NOTAS AO REDOR DE ANDREA TONACCI
por Lucas Baptista
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Uma leitura célebre do cinema brasileiro: as figurações do subdesenvolvimento por meio da alegoria. A alegoria emerge como a noção de que a realidade não possui uma forma permanente; tem como base uma consciência aguda da transitoriedade e arbitrariedade da representação. O subdesenvolvimento, por sua vez, é caracterizado pela insuficiência, sobretudo no plano industrial; na estética, converte-se em uma postura ambivalente frente às convenções do cinema comercial.
Central nesta análise é a fragmentação crescente dessas formas em filmes na segunda metade dos anos 1960, paralela à negação do sentido teleológico das narrativas. O ponto de partida é Deus e o Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), no qual a superação da crise é projetada no futuro como promessa, além da conclusão da obra. No final de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), a profusão de vozes e níveis temporais conduz à denegação do protagonista, à sua derrota e implicação no desastre instaurado. O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) e O anjo nasceu (Julio Bressane, 1969) acrescentam graus mais elevados de ironia quanto à possibilidade de uma solução; questionada a esperança, seguem rumo à paródia.
Finalmente, em Bang Bang (Andrea Tonacci, 1970-1971), a própria moldura narrativa, sua definição como avanço temporal, com ordem e objetivo bem definidos, é eliminada. A narrativa dá lugar à sucessão sem conexão, a uma sequência de atos performáticos, urgentes ou violentos. Na última cena, em meio ao canto debochado, resta apenas o suporte da representação: a inscrição gráfica do ruído na película.
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Bang Bang inicia com a figura do carro, do movimento direcionado. Logo tomam conta a violência e a discussão sem propósito. A estrutura do filme é organizada ao redor desta alternância, de planos longos e elipses, da imersão seguida pela quebra. O mergulho na diegese é realizado apenas para que ela seja implodida; códigos do gênero policial são emulados, mas logo distorcidos ou destruídos.
A trajetória é semelhante à de Jean-Luc Godard durante os anos 1960. A iconografia urbana, a banalidade das conversas, a onipresença de carros e armas indicam que o cinema industrial está sendo convidado a um jogo. Mais do que Acossado (À bout de souffle, Jean-Luc Godard, 1959-1960), o resultado é próximo de Weekend à francesa (Week End, 1967), que Tonacci parece citar durante a explosão na estrada. Há o mesmo impulso de construir uma cena, de explorar os planos, a dinâmica entre os atores e a câmera, mas gerando com isso o bloqueio das articulações que permitiriam justificar o espetáculo ou dar a ele um direcionamento.
É o gesto agressivo, sintomático do período, que tende a desgastar as formas, a colocar ações num estado bruto, levando ao paroxismo as premissas de um gênero, e com ele toda a estrutura social que lhe serve de base. A afirmação central é a do cinema como um beco sem saída.
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O que faz de Bang Bang o termo derradeiro na análise de Ismail Xavier, e o ponto no qual Tonacci parece ir além do Godard dos anos 1960, é o modo como o contexto histórico é reduzido de modo ainda mais intenso, elevando ao ápice o caráter reflexivo da obra. O subdesenvolvimento não é figurado tematicamente, por comentários ou na articulação narrativa, mas na própria textura espacial e temporal do filme.
Tudo se passa em cenários vastos, porém desertos ou abandonados, repletos de entulhos; tudo o que ocorre nos espaços são esperas e deambulações, repetições histriônicas, gestos gratuitos e interrompidos. O comportamento não é tanto satirizado quanto é revelado no que possui de mais superficial, e ao serem reduzidas as motivações, são dispersas também as conexões entre os eventos. A cena é o lugar da perseguição, do exibicionismo, do truque, mas não do sentido. A cena é o presente da câmera; e a sequência de cenas, nada mais que a ordem dos blocos apresentados. A redução à superfície atinge o limite quando o som da gargalhada é exibido como inscrição na película. A figura do impasse, que permeia toda a duração da obra, depara-se com o limite absoluto da representação.
