os obstáculos parecem nascer exclusivamente da relação das personagens com a natureza, seja ela hostil ou hospitaleira, cobrindo as trajetórias lineares ou tortuosas de homens e mulheres por todo o território descrito pela aventura, estendendo-se finalmente para muito além do terreno figurativo da narrativa, fazendo com que um meio de expressão afronte as raízes da mitologia antes de se tornar documento histórico. Penso aqui em dois exemplos. No primeiro, dois amigos se juntam a uma expedição que sobe um rio contra a sua correnteza. Durante a viagem, enfrentam saqueadores, índios, a própria natureza, a si mesmos, e a cada novo confronto, a cada novo imprevisto surge um novo desvio que os conduz ao verdadeiro conflito (um dos amigos, o mais novo, identificado ainda no início como um racista, apaixona-se pela filha do cacique de uma tribo indígena). Todos esses impasses, que se acumularam por mais de dois mil quilômetros e duas horas e dez minutos de duração, são resolvidos em menos de dois minutos, dissolvendo-se no ar da noite como a fogueira que consome um velho escalpe que a personagem racista trazia obstinadamente consigo. Essa imagem desencadeia a resolução de todos os conflitos, permitindo que as coisas possam retornar ao seu curso: o mais novo dos amigos amadurecerá; o mais velho continuará em outras expedições a jornada que iniciou com o parceiro que deixa para trás; a filha do cacique, agora entregue à sua tribo, poderá começar uma nova vida com o homem que escolheu para marido.

Seria necessário falar também da história do rancheiro que, atuando como caçador de recompensas, segue no encalço do assassino do xerife de sua localidade. As paisagens nas quais a ação decorre, os acordos que o rancheiro faz com um garimpeiro e um tenente de índole suspeita, a mulher novamente como aquilo que se deve preservar acima de tudo, de qualquer custo, do ouro e até mesmo da autoafirmação viril: em uma obra que se reduziu ao mínimo de elementos constitutivos (cinco personagens com a mesma ambição gananciosa em uma viagem por paisagens faustosas e outras pedregosas) para desempenhar com o máximo de desenvoltura as combinações e as variações desses elementos, no paradoxo de um estilo extremamente lacônico que faz com que as formas que compõem a perseguição sejam ressaltadas pela profusão de uma luxúria mineral, o western chega ao seu ápice justamente pela coesão paradoxal de um estilo que mescla virtuosismo e austeridade. Os nervos crispados do rosto do rancheiro parecem saltar do tronco de algumas das árvores em que descansou, das veias de algumas das rochas nas quais se machucou; a partir do momento em que o bandido inicia as ameaças às vidas de todos com trapaças, armadilhas e traições, rostos, pedras, vegetação convertem-se em uma coisa só. Os cenários naturais do western transformam-se, de uma vez por todas, em espaço mítico.

No primeiro exemplo (O rio da aventura [The Big Sky, Howard Hawks, 1951-1952]), a crônica de uma aventura adquiriu, no curso da narrativa, os contornos do curso de um rio, com suas afluências e suas separações; no segundo (O preço de um homem [The Naked Spur, Anthony Mann, 1952-1953]) a redução paulatina do território abstrato em que se dá o confronto de forças físicas, psicológicas e telúricas permite que um cineasta capital possa meditar sobre o terreno simbólico de todo um gênero. A preferência por uma construção em versos, como a escolha pela narrativa em prosa, entre o conto e a novela, evidenciam uma consciência estrutural que em tudo afasta o western da imagem habitual de um gênero primitivo, fundado na intuição bruta e no empirismo. O que há de comum nos trabalhos de Hawks e Mann é o uso de uma figura de linguagem como a prosopopeia tanto na estruturação do filme quanto na ação e na composição da superfície da imagem. O mesmo ocorre com a elipse nos filmes de Boetticher e Tourneur, o eufemismo nos de Ford, o que apenas mostra o quanto o western foi-se tornando abstrato e formalista com o passar dos anos – em uma palavra, moderno.

Mais do que de refinamento, mais do que de depuração, é necessário falar de modernidade, e mais especificamente de modernidade reflexiva e autocrítica a propósito das mudanças pelas quais o gênero passa a partir de meados dos anos 1940. Nos dois filmes acima (mas não só neles; os exemplos abundam) o western é levado a confundir-se com a descrição das aventuras míticas das narrativas épicas, mas no lugar de deuses, semideuses e outras figuras mitológicas são os troncos das árvores, as correntezas dos rios, as ribanceiras, as colinas, os desfiladeiros e os seus precipícios que interferem no enredo, acudindo ou dificultando a jornada do herói. Já havíamos examinado, mais acima, o recurso à metáfora, outra figura de linguagem, na conclusão de Pistoleiros do entardecer. Estávamos em 1962 quando um jovem cineasta tentava abordar um gênero tradicional não para desenvolvê-lo e modernizá-lo, como Hawks e Mann em 1952, mas justamente para resgatar o que o gênero possuía de mais consistente, de mais arcaico; em suma, para torná-lo clássico. Partindo da etapa de degeneração do velho Oeste para refletir sobre o seu mito, esse jovem autor viu a oportunidade de revigorar o western precisamente pelas características que este, durante a renovação pela qual passou nos anos 1940 e 1950, havia deixado para trás: o maniqueísmo com poucas nuances, a oposição entre o bem e o mal, a luta esquemática do homem empenhado contra o chacal ganancioso. Peckinpah sabia que chegava após o período revolucionário (1946-1959) de um gênero, e tinha a perfeita consciência de que era capaz de fazer o que os cineastas que trabalharam nesse período não poderiam ter feito ou mesmo concebido: se os filmes de Hawks e Mann representavam uma forma moderna do classicismo do western, os de Peckinpah representarão a forma clássica dessa modernidade. “O classicismo”, disse Éric Rohmer, “não é aquilo que pertence ao passado, mas ao futuro.” A trajetória fatal que leva o western de O rio da aventura e O preço de um homem a Pistoleiros do entardecer e O revólver é minha lei (The Gun Hawk, Edward Ludwig, 1963) confirma a justeza da formulação de Rohmer.

