FEMMES FEMMES, Paul Vecchiali, 1974
por Pier Paolo Pasolini


Vecchiali, Femmes femmes e Pasolini


Os espectadores de Salò, ou os 120 dias de Sodoma (Salò o le 120 giornate di Sodoma, Pier Paolo Pasolini, 1975) nem sempre compreendem o que se passa quando, no meio do filme, Hélène Surgère (Madame Vaccari) e Sonia Saviange (a pianista) parecem desprender-se de suas respectivas personagens para encenar diante da câmera uma singela passagem cômica, réplica exata e literal de uma cena que essas duas atrizes interpretaram em Femmes femmes, de Paul Vecchiali.

Pier Paolo Pasolini ignorava tudo sobre Paul Vecchiali até a Bienal de Veneza de outubro de 1974. É nesta época que ele assistiu a uma projeção do filme de Vecchiali selecionado com três ou quatro outros filmes franceses para o evento veneziano. O entusiasmo de Pasolini após a projeção de Femmes femmes foi indescritível. Ele quis rever o filme no dia seguinte e solicitou que lhe fosse permitido levar a cópia consigo a Roma a fim de apresentar este filme, “comparável àqueles de Murnau ou Dreyer” (dixit P.P.P.) a seus amigos. Para ajudar o lançamento de Femmes femmes em Paris, ele escreveu um texto dizendo a Vecchiali: “Faça dele bom proveito: se ele puder atrair alguns espectadores a mais, ficarei contente.” Esse texto foi proposto ao Le Monde, que o recusou. É mais fácil precipitar-se na direção do sucesso do que arriscar sua reputação defendendo um cineasta que não tinha nem mesmo o mérito de ser “de vanguarda”! Mais perspicaz e menos timorata, a N.R.F. (La Nouvelle Revue française, Gallimard) publicou o texto de Pasolini no seu número 276 (dezembro de 1975). É esse o texto que reproduzimos abaixo, com autorização das edições Gallimard.

Mas Pasolini não pararia por aí. Quando termina o casting de Salò, ou os 120 dias de Sodoma, imediatamente reserva para Hélène Surgère e Sonia Saviange dois dos quatro papéis femininos de seu filme. Ele declara à época da filmagem ao Corriere della Sera: “Escolhi as duas atrizes francesas após ter visto em Veneza Femmes femmes, de Vecchiali: filme esplêndido no qual as duas atrizes, para permanecer no contexto linguístico francês estão ‘sublimes’”. Um dia, durante as filmagens, ele anuncia a Sonia Saviange e Hélène Surgère que quer fazer uma homenagem ao filme de Vecchiali, não uma piscadela para iniciados, mas uma verdadeira homenagem, direta e explícita. Ele solicitou então às duas atrizes que retomassem por alguns minutos suas antigas personagens. Durante uma sequência de Salò elas então se aproximam da câmera dizendo “Femmes femmes” e começam a encenar a sequência cômica como no filme de Vecchiali. Pasolini solicitou igualmente às duas que retomassem a sequência final de Femmes femmes com as risadas e gritos de dor que anunciam a morte de Sonia.

Femmes femmes é o primeiro produto “acabado” de uma busca que durou cerca de 10 anos e que coincidiu particularmente com a parábola “metalinguística” de Godard e de seus jovens discípulos terroristas. Já que se trata de um produto “acabado”, Femmes femmes se propõe – objetivamente – talvez de modo alheio às intenções do autor – a restaurar um cinema clássico no qual a busca “metalinguística” é, ao menos em grande parte, reabsorvida. Vendo Femmes femmes não se pensa constantemente que seu autor esteja fazendo cinema, nem mesmo que esteja nele pensando. O “recuo” em relação à obra é reduzido em Vecchiali a não ser mais que um sentimento difuso, sem pressões nem violências sobre o espectador e, sobretudo, sem exibicionismo. A “lição” – era fatal – é reintroduzida, mesmo que permaneça visível, a faróis baixos. Uma vez desaparecidas as intenções, e então o ato de pôr a obra em discussão enquanto ela está sendo feita, resta a obra, nua e crua. Por se tratar de uma “restauração” (ideológica, não sobre o plano da ideologia, mas sobre o plano da expressividade), o que Vecchiali realiza em definitivo (em um contexto histórico, aliás, muito preciso: Paris no começo dos anos 1970) é uma redescoberta do cinema.