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A tese de Ismail Xavier sobre as alegorias do subdesenvolvimento surge durante uma pesquisa em Nova York, sob orientação de Annette Michelson. Intérprete fundamental da vanguarda americana, Michelson foi também responsável por efetuar a ligação teórica do cinema experimental dos Estados Unidos com a vanguarda soviética dos anos 1920. Ao refletir sobre o projeto do “cinema intelectual” de Eisenstein, ela reconheceu na linhagem visionária da vanguarda americana a continuidade dessas mesmas ideias. Na passagem ao sonoro, Eisenstein imaginou um cinema capaz de integrar as várias descobertas do período silencioso em uma forma heterogênea, baseada no monólogo interior: o filme como a figuração da consciência. De Stan Brakhage a Hollis Frampton, o desafio foi retomado, adaptado às condições do cinema experimental.
O dado significativo na relação com o cinema brasileiro é que a progressão descrita nas alegorias do subdesenvolvimento ecoa diretamente a progressão descrita por Michelson. Nos dois casos, um problema de figuração é proposto, elaborado em sua complexidade utópica, e tem seu caráter reflexivo elevado até um ponto máximo, atingindo o limite na materialidade da película. Nos dois casos, a orientação espacial e temporal que sustenta a narrativa é progressivamente atacada, e logo abandonada, dando lugar a repetições e variações arbitrárias.
É um arco emblemático do cinema moderno: um projeto formulado durante a crise da chegada do som é retomado no período de ascensão dos cinemas novos e praticamente liquidado na virada para os anos 1970.
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“Esse submundo degradado percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, mutilado pelo crime, pelo sexo e pelo trabalho escravo, sem esperança ou contaminado pela falácia, é porém animado e remido por uma inarticulada cólera.” Paulo Emílio Salles Gomes refere-se aos filmes do chamado “cinema marginal”, realizados em um momento-chave do cruzamento entre a industrialização e a repressão política.
Fragmentada ou codificada pela alegoria, a crise política invade a dimensão formal. A inscrição do impasse, as figuras de repetição e violência, de caos e incompletude, servem para descrever o filme de Tonacci, e sugerem, em grande parte, uma absorção da realidade histórica no formato da obra. Mas estes são termos que poderiam descrever igualmente filmes realizados no mesmo período por alguém como Paul Sharits. O formalismo da linhagem visionária do cinema experimental, sua aparente distância da arena política, seu mergulho na dimensão cognitiva não devem impedir que se identifique a semelhança na esquematização da agressividade. O ano crítico da Guerra do Vietnã e do assassinato de Martin Luther King foi também o ano de T,O,U,C,H,I,N,G (Paul Sharits, 1968), em que o efeito de flicker é afirmado com insistência obsessiva, acompanhado pela banda sonora que repete incessantemente a palavra “destroy”.
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Hugh Kenner recorda que Samuel Beckett fez parte da Resistência na França durante a Segunda Guerra Mundial, e que uma das situações traumáticas nesse contexto envolvia a troca de informações secretas. Beckett deveria ir a um determinado local sem que os alemães desconfiassem de seu propósito; deveria ali esperar, até que surgisse uma pessoa de quem ele nada sabia exceto o nome. Na escrita de Esperando Godot, ao retirar todos os indícios que poderiam referir o espectador à situação particular da França durante a guerra, Beckett teria feito com a sua obra “o que a História faria com ela”, pois com o passar dos anos, das décadas, dos séculos, cada vez menos pessoas reconheceriam aqueles indícios caso ali fossem incluídos. O terror, o isolamento, o absurdo permanecem, mas tornados vetores de uma estrutura, de algo como uma fórmula para a experiência.
A estratégia de Beckett – o recurso à depuração, ao esquematismo, à fragmentação – é frequente no modernismo, de Eliot a Robbe-Grillet, e tanto Sharits como Tonacci recorreram a ela. O que marca Bang Bang ou T,O,U,C,H,I,N,G, mais do que o caráter histórico de uma situação, é essa ressonância das formas sobre um território mais amplo do que aquele ocupado pela obra em seu nascimento. É a insistência na transfiguração da história em nome da autonomia formal.