Essa modernidade caracteriza-se justamente por um equilíbrio bastante flexível entre virtuosidade e iconicidade, entre invenção e austeridade. Ela se distingue da urgência e da plástica do western clássico, o qual já havia, por volta do ano de 1939, repertoriado todos os fatos históricos ligados à formação do Oeste norte-americano, definindo-se por uma dupla necessidade pedagógica e recreativa. Se, por um lado, o gênero tinha como propósito informar seu espectador de origem (o público norte-americano dos primórdios do cinema) da formação da história do seu país, por outro visava satisfazê-lo com a composição gloriosa da “lenda do Oeste”. A solidez do gênero, aliada à diversidade dos eventos históricos, permitiu que o western se tornasse fecundamente híbrido, fosse num recorte monumental, caracterizado por contrastes violentos e pela pressa do narrador que precisa transmitir objetivamente uma informação histórica valiosa, como um repórter cujo interesse reside em registrar o fato para abrir caminho à lenda (Aliança de aço [Union Pacific, Cecil B. DeMille, 1939]), fosse num recorte mais elegíaco, pastoril, em que os fatos reais da história, os quais se precipitam progressivamente à fatalidade, suscitam no narrador as mesmas emoções sentidas pelo protagonista no decorrer da narrativa, como um repórter cujo interesse se deslocaria do fato para a lenda (a vida de Jesse James filmada por Henry King).


A terra desconhecida


Foi exatamente entre essa cartografia histórica e a criação da lenda do velho Oeste que o western clássico, ainda em 1939, chegou ao seu ponto de inflexão, pondo em questão tudo o que acumulou, tudo o que preservou em um período de pouco mais de 35 anos: a dimensão cósmica e o impulso à ação, o teatro de câmara e as paisagens majestosas, a intimidade e o monumental, a audácia e a moral. Com suas histórias de amor entrelaçadas ao itinerário de uma nação que começa a se formar, os filmes de King e DeMille forneciam o arquétipo do western clássico, enquanto John Ford, adaptando Boule de Suif, sintetizava nos arabescos das relações entre um proscrito, uma prostituta, um médico, um jogador profissional, uma jovem mulher grávida, um vendedor de whisky e um banqueiro a verdadeira protagonista dessa primeira fase do gênero: a comunidade, fosse ela composta de excluídos ou consolidada na sociedade. O western clássico é finalmente conduzido à sua quintessência em No tempo das diligências (Stagecoach, John Ford, 1939).

Nos anos seguintes a 1939 os paradigmas do western saturam-se muito rapidamente, e não tarda para que apareçam filmes que arriscam uma recomposição do espólio do gênero. A partir de um conjunto de filmes bastante distintos, um novo maniqueísmo é introduzido no western, mais intrincado e original que o anterior, menos inclinado aos “contrastes violentos” de filmes como os de DeMille e King. É a partir dos anos 1940 que alguns cineastas, alguns dos mais importantes do gênero, esboçarão uma nova poética. A exposição, a ação, a temporalidade são desaceleradas, o retrato social é menos abrangente, os filmes passam a assumir um tom mais meditativo, o discurso se torna mais reflexivo e o retrato do Oeste acaba, assim, abstraído ao máximo, passando tanto pela epopeia de uma derrota formadora da lenda do Oeste (O intrépido general Custer [They Died with Their Boots On, Raoul Walsh, 1941]) quanto por um pequeno drama desmistificador dessa mesma lenda (Consciências mortas [The Ox-Bow Incident, William A. Wellman, 1942-1943]). Ainda no ano de 1940, com O galante aventureiro (The Westerner, William Wyler, 1939-1940), vemos na ação de um western assaz tradicional a introdução de alguns elementos que serão absorvidos e posteriormente instrumentalizados pelo western moderno: um forasteiro chega a uma cidade e se opõe às ações infligidas pela autoridade local contra um grupo de agricultores. A figura do itinerante sem raízes, que reivindica a sua errância e não se integra de fato ao corpo social, seja com aqueles que aplicam as leis ou com os agricultores que lutam contra a injustiça dos poderosos (juízes, latifundiários), anuncia o perfil do herói do western moderno sem no entanto romper com o alicerce do western clássico (descrição e enaltecimento da ocupação dos primeiros povoados do Oeste).

Análoga à balança da lei, a atuação dessa personagem na trama estabelece uma espécie de equilíbrio dialético no conflito entre a comunidade e a autoridade, representada e usurpada pelo juiz Roy Bean. Neste filme dominado pela indeterminação (das personagens nos papéis que desempenham, do gênero que se vê repentinamente desmembrado dos artifícios que lhe conferiam uma identidade), o que mais se destaca é justamente o elemento que prolonga essa indeterminação para a própria ação dramática: o herói que faz com que o exercício da interlocução entre antagonistas se prolongue o máximo possível. Personagem estranha, esse herói disfuncional, antissocial, que desempenha um papel que não lhe assegura nenhuma simpatia, anuncia os anti-heróis que proliferarão no western do pós-guerra. O papel virtuoso desempenhado por xerifes e outros homens da lei na formação da comunidade, o sacrifício do forasteiro que terminava por se integrar à comunidade provando assim seu altruísmo e o maior dos seus valores, o desapego de si, sua verdadeira coragem: tudo isso já não existe mais, tudo isso já faz parte do passado icônico do gênero. Entre 1940 e 1946, o herói do western se desloca do território da lenda para o território do mito.

