O SENTIDO DO SOM SILENCIOSO
por Stan Brakhage



Méliès alcança a musicalidade das formas em movimento através de ritmos de deslocamentos corporais (a dança advinda de sua habilidade mágica) e de ritmos de aparições e desaparições (sua harmonia do inesperado sempre sendo esperado, como um grande compositor que sempre surpreende com cada desenvolvimento de um tema, ainda que evoque a sensação de que cada evolução harmônica não poderia ter ocorrido de nenhuma outra forma). Méliès cria talvez o primeiro ritmo silenciosamente audível na história estética do cinema. Ele é um percussionista em uma selva de objetos de cena, no alvorecer da arte de filmar.

Griffith, com o uso controlado da ação em primeiro plano, frequentemente evoca um sentido auditivo tão grande quanto o visual – através da montagem paralela, alcança uma espécie de orquestração de sons de recordações, como um clarão de relâmpago a lembrar o trovão, como folhas freneticamente em movimento e uma árvore balançando a evocar o vento, como a expressão facial a falar no lugar do tom da voz (e a qual, na maioria das vezes, tem maior importância dramática em um trabalho de arte visual em movimento do que aquilo que é realmente falado). Na sequência no tribunal de Intolerância (Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages, 1916), o martelo do juiz pronuncia o destino do herói de maneira muito mais eficaz do que os subtítulos “Morto, Morto! MORTO!” As cenas de batalha de Griffith estão vivas com a sensação de som, seja a briga de espadas em Intolerância, cortada para embates visuais em primeiro plano, sejam as nuvens de fumaça em O nascimento de uma nação (The Birth of a Nation, 1915), cortadas de um primeiro plano para uma revelação de todo o campo de batalha com seu senso de reverberação. Diferentemente de Méliès, Griffith tramou seus ritmos para criar um sentido paralelo de tempo para imagens correlatas – o escudo redondo de Belshazzar em Intolerância cortado para o impacto circular do aríete contra os portões da cidade, marcando pictoricamente o local exato em que o escudo do rei estava. O sentido visual é sempre subserviente às proposições das correspondências dramáticas, pois Griffith era essencialmente um contador de histórias acompanhado de uma musicalidade da visão à moda dos bardos escandinavos.

Eisenstein, tendo feito seu aprendizado a partir do estudo de Griffith, desenvolveu o sentido do som do cinema mudo, inicialmente empregado de modo emocional em O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925; a explosão de fumaça dos canhões de Potemkin respondendo ao massacre da escadaria de Odessa, em montagem paralela primeiramente com o leão de pedra adormecido, depois com o leão semilevantado, e por último com o leão com sua boca de pedra aberta – um rugido esculpido), e posteriormente utilizado como sensação sonora para expressar uma ideia puramente intelectual em Outubro (Oktyabr, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927; a sobreposição do dedilhar das harpas a um orador pacifista intercalada com as batidas de pés impacientes dos revolucionários). O ritmo, controlado por e dotado do sentido associativo do som, forma a estrutura integral da famosa sequência da escadaria de Odessa. A batida em sentido vertical das botas dos soldados constrói o ritmo até a liberação da fumaça de seus rifles, um crescente staccato de pisadas e estrondos, tocando como um tambor nos sons associativos da mente, um ritmo indomável por fim respondido pela envolvente fumaça branca e pelo símbolo esculpido do rugido. Eisenstein, em seu ato de orquestrar, cria mais do que um acompanhamento. Seja emocional ou ideológica, a estimulação é resultante da memória visual e do áudio silencioso. Ele joga com a capacidade da mente de relacionar instantaneamente os elementos na montagem pela memória associativa, sintonizando as imagens a seus contextos simbólicos.

Muitos dos diretores posteriores do cinema mudo utilizaram o sentido do som para transmitir o efeito da fala muda. Em Ouro e maldição (Greed, Erich von Stroheim, 1923-1924), McTeague e seu amigo são acompanhados visualmente durante a difícil conversa deles no restaurante pelas cordas vibrantes e teclas chanfradas de um piano mecânico. O espalhafato do instrumento indica à mente receptiva o tipo de música que está sendo tocada, o que é quase tão eficaz quanto conhecer a peça musical, enquanto a movimentação vibrante do interior encordoado do piano e o movimento mecânico externo das teclas, com seu ritmo e seu contexto relacionado, parafraseiam visualmente o dramatismo da cena. As imagens são especialmente eficazes porque são liberadas de suas funções de fontes de som real. Da mesma forma, em A paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, Carl Theodor Dreyer, 1928), o silêncio do inquisidor questionando Joana nos dá a impressão de que ele murmura “Était-il nu?” no ouvido dela, os lábios dele como um frasco, o olho dela ao lado de seu ouvido como o receptáculo. Em um filme sonoro, a voz dele teria que seguir seu discurso, como um eco, para que este mesmo poderoso efeito fosse alcançado.

A criação de um sentido musical ou sonoro em um filme mudo exigia uma inventividade que nunca foi igualada na história do desenvolvimento do cinema sonoro. A criatividade com o som foi perdida com a complacência superficial do ajuste mecânico do som real à ocorrência visual, como se a imagem de um raio fosse real e, portanto, devesse ser seguida pelo som do trovão, como se as imagens das folhas em movimento estivessem tremulando para fora da tela e devessem ser acompanhadas pelos seus barulhos talvez esteticamente inúteis, como se as silhuetas bidimensionais dos atores que aparecem na tela fossem seres humanos em situações reais e o público esperasse acompanhar cada afirmação deles, mesmo não tendo coisa alguma a dizer, em vez de compreendê-los simplesmente no ato da fala, ouvindo apenas aqueles diálogos cujo significado falado é essencial naquilo que deve ser predominantemente uma obra de arte visual, se é que podemos chamar de arte. Da mesma forma, pelo fato do ritmo ser o elemento emotivo básico em todas as supostas músicas “atmosféricas” de um filme, com outros elementos sendo mal utilizados, se tanto, o ritmo do movimento visual, bem como o ritmo da duração da tomada, pareceria um método muito mais direto – ainda que mais difícil – de evocar o estado desejado de sentimento do que a justaposição de acompanhamento orquestral real, que é empregada ilógica e artificialmente na maioria dos filmes dramáticos modernos.

A evolução do sentido do som em sua relação estética com as imagens que o criaram não teve paralelo no desenvolvimento do som e imagens reais. O sentido do som que as imagens sempre evocam, e que pode se tornar parte integrante da experiência estética do filme sob controle criativo, muitas vezes torna o som real supérfluo. Com base apenas nessa premissa, pode-se desqualificar quase todos os filmes sonoros se os levarmos em consideração como obras de arte. Não há definição de uma obra de arte que admita a superficialidade.


(Film Culture n.º 21, verão de 1960, pp. 65-67. Traduzido por Mario Fernando Franciscon)

 

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