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Nos anos 1970, Tonacci acompanhou e registrou na Europa a tentativa de Ruth Escobar e Victor Garcia de adaptar os autos sacramentais de Calderón de la Barca. Entre reuniões e ensaios, sua câmera observou os modos pelos quais a performance tentava ganhar vida; como as condições psicológicas e econômicas dificultavam seu avanço; como ao redor desta operação os mesmos agentes interpretavam outros papéis, com menos consciência mas não menos expressividade. É a tensão entre os envolvidos, acumulada na realidade criada perante a câmera, que conduz Jouez encore, payez encore (1975). Como em outros filmes da época que mergulharam no problema da encenação, há uma ênfase na concretude do processo, e na implicação do próprio cineasta neste quadro.
“Meus atores não vão se mover com facilidade indolente por paisagens pintadas e repletas de espólios... Seus rostos não são inchados com a máscara da beleza. Suas ações não vão conduzi-los, incondicionais como autômatos, até um entretenimento violento e sem sentido.” Poderiam ser palavras de Tonacci, mas foram ditas por Yvonne Rainer, na época de seu primeiro longa-metragem, Lives of Performers (1972). Ambos buscaram a presentificação dos gestos, e a observação dos protocolos gerados na tentativa de dar vida a um espetáculo. Ambos estiveram às voltas com a ficcionalização intencional ou inevitável da performance, com a álgebra que emerge de pessoas tornadas personagens por meio de gestos e palavras.
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Tudo o que é rigor e esquematismo em Rainer, é dispersão e surpresa em Tonacci. Seu filme atenta para a energia própria do cineasta no circuito da encenação, mas tudo ocorre como se a dinâmica devesse surgir das interações entre as figuras que compõem a cena, mais do que de uma composição prévia a ser testada ou executada. Rainer é vista pela câmera, é ouvida na trilha (sempre em disjunção com os planos), intervém na imagem com cartelas, de modo que seu controle é a fundação mesma do que acompanhamos. Tonacci, por sua vez, não pode senão correr os olhos pelo espaço, procurar reações às quais se agarrar, gestos reveladores durante um diálogo; ele tem sua presença reconhecida como mais um ponto de tensão naquele universo.
Em certo momento, é dito que a máquina concebida por Garcia para a peça é análoga à câmera que segue a trupe. A máquina teria a forma de um obturador, e os dois dispositivos participariam da empreitada como maneiras de potencializar o trabalho dos atores. Que a máquina sequer seja construída mas que seja, ainda assim, fonte de problemas e desentendimentos, que a câmera termine sendo o instrumento para capturar performances imprevistas, nada disso parece ser reconhecido pelos atores. Na organização do material, a questão se torna incontornável.
Se Bang Bang fechava o vagar pela cidade com a imagem da película, como se bloqueasse a travessia do olhar pela tela, colocando-o frente à pura superfície da imagem, Jouez encore, payez encore descobre seu limite no vértice que estabelece o ponto de vista sobre a cena: na conclusão, Antônio Pitanga se volta para a câmera e chama Tonacci pelo nome. Quando a atenção se volta para o cineasta, o filme chega ao fim.
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As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas.
— Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão
No início de Jouez encore, payez encore, vemos as ruínas do templo de Persépolis, no Irã: planos breves, sem articulação direta com o que se segue. Planos filmados à distância, com a câmera na mão, em vídeo de baixa definição, enfatizando o que há de rudimentar e remoto nas imagens. Neste templo, performances de outra ordem aconteciam num passado distante, e hoje não mais ocorrem. Resta uma estrutura que não serve mais aos rituais que a originaram, reduzida agora a pedras e sombras, o que Tonacci chamou de um “cinema em alto-relevo”, esculpido pelo sol do deserto.
A tentativa de realizar a performance de outro passado é frustrada: dela restam ensaios e discussões tangenciais que a câmera registra como o faria com as cenas escritas. Bang Bang já se passava em um universo no qual a história parecia ter sido demolida, no qual gestos eram gratuitos ou esgotavam a própria energia, e a narrativa era tornada arbitrária. Em Jouez encore, payez encore, a violência toma outras formas, mas o filme termina igualmente com a revelação do dispositivo que mediou a representação.
No ângulo composto por essas obras há um cinema que exercita seus poderes, que busca formatos e contextos para realizar seus objetivos, mas que se depara com limitações e destroços.
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O estatuto da ficção, nesses casos, é posto em xeque, e, junto com ele, é questionada a posição do cineasta.