O ano de 1946 vê o lançamento de dois filmes, com duas propostas distintas, que permitem ao western deixar para trás o campo mais do que consolidado da hagiografia para se lançar ao horizonte incerto do mito e da poesia. O ceticismo presente no filme de Wyler, manifestado exclusivamente pelas ações do protagonista em função do conflito dramático e dos incidentes da trama, é interiorizado. Pela primeira vez no gênero, uma ambivalência se estabelece não pela caracterização, pelas intenções e pelos dilemas das personagens – isto é, pela figuração do drama –, mas sim pela própria construção do filme, pelas suas possibilidades combinatórias e seus encadeamentos; em outras palavras, a dialética passa a ser articulada pela estrutura do filme, por aquilo a que o filme alude, deixa subentendido ou dissimula, pelos desvios e convergências do seu movimento geral. Nem texto nem subtexto, essa dialética funciona, na realidade, como uma espécie de inconsciente do filme, e tudo – ambientação, caracterização, quadro narrativo – deverá seguir essa dinâmica interior. A linha tênue entre o que ser e o que não ser, entre o que fazer e o que nem se deve considerar, é ultrapassada, e por uma vez os filmes mostram as personagens se tornando o que não deveriam e realizando o que em tempos remotos sequer considerariam. Os maniqueísmos de outrora, que até então serviram de balizas ao gênero, são finalmente deixados para trás. É a partir de então que o gênero parece não mais possuir quaisquer limites.

A partir de Paixão selvagem (Canyon Passage, Jacques Tourneur, 1945-1946) e Paixão dos fortes (My Darling Clementine, John Ford, 1946) o western se lança em um novo caminho: a perspectiva continua a mesma, mas as cores do céu ao fim do dia são outras, como são outros os obstáculos a se superar para se chegar com vida à hora do sol poente. A lealdade, a altivez, a autoridade do homem do Oeste ainda estão lá, num grau extremamente elevado de pureza mítica (na sua primeira aparição em Paixão dos fortes, tocando bois em cima de um cavalo com os céus ao fundo, Wyatt Earp-Henry Fonda nos é apresentado como um semideus), de sublimação poética (de que outra forma descrever o fado de felicidades e fatalidades que marcam a trajetória dos protagonistas de Paixão selvagem?), um grau tão elevado que os heróis podem agora introverter as suas qualidades, dedicando-se a amizades reprováveis com jogadores compulsivos que carregam consigo o espectro da morte, colocando-se na rota do tabu das paixões (os quadriláteros Wyatt-Clementine-Doc-Chihuahua em Paixão dos fortes e Caroline-Logan-Lucy-George em Paixão selvagem).

A revolução de Tourneur e Ford consiste em fazer com que as forças positivas e negativas se interpenetrem, tornando-se, dessa forma, passíveis de desenvolvimentos imprevistos e insólitos. Em Paixão dos fortes o velho Clanton mata o irmão caçula de Wyatt à noite, no meio do deserto, mas na economia narrativa do filme é Wyatt quem, numa visita à cidade, também à noite, responde à violência com mais violência após ter seu corte de barba interrompido por um tiroteio. Earp age dentro da lei, Clanton fora dela, mas ambos em última análise agem da mesma forma, através de uma violência sorrateira, e é isso o que os colocará em rota de colisão, não mais sob a forma de oposição como poderia ser no western clássico, mas dialeticamente, como será a partir de então no western moderno.

Essa maneira de se estabelecer o conflito através de simetrias e não mais de oposições não deixa de ser uma resposta estrutural a uma nova composição de velhas personagens, decorrente de uma reformulação radical da lenda do Oeste, cuja consequência mais imediata se dá na concepção visual dos filmes, que assimilam nas suas formas uma abreviação visionária das distâncias do abismo. Por mais distintas que sejam, as forças positivas e negativas avançam sempre de forma paralela, e as noites intensificam as sombras, presentes e passadas, tanto quanto as manhãs ensolaradas as delineiam. A partir de agora, as vidas das personagens e o próprio mito do Oeste parecem ter como origem e destino a “terra desconhecida” a que Doc Holliday refere-se parafraseando o Shakespeare de Hamlet em Paixão dos fortes, e não surpreende que ao fim dos filmes a sensação que temos é de que mesmo com a ordem momentânea ou definitivamente restabelecida, o que permanecerá nos corações desses povoados são os danos, as ausências, as vidas que foram ceifadas injustamente, e é isso o que marcará aqueles que sobreviveram pelo resto de suas existências.