No preto e branco de Femmes femmes adivinha-se os grandes e comoventes modelos originais: pensei em Murnau (A última gargalhada [Der letzte Mann, 1924]), em Dreyer (Gertrud, 1964) ou em um menor: Machatý. Femmes femmes é, contudo – e isso é extraordinário –, um filme justamente sobre o cinema! Ou, mais exatamente, sobre a expressividade audiovisual como um todo. As duas protagonistas são, de fato, duas atrizes: duas atrizes de teatro cujo mito é cinematográfico (como testemunham as fotos coladas nas paredes de seu pequeno apartamento rosselliniano). Elas encenam Racine ou então uma singela cena cômica, mas queriam ser duas estrelas de Hollywood. Estabelece-se assim um ménage à trois entre “realidade”, “cinema” e “teatro”. As duas atrizes são duas atrizes fracassadas descendo a ladeira da degradação social. Elas então são abandonadas tanto pelo pleno de sua profissão quanto pelo “pleno” do seu mito (o cinema). Não lhes resta senão o vazio da realidade. Mas é quando a “realidade” parece mais vazia, insignificante, puramente trágica porque sem razões, que ela é preenchida novamente por essa consciência de si que é a representação: de um lado o cinema, porque seu código linguístico coincide justamente com aquele da “realidade” como representação natural, e porque, além disso, ele é um modelo universal (ao começar a morrer, uma das duas atrizes, ainda que sofrendo de maneira atroz, “imita” a pose desesperada de uma das estrelas hollywoodianas veneradas); do outro lado o teatro, porque as personagens interpretadas contaminam de uma vez por todas quem as interpreta: uma atriz que tenha sido uma vez heroína de Racine não cessará mais de sê-lo. A personagem de um grande autor é sempre maior que o intérprete (frequentemente medíocre, privado de talento ou completamente cabotino), mas ela lhe empresta generosamente sua grandeza. Em conclusão, as duas pobres fracassadas à deriva – a ponto de se tornarem mendigas – são dilatadas semanticamente, em sua realidade, porque elas estão no cinema-teatro. Elas poderiam certamente, como todos os seres humanos, atingir uma “grandeza” própria – e até mesmo uma grandeza majestosa – com seus pobres meios: o fato é que no filme de Vecchiali elas atingem a “grandeza” – uma grandeza majestosa – através da dilatação linguística da qual falei. Mas é essa “grandeza” delas que prevalece no fim. Essas duas infelizes, loucamente excluídas, reduzidas a dejetos humanos, nos aparecem ao fim do filme como duas personagens, eu repito, dignas do Jannings de Murnau ou da Gertrud de Dreyer (para tomar dois exemplos puramente paradigmáticos). Seu amor – que é sensual sem ser lésbico, que é espiritual sem nenhuma retórica espiritualista, que é comovente sem nenhum sentimentalismo – tem a firmeza e a loucura das grandes invenções poéticas dos petits maîtres. Porque evitando justamente os perigos de um psicologismo clínico, de um espiritualismo culturalmente degradante e, sobretudo, da pieguice, ele não apela senão a uma extrema, graciosa e profunda elegância (tão pouco formalista que arrisca ser desajeitada), e isso – que seja permitido a uma testemunha italiana dizê-lo – não seria possível se não no seio de uma cultura como a cultura francesa: jamais o establishment cultural foi representado com tanta inocência e perfeição como com as duas atrizes fracassadas (as extraordinárias Hélène Surgère e Sonia Saviange) de Vecchiali.


(Traduzido do italiano por Jean-Claude Biette. Cinéma n.° 224-225, agosto-setembro de 1977, pp. 150-151. Traduzido por Erick Moro)

 

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