Na retórica, figurar significa dar outro sentido que não o literal; envolve muitas vezes a distorção, o obscurecimento do sentido literal. A alegoria é exemplar neste processo, e é significativo que Tonacci se posicione no contexto das alegorias com uma espécie de volta à dimensão literal do cinema – a materialidade como ponto final, cercando a ficção e o próprio movimento discursivo. Algo dessa postura contamina sua documentação da performance teatral. Mesmo a metáfora do mundo como palco, tão cara a Calderón de la Barca, é por ele tornada literal.
Na passagem de Bang Bang a Jouez encore, payez encore há o problema recorrente do cinema que absorve o impulso documental e torna-se vigilante quanto ao seu tratamento ficcional. A ficção, paradigma de figuração, torna-se algo a ser parodiado, distorcido, interrompido. Num filme, os que tomam parte em sua composição podem ser exuberantes em sua performance, mas a insistência na duração e na repetição os torna mecânicos, inúteis; no outro, a ficção se realiza a despeito dos participantes, contra seus planos e desejos.
Se a personagem está para o ator como o sentido figurado para o literal, a redução à superfície material é a estratégia comum nos dois filmes.
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As ruínas de um templo da antiguidade, o texto de uma peça do século XVII: referências do passado, e mais especificamente, de ocasiões em que a performance teria um valor ritualístico essencialmente distinto daquele tornado emblemático no século XX. A revisão do passado como estratégia de renovação foi uma das chaves do modernismo na primeira metade do século XX, mas o que caracterizou a geração de Tonacci foi justamente um processo de secularização radical das formas.
No final dos anos 1970, uma viagem à Índia fez com que Yvonne Rainer percebesse, na complexidade da dança Kathakali, o alcance do mito como não apenas uma forma, mas um verdadeiro ambiente no qual ressoam as formas, sejam elas narrativas ou puramente coreográficas. Ao mesmo tempo, Rainer percebeu que não seria capaz de acessar a própria tradição de modo semelhante. Sua hiperconsciência quanto aos procedimentos cênicos e cinematográficos, bem como sua postura radicalmente secular, faria com que mitos e rituais se tornassem hipóteses de trabalho, problemas a serem investigados.
Este confronto, aliado ao caráter gerador da impossibilidade, é um dos elos entre Rainer a Tonacci.
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Quando, no final dos anos 1970, Tonacci deu início a um projeto de registro das culturas indígenas nas Américas, o que esteve em jogo foi algo dessa busca por novos contextos de representação. Ele se deparou com a possibilidade de acompanhar uma expedição para estabelecer o primeiro contato com um grupo indígena, e disse ter considerado esta a oportunidade de “encontrar esse olho que desconhece a imagem”.
A conjunção entre o impulso etnográfico e a crença em uma certa pureza do olhar remete aos primórdios do formato documental no cinema, do qual o Nanook, o esquimó (Nanook of the North, 1920-1922) de Robert Flaherty é o exemplo fundador. Flaherty já havia confrontado a questão de um documento a ser atravessado pelo impulso ficcional, e entre seus herdeiros talvez Robert Gardner tenha sido quem mais frontalmente encarou o problema. As críticas recebidas por Gardner após Dead Birds (1961-1963) atestam o problema recorrente da imaginação que se afirma por uma linguagem da qual seus objetos estão alienados. O que emerge dessa tensão é algo como a hipótese de Whorf adaptada ao cinema.
A postura de Tonacci é distinta. Assim como no trabalho com a trupe de atores, o acompanhamento de uma tribo indígena se torna, para ele, uma vigilância da figuração, uma série de registros que buscam sustentar a proximidade do evento, reduzindo a filmagem e a montagem às suas dimensões literais. A não-interferência se baseia na crença de que, contendo a energia imaginativa em um dos polos, a energia do outro polo será compensada na cena e poderá servir de guia à composição. A revelação do dispositivo ao final do percurso dá lugar à sua afirmação permanente como testemunha.
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O trabalho de Tonacci com as comunidades indígenas o levou à conclusão de que não poderia impor o cinema a uma cultura que o desconhecia. Em suas palavras: “Se a cultura do outro não gerou esse instrumento de reprodução de imagens, somos nós que estamos ditando a ele uma forma de ser, uma forma de representar.” Conscientemente ou não, ele se integrou a uma tradição de cineastas ligados às vanguardas e que viram nas Américas uma espécie de Novo Mundo estético, mas que se descobriram incapazes de investigá-lo adequadamente.