Sob a forma de aventura, sob os contornos da epopeia, narrando os trabalhos de um herói essencialmente positivo, foi necessário para o western ter atravessado as areias do deserto, ter passado sede, ter passado fome, ter sentido medo, ter acreditado mil vezes que havia chegado aos seus instantes finais para então versar sobre o outro lado da noite, aquele que precisa permanecer na escuridão, que semeia a invenção do mito e que diz respeito, precisamente, ao mundo dos mortos. Não é um paradoxo que um dos westerns mais desoladores seja também um dos mais radiantes: quando Tourneur realiza Paixão selvagem, a “terra desconhecida” já deixou de ser apenas mais um terreno propício à imaginação, à fantasia, um tema preferencial do western entre tantos outros. Nas mãos de Tourneur, o Oeste constitui-se e dissolve-se como um universo circunspecto, composto por peregrinos e pioneiros, jogadores e aldeões, através de histórias que antes mesmo das câmeras serem ligadas já correram o seu curso. O filme reporta-se de forma enigmática a fatos e pessoas que já se foram, que já viveram e morreram, mas que no filme, isto quer dizer no momento em que são filmadas, vivem e morrem no presente, uma vez que pertencem a um tempo que é simultaneamente o passado inalterável e o presente impiedoso. A “terra desconhecida” deixa de ser a visão de um horizonte; ela se converte, em Paixão selvagem, no próprio campo da ação, no próprio corpo pelo qual a obra adquire significado. Marcado por um estilo deliberadamente desconectado da sua matéria, alheio tanto à contemplação quanto à ação pura, o filme descreve trajetórias sinuosas, que vão do extremo laconismo ao lirismo arrebatador, da serenidade à barbárie, e o faz acompanhando, como em outros filmes de Tourneur, as ações de algumas presenças humanas incapazes de conter as forças do mal. É aqui que começa a revolução que impulsionará todo o gênero à reflexão (Matei Jesse James [I Shot Jesse James, Samuel Fuller, 1949]), à autorreflexão (O homem do Oeste [Man of the West, Anthony Mann, 1958]) e à meditação que precede o repouso final (Pistoleiros do entardecer). O western já não filma mais o mito, pois converteu-se ele próprio em mito. A partir de Paixão selvagem e Paixão dos fortes, o gênero passa a contemplar aquilo que Victor Hugo definiu como “a continuidade oculta da natureza infinita”. São esses filmes que lançam o western à noite, última fronteira entre a vida e a morte.


Uma flor que colhe a si mesma comete um suicídio


Um movimento análogo ao que se dará no cinema europeu a partir da realização de Gertrud por Carl Theodor Dreyer em 1964 faz com que o western se precipite à fase decisiva de sua evolução. Doravante a ação estará constantemente de mãos dadas com a tragédia – do protagonista, de uma geração e de um povo. A ligação do western com o espólio das artes – o teatro grego, as lendas bíblicas, a literatura clássica – se estreitará, e os principais realizadores do gênero trabalharão em congruência com as raízes populares das obras do passado, fiéis menos à letra que ao espírito desses clássicos. Filmes como os de Fritz Lang (O Diabo feito mulher [Rancho Notorious, 1951-1952]), Nicholas Ray (Johnny Guitar, 1954), Henry Hathaway (Jardim do pecado [Garden of Evil, 1954]), King Vidor (Homem sem rumo [Man Without a Star, 1954-1955]), Anthony Mann (Almas em fúria [The Furies, 1950], Um certo capitão Lockhart [The Man from Laramie, 1955]), Delmer Daves (Ao despertar da paixão [Jubal, 1956]), André De Toth (Quadrilha maldita [Day of the Outlaw, 1959]) e Gordon Douglas (Rio Conchos, 1964) aceleram a consolidação mitológica do gênero, que agora “poderá narrar toda a história do homem, remontando às origens da sua psicologia (das suas psicoses) e da sua moral, descrevendo a gênese das sociedades que ele quis construir e tudo o que ele teve de sacrificar ou sublimar para alcançá-lo”[1], num empenho de transposição de uma matéria literária rica (Homero, Cícero, Petrarca, Shakespeare) a uma forma cinematográfica nova cujos frutos mais bem acabados fornecerão as sementes para os trabalhos que cineastas como Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Manoel de Oliveira, Marguerite Duras, Chantal Akerman, Raoul Ruiz e Vittorio Cottafavi realizarão com as obras de autores literários como Cesare Pavese, Camilo Castelo Branco, Pierre Corneille e Marcel Proust a partir dos anos 1960 e 1970.

O que essa vanguarda europeia conserva do western remonta aos arquétipos e à quintessência do gênero, àquilo que ressaltou o mito do Oeste e foi ressaltado por ele. No que diz respeito ao arquétipo, há no western poucos trabalhos tão significativos, que se prestam tão bem às aspirações bastante elevadas dos principais nomes do cinema moderno europeu, quanto os nove filmes que Allan Dwan realizou entre 1950 e 1957 e os cinco que Jacques Tourneur realizou após Paixão selvagem. Em Cavaleiro misterioso (Stranger on Horseback, Jacques Tourneur, 1954-1955), o conteúdo dramático de cada cena é completamente subordinado à sua composição plástica, é determinado mesmo por ela. Seja em um momento específico ou no decorrer de uma cena, o sentimento que aflora em uma personagem que não está atrelado ao conteúdo plástico dessa cena acaba interiorizado ou apenas sugerido, permanecendo em estado de latência, e é curioso observar como Tourneur geralmente desloca esses momentos de maior inquietação emocional para os fins dos planos, onde só podem funcionar como recapitulação da cena que vimos ou como prenúncio do curso que a narrativa tomará nas cenas a seguir (o momento em que o armeiro responde ao juiz Joel McCrea que irá testemunhar contra o filho do homem mais poderoso da cidade para logo depois virar o rosto à direção do espaço que sua filha, antiga namorada do rapaz, ocupara durante a cena, e já não ocupa mais).

Esse laconismo, essa redução arquetípica do gênero a algumas sínteses plásticas extremamente densas, afasta o western tanto do romantismo quanto da sua veia mais extravagante, característica da produção do pré-guerra. O cinema materialista de Straub e Huillet, de Akerman e Duras já se anuncia todo nas trajetórias austeras dos heróis dos filmes de Tourneur. A arte de Dwan, por outro lado, é mais concreta, mais carnal, mais luxuriante que a de Tourneur, e isso a torna mais dependente, para acentuar o lado físico do seu esplendor plástico, das convenções do gênero. Impossível esquecer, em A audácia é a minha lei (Tennessee’s Partner, 1955), do buquê de flores com o qual o cowboy interpretado por Ronald Reagan presenteia sua noiva, ou o lance de escadas que separa o salão de jogos das suítes do bordel da madame interpretada por Rhonda Fleming. Neste filme, como em tantos outros westerns que realizou nos anos 1950, Dwan trabalha mais a metáfora e a ironia, onde Tourneur trabalha com a elipse e o fatalismo. Da mesma forma, onde a arte de Tourneur tende ao estranhamento, a de Dwan tende à sedução; onde Tourneur tende à depuração extrema, Dwan tende a uma discreta ostentação; onde Tourneur tende à austeridade, Dwan tende à profusão; onde Tourneur é tomado por receio (do Oeste civilizado com a sua selvageria), Dwan é tomado pela familiaridade (com o Oeste civilizado e as suas aventuras). Em Dwan, o interesse pela invenção plástica se dá sempre no interior de cenários extremamente bem definidos, em um quadro levemente saturado pelos ritos das convenções (as passagens obrigatórias das personagens pelo saloon, a casa de jogos, o bordel, a hacienda, a cadeia). Sua arte é marcada pela acumulação e a interdependência das partes, ao passo que a de Tourneur é determinada pela autonomia de cada elemento e pela ênfase na aniquilação das partes, o que acentua a sucessividade do todo. A estilização é a primeira coisa que se percebe em Dwan, enquanto a forma do filme, a composição do seu todo, é a última; o contrário ocorre no cinema de Tourneur. Entretanto, os dois tratam o western, no fim das contas, de modo idêntico: como um grande jogo composicional, feito de variações, inversões, combinações, mudanças de mão, simetrias, equidistâncias, duplos, contrastes. É dessa maneira que o formalismo de Dwan anuncia aquele, romanesco, das obras de Oliveira, Ruiz e Cottafavi.

Abordando em todas as potencialidades seu conteúdo dramático, o western atinge o ponto culminante do seu desenvolvimento estético, a tal ponto que agora pode rivalizar com as suas fontes artísticas e culturais do passado. Uma grandiosidade nunca antes vista, nem intuída ou vislumbrada, torna-se constante na produção do gênero. Contudo, é através do comedimento, da economia de meios, de um imenso apuro na contenção da forma que os grandes cineastas conseguem ressaltar a grandiosidade do mito, ou o seu revés igualmente grandioso, em meio a esse romance de formação de uma terra. A forma do western se torna extremamente compacta, através de uma busca deliberada pela depuração, e encontra um equilíbrio admirável entre a exigência de concretude imposta pelo gênero e a vontade de abstração compartilhada pelos seus principais autores. Nessas condições, sua quintessência – os doze filmes que Budd Boetticher realizou entre 1952 e 1960, os dez filmes dirigidos por Anthony Mann entre 1950 e 1958 – pôde exaltar por alguns anos esse equilíbrio, pôde vivê-lo, e pôde vê-lo morrer.


Carinhosa contemplação da angústia


O que se segue ao apogeu do western foi definido de forma lapidar por Miguel Marías no texto que escreveu em 1974 sobre Pat Garrett & Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973): ele se veste com as suas melhores roupas, pronto para se despedir. Mas, antes de se despedir, ele passa por outros lugares, trazendo suas melhores roupas em algumas dessas ocasiões, vestindo os trapos que tinha em mãos em outras. O western vaga, se procura, e nos diferentes destinos, nas diferentes localidades por que passa, transplantado, por vezes abandonado, esperando por alguma novidade, alguma aventura que fizesse valer a sua deriva e o seu desgaste (o seu declínio), por vezes sem se reconhecer, o western pôde, pela primeira vez, se ver, e justamente para poder se reconhecer após desaparecer entre todos os trajes que precisou usar.