Nos anos 1930, Eisenstein viajou para o México, e nos anos 1940 foi a vez de Maya Deren visitar o Haiti com objetivos semelhantes. Ambos acreditaram poder encontrar algo como uma arte inocente ou intocada por certas tensões da sociedade industrial; acreditaram na possibilidade de estudar essas culturas, e de incorporar seus rituais a uma nova forma cinematográfica. A investigação do gesto, da plasticidade, do ritmo, do movimento, aconteceria na integridade formal de outra cultura, onde o trânsito entre ficção e documentário se tornaria ainda mais evidente pelo caráter estrangeiro dos cineastas. Os dois projetos permaneceram incompletos, abandonados ou interrompidos por questões financeiras. O seu caráter fragmentário aponta para as contradições inerentes às práticas das vanguardas, em conflito permanente com o cinema dominante. Encarando uma cultura distante, à margem das condições industriais ou marcada pelo subdesenvolvimento, o que parecem revelar é a própria condição alienada de sua origem, e a necessidade de uma projeção idealizada do que o primeiro ambiente já naquele momento tornava irrealizável.
O que diferencia talvez Conversas no Maranhão (1977-1983) dos projetos de Eisenstein e Deren é o reconhecimento da incompletude como a moldura inicial, e não como um fator de perturbação. Um filme que parece ser criado à medida em que se filma, que se organiza por acúmulo e reação, é fundamentalmente distinto de uma arquitetura rigorosa, dialética ou coreográfica, baseada em metáforas e manipulações de montagem ou enquadramento. Rejeitando o impulso heroico, idealizado, admitindo de início a própria insuficiência (condição do subdesenvolvimento), a derrota é convertida em vitória.
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Conversas no Maranhão representa a ficção como algo a ser desviado, neutralizado pelo documento, mas Serras da desordem (2006) a trata como algo necessário. Se há uma continuidade no universo retratado, há certamente uma ruptura na abordagem formal.
O filme inclui materiais de arquivo, mas os trata como uma espécie de base histórica, complementando e contextualizando a narrativa central. As retóricas da ficção e do documentário se alternam a ponto de a distinção se tornar problemática ou supérflua; ambas gravitam em torno de uma mesma personagem. O protagonista é visto como por um prisma: câmeras de vídeo, de filme, matérias de jornal, de televisão, fotografias o representam sob vários ângulos. Carapiru se torna o paradigma da mediação, visto e conhecido por máquinas e costumes que lhe são alheios. Ao ser vestido, aprende novos costumes, encena mesmo figuras típicas da autobiografia (corre segurando ele mesmo a câmera, voltada para o seu rosto).
No final, com uma consistência que já não deveria surpreender, Tonacci revela o contexto da filmagem, e a si mesmo como o responsável pela direção e condução da cena de abertura. A opacidade de Carapiru é afirmada pela última vez, como se o excesso de mediações não fosse mais que uma compensação pela impossibilidade de acesso à sua personalidade. No mesmo movimento, revela-se o polo complementar da cena.
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Serras da desordem é um dos grandes esforços de Tonacci para lidar com algumas das questões encontradas em sua trajetória. É uma tentativa de as vencer inclusive pela quantidade e variedade, por uma aposta na multiplicação de formas de representação, de suportes, personagens, vozes, níveis temporais. A circunscrição da narrativa central pela revelação do cineasta sugere uma inclusão da obra em si mesma, como se, para apreender todo aquele universo, também o gesto que o mobilizou devesse ser absorvido. Se a opacidade de seu objeto é o ponto de chegada, a presença do sujeito que organizou a representação deve ser igualmente afirmada.
Nesta via de mão dupla, a forma toma as características de seu protagonista. Há momentos no filme, sobretudo nos trechos iniciais, em que a recusa da centralização cênica, de uma hierarquia ou mesmo de uma orientação espacial precisa, diminui a causalidade entre os planos. O tempo é tornado quase sinônimo da continuidade sonora. Não é apenas Tonacci que evita narrar; a postura que rejeita a teleologia é própria dos índios. Ao tentar segui-los, emular suas ações, Tonacci exibe algo como progressões locais, ações isoladas, autocontidas. A vida de Carapiru não é acompanhada linearmente, parece seguir uma lógica interna, como se sua psicologia devesse ser apenas esboçada, externalizada em toda a construção. Quando, já nos primeiros minutos, surge a ferrovia, é um corte no espaço e na textura da obra, a inscrição do problema territorial que permanecia verbalizado em Conversas no Maranhão.