Sob as vestes da paródia, do pastiche, da elegia, da ópera, do agitprop, do folk, do canto de rezadeiras, da procissão, ele foi tricontinental (O dragão da maldade contra o santo guerreiro, Glauber Rocha, 1969; O vento do Leste [Le vent d’est, Jean-Luc Godard/Jean-Pierre Gorin/Gérard Martin, 1969-1970]), surrealista (Uma aventura de Billy the Kid [Une aventure de Billy le Kid/A Girl Is a Gun, Luc Moullet, 1970-1971]), foi militante marxista do pós-guerra italiano e dos vilarejos mexicanos no movimento zapatista (Gringo [Quién sabe?/A Bullet for the General, Damiano Damiani, 1966-1967], Quando os brutos se defrontam [Faccia a faccia/Face to Face, Sergio Sollima, 1967]), antropofágico (Whity, Rainer Werner Fassbinder, 1971), anacrônico (Não toque na mulher branca [Touche pas à la femme blanche, Marco Ferreri, 1973-1974]), nordestino (Deus e o Diabo na terra do sol, Glauber Rocha, 1964), commedia dell’arte (O pistoleiro e a bela aventureira [Heller in Pink Tights, George Cukor, 1959-1960]), nostálgico (Os dois indomáveis [Wild Rovers, Blake Edwards, 1971], O risco de uma decisão [Bite the Bullet, Richard Brooks, 1974-1975]) e suicida (Meu ódio será sua herança [The Wild Bunch, Sam Peckinpah, 1969]). Na sua terra natal o western se vê em pleno processo de depauperação, acaba submetido a provas cada vez mais ultrajantes e não encontra outra saída a não ser em um desregramento niilista que se assemelha mais e mais a um ato de autoimolação. Em outras paragens, como em Hong Kong e Taiwan (os filmes de King Hu), no Brasil ou na Itália, ele passa por um malfadado, ainda que nem sempre malogrado (os filmes de Glauber Rocha, Sergio Sollima, Sergio Leone, Damiano Damiani, Giulio Questi; alguns filmes de Sergio Corbucci, Duccio Tessari, Tonino Valerii), processo de recapitulação e renovação. Sendo o gênero mais progressista dentre os grandes gêneros do cinema norte-americano, o western já havia, no passado, abordado os limites da alteridade em filmes como Flechas de fogo (Broken Arrow, Delmer Daves, 1949-1950), Flechas da vingança (Apache Drums, Hugo Fregonese, 1951), A lei do mais valente (Yellowstone Kelly, Gordon Douglas, 1959), Um clarim ao longe (A Distant Trumpet, Raoul Walsh, 1964) e A noite da emboscada (The Stalking Moon, Robert Mulligan, 1968), mas ainda não tinha se visto como um outro, na pele do outro. Vendo-se assim, no âmbito de uma reflexão para a qual contribuíram outras cinematografias, outras consciências além da norte-americana, era inevitável que o western acabasse fazendo o que sempre fez desde os seus primórdios: adquirisse uma nova consciência. Em meio à anarquia de proposições, de vestes, de máscaras, de combinações que assimilou, o western só poderia seguir adiante engendrando, justamente, a anarquia. Foi preciso criticá-la, e para isso parar de tão-somente se ver e voltar a contemplar o espaço do Oeste norte-americano, com os seus conflitos e a sua história, para fazer a síntese entre o equilíbrio clássico, o refinamento moderno e a tentação barroca que marcam as principais etapas do gênero, expressando assim, de forma clara, o estágio mais recente da sua tomada de consciência.

A vingança de Ulzana (Ulzana’s Raid, Robert Aldrich, 1972) é um western absolutamente desenganado, e o é de uma forma que apenas o western moderno, dialético, poderia ser: na mais completa serenidade. O autor de O último bravo (Apache, 1954) e Vera Cruz (1954) mais uma vez faz um filme que, sem a preocupação de oferecer uma solução, vai diretamente à raiz dos problemas. Os diferentes lutam porque são diferentes e, portanto, incapazes de entender um ao outro. À luz de um realismo que não poderia vir se não de um gênero que inventou seus mitos para criticá-los, A vingança de Ulzana examina a maneira como na guerra as questões de raça, etnia ou qualquer outro expediente servem apenas como ponto de partida. Um índio pode se tornar um soldado (a personagem interpretada por Jorge Luke) e um soldado, um índio (a personagem interpretada por Burt Lancaster), e ainda assim a guerra será perpetuada pelo ódio cego, o qual se transforma na única forma de comunicação da guerra (o cadáver do filho do renegado Ulzana é esquartejado com requintes de crueldade pelos soldados norte-americanos como anteriormente o cadáver de um soldado norte-americano fora trucidado pelo grupo de índios liderados por Ulzana). Em meio a uma violência que só se agrava, os guerrilheiros se afastam de todo sentido reconhecido e acabam forçados a lidar com a cultura do outro. A falta de consciência em meio à luta, a procura pelo sentido que escapa e os valores colocados em xeque revelam que toda cultura é permutável. A guerra, finalmente, despe o homem de tudo que o caracteriza, reduzindo-o à sua essência de ser humano, para além da sua cultura.

Aldrich, ao não julgar nenhum dos lados, ao mostrar os soldados americanos e os índios como equânimes no ódio e na violência, acaba sendo ao mesmo tempo impiedoso e profundamente dialético. Eis a diferença entre Aldrich e Leone, ou mais precisamente entre a etapa moderna e a etapa barroca do gênero: Leone, quando fecha sua câmera nos olhos de uma das suas personagens, busca a apreensão daquele instante por esse olhar, transforma esse instante em um infinito, em um signo (o duelo final entre Harmonica-Charles Bronson e Frank-Henry Fonda em Era uma vez no Oeste [C’era una volta il West/Once Upon a Time in the West, 1968]), enquanto Aldrich mostra, através do realismo mais incômodo, que é nos olhos do outro e pelos olhos do outro que o universo do inimigo pode ser contemplado. “Só a violência ajuda onde a violência reina”[2]; e de fato A vingança de Ulzana é, junto com Rastros de ódio (The Searchers, John Ford, 1956), o western definitivo dos universos que jamais se reconciliaram.