A figura de Carapiru parece sintomática do cinema de Tonacci, tanto quanto das narrativas que ele sugeriu ou testemunhou durante sua carreira. É admitido que Carapiru age por meio de um roteiro, que suas interações são planejadas ou previstas; mas há uma estranheza em seus gestos e olhares, como se ele mesmo não compreendesse a extensão ou o sentido do que se passa. A concentração da tragédia histórica nesta figura, duplo simétrico do cineasta, a uma só vez central e inacessível, fecha um arco iniciado com Bang Bang e a ditadura militar.
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O contexto em que Tonacci concebe seu último filme é a mais clara indicação do papel que ele representa em sua obra. A proposta, inscrita em um edital, descrevia a organização de materiais acumulados nas décadas passadas em uma nova forma. Projetos iniciados e interrompidos no decorrer dos anos – Os últimos heróis (1966), At Any Time (1988), Paixões (1994) – foram colocados lado a lado com imagens da própria feitura, com vídeos caseiros e fotografias.
Já visto jamais visto (2013) é, portanto, um esforço para dar forma e sentido ao que foi abandonado ou deixado incompleto. Há algo de Prospero na operação realizada por Tonacci: alguém que, no fim da vida, recolheu o que fez de mais importante e compôs a partir disso um relato. Isolado na ilha do cinema, prestando contas apenas à própria imaginação, ele descobriu um sentido nos fragmentos que deixou em seu caminho.
É fundamental, e típico de seu método, que o sentido não tenha sido previamente indicado, ou que não houvesse mesmo a sugestão de que algum formato consistente deveria emergir desses materiais. A própria vida foi tomada como desafio, um território apenas parcialmente conhecido.
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A autobiografia literária tende a ser uma narrativa que toma o próprio autor como tema, proclamando uma veracidade extratextual. O momento privilegiado, em geral, é aquele no qual o autor percebe a sua vocação artística: as metáforas recorrentes são as da leitura e da escrita, os próprios meios utilizados na constituição e recepção da obra.
No cinema experimental, a tradição autobiográfica toma como seu principal objeto a relação entre a vida do realizador e as etapas fundamentais da feitura do filme – a filmagem e a montagem. As figuras típicas são a fotografia, imagem congelada do passado que a obra põe em movimento; a encenação revelada, explicitada como ação pensada para a câmera; a intervenção sonora e plástica sobre um material, afirmando a presença de uma consciência na organização dos elementos. Em Já visto jamais visto, Tonacci recorre a todas elas.
Por esses meios, a autobiografia efetua o seu movimento de objeto composto a reflexo do eu que o compõe. Partindo de uma memória pessoal, retrabalhada pelas condições fílmicas, interage com as regras próprias do dispositivo, com a história de suas formas. Na absorção da vida pelo cinema, a narrativa ganha um valor epistemológico.
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Este é o eu que foi... Ou ainda, este foi o eu que foi naquele momento e que nunca mais será.
O eu que é, afinal, não dura mais que um único fotograma.
— Jerome Hill, Film Portrait (1972)
É um dado significativo na história da vanguarda americana que a autobiografia tenha chegado a um ponto de desgaste ou deslocamento irônico nos anos 1970. Hollis Frampton evitou utilizar a própria voz em (nostalgia) (1971), recrutando Michael Snow para distanciar a leitura do texto da presença de seu autor. Alguns filmes de George Landow, como Remedial Reading Comprehension (1970), distorcem ainda mais claramente a retórica autobiográfica.
Outros deslocamentos, relativos às origens familiares ou geográficas, permearam essa tradição. A orfandade de Stan Brakhage se converteu em seus filmes numa verdadeira obsessão pelo registro da família, do nascimento de seus filhos e de seu cotidiano. Jonas Mekas, forçado a emigrar da Lituânia durante a guerra, não apenas retornou à terra natal como compensou o desterro pela fundação de uma comunidade de artistas e entusiastas por toda a sua filmografia. Tonacci, nascido na Itália, radicado no Brasil, encerrou a própria obra com um retorno à terra de seus pais, e tornou seu filho um segundo protagonista nesta jornada.
É nas passagens e nos reflexos entre essas dimensões que Já visto jamais visto elabora sua narrativa. O resultado é uma insistência na temporalidade do próprio filme, como mais do que o suporte em que se inscreve a vida, como o meio no qual ela adquire sentido.
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“Imagens do inconsciente” poderia ser outro nome para o filme. Como no último documentário de Leon Hirszman, há uma exploração das imagens na vida de uma pessoa, uma jornada que se expande em algo como um inconsciente coletivo. Fragmentos destacados, isolados de seu fluxo original, adquirem uma carga simbólica. Ambientes e objetos antigos surgem como se a distância em relação ao passado fosse de repente superada, como se entre as guerras e um café da manhã não houvesse décadas, mas uma janela de vidro.
As imagens parecem atravessar os planos e as épocas, os formatos e modos de exposição. Pequenos detalhes, gestos, coisas que talvez fossem banais ou transitórias em outros contextos acabam ganhando um valor original, se tornam luminosas. No que parece ser a ficção escrita por Tonacci, seu filho Daniel vê um pássaro morrer, chora, e (após um corte) o pássaro volta à vida. No que parece ser um vídeo turístico, Daniel viaja de avião com Tonacci, e (com um corte) o avião se torna um pássaro. Na ficção, o garoto encontra uma chave; no vídeo turístico, o pai usa a própria mão como chave durante uma viagem. O resultado é uma espécie de teia criada a partir do cruzamento dessas vidas, como se o sentido das ações fosse acumulado, brevemente articulado por gêneros narrativos.
A distância entre o sentido literal e figurado, entre documento e ficção, entre a vida e o cinema, aos poucos é reduzida. A vida se funde com a feitura das obras, invade as imagens, é recontextualizada por elas.
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As transições no filme tendem a não definir de imediato o caráter das imagens umas em relação às outras. Às vezes é evidente que se trata da produção de um filme, ou de uma gravação caseira; em outros momentos, a distinção é menos clara. As intenções originais submetem-se à reorganização do material, e um trecho pode suceder o outro como um sonho, uma lembrança, um comentário.
Nas primeiras cenas, quando Daniel dorme (quando interpreta uma criança que dorme), vemos a equipe à sua volta e sabemos que se trata da filmagem de Paixões. A passagem à cena seguinte é feita por uma fusão, técnica associada à mistura ou travessia de níveis da representação. Em seguida há uma cena de aventura, gênero associado à descoberta. Nessa exploração, no que poderia ser um sonho, a terra é revirada por um trator, expondo um vaso antigo, praticamente numa alegoria do processo inconsciente e da descoberta de um material enterrado pelo tempo, princípio do filme que agora assistimos.
Quando, mais adiante, a câmera exibe objetos de cena desta filmagem, vemos o livro The Thief of Time, de Tony Hillerman, que Tonacci parece ter considerado a base para Paixões. Daniel representa, em contraste com o investigador interpretado por Joel Yamaji, uma força lúdica, imaginativa, exemplo de uma inocência desbravadora. No livro de Hillerman, o protagonista é um índio Navajo.
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Em Jouez encore, payez encore, víamos ruínas de um antigo templo, o espaço onde se dava a arte no passado, onde o mito encontrava a sua forma adequada a toda uma comunidade, e onde os artistas modernos não encontravam senão desentendimentos. Em Já visto jamais visto, o retorno adquire uma carga distinta.
Acompanhamos a jornada de Tonacci à sua terra natal, como numa descoberta de sua cultura: fotos de sua família e pinturas de castelos antigos se alternam e se substituem. Paralelamente, acompanhamos a jornada de Daniel, conduzido pelo pai como se por ritos de passagem. Tonacci o leva a jardins e museus como se ali devessem aprender quem são e de onde vieram. Acompanhamos sua jornada como uma reminiscência, enquanto seu filho é conduzido como se por uma longa iniciação. Visitam um local onde são exibidos quadros e instrumentos de tortura, onde observam juntos as formas monstruosas tomadas pelo sofrimento. Caminham num jardim repleto de estátuas, representações de ideias e sentimentos do passado, agora cobertas de musgo, como se o tempo as tivesse nivelado, tornando-as tão naturais quanto a paisagem. Quando o garoto entra na boca de uma das estátuas como em uma caverna, o pai o acompanha.