O velho espaço dos conflitos da formação dos Estados Unidos ainda propicia as reflexões mais instigantes, e é abordado nesse western tardio com o mesmo impulso que levou o gênero às etapas decisivas do seu desenvolvimento (mais tarde Michael Cimino substituirá os índios pelos imigrantes europeus em O portal do Paraíso [Heaven’s Gate, 1980]). Mas isso, nos anos 1970, não é o bastante. Até o fim da década, o western terá deixado de se procurar em meio a todos os seus filões, desdenhando mais e mais as últimas vestes que lhe restaram. Nos Estados Unidos, entre Os três discípulos da morte (The Spikes Gang, Richard Fleischer, 1974) e O último pistoleiro (The Shootist, Don Siegel, 1976), o gênero se precipita a um destino semelhante à da personagem interpretada por John Wayne em O homem que matou o facínora (The Man Who Shot Liberty Valance, John Ford, 1962), e como tal entrega-se definitivamente à melancolia, à lamentação e à angústia de se perceber no interior de um universo fechado que não pode mais evoluir. Paralelamente, o western italiano, desdobramento inesperado do gênero no momento em que este começava a convalescer, declina de forma vertiginosa (são menos de dez produções realizadas entre 1976 e 1978, quase todas de baixíssima qualidade). Com seus mitos completamente estabelecidos e seus mais belos frutos procedentes de uma época que pertence ao passado do cinema e, portanto, do século XX, o western parece chegar ao seu fim.

E, no entanto, ele ainda vaga à procura de alguns corpos, algumas paisagens, alguns resquícios dos elementos que lhe permitiram florescer e sonhar com novos corpos, novas paisagens, novos elementos, os quais talvez lhe permitam fazer com que velhos corpos, velhas paisagens e velhos elementos se tornem novamente verossímeis e naturais. Desarmado e nu, completamente exposto, o western acorda certo dia em um lugar qualquer. Levanta-se, vai ao espelho, se vê e, pela primeira vez em muito tempo, espantado, se reconhece: não por aquilo que foi, não por aquilo que deixou de ser, mas simplesmente por aquilo que é nesse momento, enquanto esse momento perdurar. É o ano de 1978; entre 1964 e 1976 o western italiano vestiu-se e desfrutou daquilo que imaginou ser o western americano, e mais precisamente com aquilo que havia imaginado a partir dele, sem que em momento algum se desse ao trabalho de se fusionar com a sua matriz. O western italiano já havia acabado quando o western americano, após um longo declínio, já tendo iniciado seu processo de extinção, se vê transplantado na Itália, mais precisamente em Almería, vestindo-se com o que encontra por lá. Com bons atores europeus, com um grande ator norte-americano, com o som pós-sincronizado, com as lentes anamórficas criadas por Henryk Chroscicki, que permitiam uma definição espantosa da imagem, da qual os fotógrafos italianos souberam tirar o melhor partido, com paisagens agrestes que poucos olhos vindos dos Estados Unidos haviam contemplado, com uma mixagem de som inferior ao padrão elevado dos grandes estúdios mas perfeitamente adequada a um gênero que corteja o anacronismo, com restos de cenários nas ruas poeirentas e desgastadas de um balneário espanhol, o western consegue tornar “verossímil e natural [...] um conjunto de formas rítmicas codificadas, exaltantes de uma eficácia que enuncia a artificialidade do mito”[3]. O que vemos nascer através do emprego de todo esse material deteriorado, calejado, povoado por bons atores veteranos e alguns rostos novos, é uma forma nova, híbrida, absolutamente impura, que nem o western italiano nem o americano haviam sido capazes de produzir, e que parece tão irremediavelmente ligada aos violinos, à pianola e à voz de Ronee Blakley na trilha sonora de Pino Donaggio quanto relacionada à invenção do western pelas mãos de Ford, Tourneur, Dwan, Mann, Boetticher e ao cinema romanesco, anacrônico, igualmente marcado por um hibridismo rejuvenescedor, que é o de Manoel de Oliveira em Amor de perdição (1976-1978) e Francisca (1980-1981).

A volta do pistoleiro (China 9, Liberty 37/Amore, piombo e furore, Monte Hellman, 1978) é como nenhum western que eu tenha visto e como os melhores westerns que eu já vi. Por uma vez, talvez a última, tudo se passa como se o que assistíssemos – a história com as suas personagens e o filme com o seu gênero – não tivesse destino algum; como se o destino, por uma vez, não fosse a peça-chave de um western, como se o western não precisasse mais inventar mitos para povoar um espaço de lenda; como se o gênero, as personagens, a trama apenas existissem, pela primeira vez. Um western de antes do western, um western que chega ao mesmo tempo antes e depois do western, antes e depois do cinema, um western em que o gênero é instado a deixar para trás sua identidade para que seus corpos, suas paisagens, seus elementos sejam testados segundo sua duração, sua consistência, sua velocidade, em que todas as figuras clássicas do gênero – personagens ou cenários, detalhes ou conjuntos, objetos ou corpos – são instadas a desempenharem novas proezas; um western, em suma, completamente tomado pela incerteza fundamental[4] que fomentou alguns dos filmes mais importantes dos anos 1970 (além de Oliveira, alguns títulos realizados por Adolfo Arrieta, Jacques Rivette, Jean-Claude Biette, Werner Schroeter, Marguerite Duras, Luchino Visconti[5]).