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A história em Já visto jamais visto é reformulada segundo uma lógica interna, como se nos fossem dadas mais as ligações entre momentos dispersos do que sua representação clara e contextualizada.
A relação com a vanguarda americana é nítida, e com ela Tonacci entra no terreno da figuração da consciência como primeiro teorizado por Eisenstein. É um filme que enfatiza seus processos constitutivos, mas não tanto o imediatismo da cena, de seu caráter documental; em vez disso, são as intervenções sonoras, as sobreposições e mudanças de formato, os saltos no tempo e no espaço que ganham a frente. Ao colocar em primeiro plano a textura mesma da representação, o tecido dessa realidade, e o fato de que acompanhamos sua metamorfose, a consciência inscrita em sua organização parece emulada mais diretamente.
A fusão entre sonho e realidade, entre memória e presente, se torna a chave do monólogo interior, e a fusão entre pai e filho, entre sujeito e objeto, a tônica do discurso.
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Quando surgem no filme as imagens da juventude de Tonacci, quando são invocados os termos e o contexto do filme policial, isso faz as vezes de um interlúdio. É o contraste da metrópole com o campo e as cidades antigas. Há ali o reconhecimento de uma euforia e de um companheirismo que pareciam cercar a produção do cinema marginal. Vemos jovens armados, vemos Tonacci filmando esses jovens. Os cortes enfatizam o ato de filmar e de encarar a si mesmo nos materiais antigos, deixando as cenas dessas possíveis ficções como fragmentos entrevistos. Vemos notícias e menções a governantes, a heróis de quadrinhos, a fugas e automóveis, ao universo de Bang Bang. O encadeamento de olhares, a invasão do rosto pela câmera, os riscos e intervenções na película, o espelho e a máscara mortuária sugerem um período agônico ou tortuoso, um confronto com a própria juventude num esforço de autoconhecimento. O plano de um brinquedo leva a uma sequência de figuras monstruosas ou malignas, imagens cada vez mais abstratas, até que surge na tela uma inscrição: “medo de tudo”.
Mais adiante, retornamos ao making of de Paixões, e Tonacci pede que seu filho leia de um livro um trecho sobre o medo. No texto, pergunta se há uma causa para o medo, e se é possível fazer algo para ajudar os outros a lidar com o medo. Tonacci pede que Daniel conte a história do livro para a câmera. Ele mesmo inicia a narração: “Era uma vez...”
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Aquele que sonha dá as costas para aquele que dorme; o sonhador não é o adormecido: às vezes, sonha que não está sonhando, e portanto que não está dormindo; outras vezes, sonha que está sonhando, e assim, por meio deste vôo até um sonho mais interior, se convence de que o primeiro sonho não é um sonho, ou então sabe que é um sonho, e acorda em um sonho semelhante, que não é nada além de um vôo interminável fora do sonho, uma queda eterna num sonho semelhante...
— Maurice Blanchot, “Sonhar, escrever”
Ver a si mesmo como uma personagem, uma imagem no fluxo de imagens – “um objeto entre outros objetos”, nos termos de Freud –, é uma das condições fundamentais da memória. É também uma das condições inevitáveis do cinema, a arte que se tornou a metáfora de nossa época para a memória encarnada, tornada objeto, passível de manuseio, análise e reflexão.
O truque, a ilusão, a magia no cinema incluíram desde Méliès a figura do realizador como parte do espetáculo, e não foram poucos os cineastas que encontraram na mistura de autobiografia, ensaio e reminiscência a forma ideal para representar a complexidade do trânsito entre a vida e a arte, a realidade e o sonho, o documento e a ficção. Cocteau, Welles, Fellini e Godard foram exemplos dessa linhagem. Sobretudo no final de suas vidas, reconheceram que o cinema os definiu tanto quanto foi definido por eles, e que a investigação da própria existência tem no processo criativo um meio privilegiado. Com Já visto jamais visto, Tonacci se juntou a eles.
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