O que há de excepcional em A volta do pistoleiro é que isso tudo ocorre não por conta de uma veleidade do seu autor, mas pelas circunstâncias concretas da realização de um western por um cineasta norte-americano nos despojos dos locais que abrigaram as produções do último grande ciclo prolífico do gênero, na Europa. O trabalho de Hellman em A volta do pistoleiro nasce de uma confrontação do western americano moderno com o western barroco europeu, dando prosseguimento a uma reflexão que havia sido iniciada com A vingança de um pistoleiro (Ride in the Whirlwind, 1965-1966) e O tiro certo (The Shooting, 1965-1966). Ainda mais que o Oeste labiríntico de O tiro certo, urdido a partir das semelhanças entre o western moderno (Dwan, Tourneur, o gênero como campo composicional de infinitas possibilidades, variações, combinações) e a modernidade romanesca dos filmes de Michelangelo Antonioni e Alain Resnais (as elipses, as aliterações, as assonâncias), ainda mais que o Oeste entrópico de A vingança de um pistoleiro, fundado sobre os desdobramentos do choque entre o western clássico (representado pela personagem de Cameron Mitchell) e o western moderno (representado pela personagem de Jack Nicholson), o Oeste onírico de A volta do pistoleiro supera todas essas categorias – clássico, moderno, barroco – para dar voz à mulher, situando-a verdadeiramente no centro da ação, fazendo com que todo o filme, e consequentemente toda a reflexão sobre o western, venha de um ponto de vista feminino. Hellman lança mão de todos os artifícios – cavalgadas de vingança, tiroteios em ruas vazias, fugas românticas, triângulos amorosos, hotéis aconchegantes, o mocinho indo ao resgate da dama indefesa, magnatas das ferrovias contratando pistoleiros fora-da-lei para fazerem seus trabalhos sujos, um grande duelo entre as duas melhores pistolas do Oeste – e faz ressurgir neles a materialidade, a fisicalidade característica do western americano. Mas essa materialidade não está mais ligada às personagens masculinas, vetores do estoicismo, da austeridade, daquilo que o gênero tem de eminentemente atemporal, mítico e até mesmo de desumano; ela emana da mulher – o que de mais valioso havia nessa nova terra, aquela que se deve preservar acima de tudo –, e mais especificamente das suas fantasias, dos seus temores, da sua vontade de pertencimento e da sua necessidade de liberação. Ela é o princípio da incerteza do western, e é através dela que o gênero manifesta aquilo que o liga a uma época (os anos 1820, 1830, 1840; os anos 1950, 1960, 1970), aquilo que ele tem de lírico, erótico e humano.

A volta do pistoleiro mostra, com uma acuidade que não se viu em outro faroeste antes ou depois, como no western tradicional (americano, brasileiro ou italiano; clássico, moderno ou barroco) o que liga o elemento estoico ao lírico, o atemporal ao transitório, o mítico ao erótico é uma mesma aptidão para o trágico compartilhada pelos elementos masculino e feminino do gênero. O trágico, no western, não é apenas mais um elemento entre outros: ele é um imperativo, e às personagens, como aos filmes, resta enfrentá-lo ou resignar-se a ele, uma vez que é impossível evitá-lo. A originalidade do filme de Monte Hellman está na descrição de personagens que só conseguem seguir adiante a partir do momento em que aceitam que terão que viver para sempre, e não mais lutar intermitentemente, com as suas tragédias (a rápida troca de olhares entre Fabio Testi e a imigrante chinesa através das grades de uma prisão ainda nos primeiros minutos do filme parece ecoar, ao invés de antecipar, a última troca de olhares entre Fabio Testi e Jenny Agutter nos minutos finais do filme, segundos antes dele disparar com o seu cavalo, sozinho, finalmente livre, e desaparecer no topo de uma colina). Há um paralelo perfeito entre a situação dessas personagens e a situação de um gênero que só pode seguir adiante na medida em que reflete sobre os caminhos que o levaram até o ponto em que se encontra, num velho Oeste em que os recomeços são verdadeiros novos começos (e nisso o destino das personagens coincide totalmente com a situação do filme no interior do gênero), onde o que fica no rastro do que se deixa para trás são os sentimentos vividos e abandonados, recolhidos e experimentados novamente por alguns enigmas que compartilham por algumas horas de suas existências, ou por todas as suas vidas, a angústia de poderem ou não poderem viver juntas, de poderem ou não poderem se amar, de poderem ou não poderem seguir em frente. A novidade que A volta do pistoleiro traz ao gênero nada mais é que uma forma de mostrar, com os meios mais avançados que o cinema dispunha no ano de 1978, aquilo que é indispensável ao western, aquilo que sempre esteve lá e nunca deixará de estar. Nenhum revisionismo, nenhuma tentação museológica: não se trata de mais um faroeste crepuscular como tantos outros, mas de um faroeste do amanhecer. O western não precisa mais ser revolucionário: ele agora pode seguir vivendo na sombra da sua “incerteza fundamental”, ao som de uma voz feminina, vendo as manhãs se seguirem umas às outras, contemplando carinhosamente suas angústias passadas, finalmente conseguindo presenciar o outro lado da noite, aquele que se refugia nos amanheceres (quando tudo está claro mais uma vez, após tudo ter sido dito e feito), aquele que marca o desenlace das grandes jornadas no céu resplandecente das manhãs.


Notas:


[1] Jacques Lourcelles, Dictionnaire du cinéma: Les films, Paris: Laffont, 1992, pp. 1601-1602.

[2] Subtítulo do filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Não reconciliados (Nicht versöhnt oder Es hilft nur Gewalt wo Gewalt herrscht, 1964-1965).

[3] Sébastien Roulet, “Cinq points de rupture”, Cahiers du cinéma n.° 205, outubro de 1968, pp. 57-58.

[4] Serge Daney, “Que peut un coeur?”, Cahiers du cinéma n.° 330, dezembro de 1981, pp. 36-39.

[5] Flammes (Adolfo Arrieta, 1977-1978), Noroeste (Noroît, Jacques Rivette, 1975-1976), O teatro das matérias (Le théâtre des matières, Jean-Claude Biette, 1977), O reino de Nápoles (Nel regno di Napoli, Werner Schroeter, 1978), Dias inteiros nas árvores (Des journées entières dans les arbres, Marguerite Duras, 1976), O inocente (L’innocente, Luchino Visconti, 1976).

 

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