LA VALLÉE CLOSE, Jean-Claude Rousseau, 1986-1998
por Luís Miguel Oliveira



Le mouvement des atomes est eternel [...]
Jusqu’a ce que le hasard les rapproche.

Ça devient obscur, lá.

— Excertos do
texto dito pela voz off do filme


Jean-Claude Rousseau não é um jovem, mas é novíssimo – La vallée close, uma das descobertas mais sensacionais deste ciclo[1] (se não for a descoberta), vai deixá-lo bem provado. Apesar de já filmar há cerca de vinte anos, Rousseau manteve-se num anonimato quase total até há muito pouco tempo, quando começou a tirar cópias em 16 mm. dos seus filmes (todos rodados em Super 8), permitindo-lhes uma maior divulgação. Nascido em 1946 em Paris, começou por estudar direito antes de uma estadia em Nova York lhe revelar o cinema de vanguarda. De regresso à França, dedicou-se a uma carreira artística e à publicação, em diversas revistas, de artigos sobre o cinema de Robert Bresson (juntamente com a pintura de Vermeer, a grande paixão e inspiração de Rousseau). Em 1983 completou a sua primeira curta-metragem (Jeune femme à sa fenêtre lisant une lettre), rodando em seguida mais duas, Venise n’existe pas (1984) e Keep in Touch (1987). Sempre em Super 8, Rousseau rodou em 1989 a sua primeira longa-metragem, Les antiquités de Rome (1989-1991). La vallée close, com material filmado entre 1986 e 1994 (mas só definitivamente ampliado para 16 mm. em 1998), acabou por ser o filme que atraiu atenções sobre Rousseau, muito por força das suas passagens por Locarno e pelo Festival de Belfort (1999), onde ganhou o Grande Prêmio. Pelo meio, o “alto patrocínio” de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que escolheram La vallée close para acompanhar uma projeção de Othon (Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour, 1969-1970) na Cinemateca Francesa.

Rousseau filma, como se disse, em Super 8, e isso não é nem uma questão de pormenor nem uma contingência (ou uma “limitação”) ditada pelo amadorismo. Pelo contrário, La vallée close é um filme que pensa o Super 8 e que integra as particularidades do formato na sua estrutura – de alguma maneira os 16 mm. é que são uma contingência imposta pela necessidade de tornar os seus filmes mais visíveis. Não há, na transposição, nenhum processo nem nenhuma intenção de escamotear as propriedades originais: repare-se nos “flashes” negros que pontuam todo o filme, e que assinalam o fim das bobinas de 2 minutos e meio do Super 8. La vallée close, deliberadamente, é uma colagem de bobinas de Super 8 que preserva, em vez de apagar, a passagem de uma a outra. Diz Rousseau: “tenho vontade de dizer que não há montagem (...). Cada bobina de Super 8 fica inteira, intacta, de uma ponta a outra (...). Quando duas bobinas se entendem entre elas, nada as pode dissociar nem tocar em mais nada.” Esta é uma questão fundamental, que faz com que Rousseau também diga que a película de Super 8 “est la matière même du film”: La vallée close é um filme de combinações, prolongamentos e justaposições que têm por princípio último a unidade de tempo e de espaço registrada em cada bobina. No sentido mais concreto (mais “físico”) do termo, cada bobina é um bloco espacio-temporal que deve permanecer indestrutível e impermeável a quaisquer rupturas das suas propriedades. Por isso, também, Rousseau prolonga a sua “proibição da montagem” falando de uma recusa do raccord em detrimento do accord – ou seja, um elogio da contemplação e da não-intervenção, uma defesa do seu papel de cineasta como alguém que descobre ligações entre as imagens mas que em caso algum as pode fabricar. O mesmo para o som: o accord pode dar-se “entre uma imagem e um elemento sonoro que não foram necessariamente registrados no mesmo lugar. (...) Mas também aí não se trata de montagem: há montagem quando se procura, há acordo quando se encontra. Coincidências felizes.” É como se Rousseau defendesse uma espécie de aleatoriedade nas relações entre imagens e sons, ainda uma maneira de preservar a integridade (a “independência”) de umas e de outros. O sentido dessa relação é algo que aparece a posteriori, e que se torna “justo” por simples razões de coexistência, pelo fato de entre esta imagem e este som se ter criado um vínculo concreto assente nas suas propriedades mais físicas, ou seja, mais sensuais – ainda Rousseau: “La vallée close é um filme erótico, uma relação de ordem amorosa entre as bobinas de película e os sons”.

La vallée close é um filme que privilegia a contemplação e o registro, mas que o faz de uma maneira que torna todas as qualificações um problema insolúvel. Pode-se dizer que é um documentário, mas também se pode dizer que é ficção – e nisto, curiosamente, o filme de Rousseau levanta o mesmo gênero de questões que o último filme de Pedro Costa, No quarto da Vanda (1998-2000), havendo ainda a coincidência de ambos se apropriarem de “paradigmas” da leveza e da mobilidade (o Super 8 num caso, o DV noutro) para os contrariarem em absoluto: o plano fixo é regra em La vallée close, e todos os enquadramentos são rigorosamente compostos (dizer que se trata de “pintura” é, como se vai ver, muito mais do que uma força de expressão). Dito isto, La vallée close é um filme dividido entre a imanência do mundo (de que se deixa embeber de forma extraordinária, como se pode ver logo nos primeiros planos da floresta e da vila) e qualquer coisa de muito mais indefinível, que se lhe escapa permanentemente – e essa “coisa indefinível” pode muito bem ser simbolizada no plano mais recorrente do filme, o da fabulosa imagem da entrada da gruta de Vaucluse filmada como se fosse um “buraco negro” que se pode ver mas não se pode atravessar, ou como se fosse uma espécie de “portal” para outra dimensão. Será o tempo, essa dimensão? É verdade que a impressão mais forte que os planos fixos de La vallée close deixam (mesmo os aparentemente mais “neutros” e descritivos) é um sentimento de passagem do tempo, como qualquer coisa que se perde – extrapolando um pouco, dir-se-ia que os planos do filme duram o tempo necessário ao seu “esvaziamento”, até a criação no espectador de uma angustiante sensação de “perda” de qualquer coisa que se tornou irrecuperável. Rousseau talvez se sirva para isso das qualidades “fantasmáticas” do Super 8, e da associação, tornada irresistível pela profusão de home movies familiares realizados nesse formato, a um tempo longínquo. Mas também produz esse efeito, de modo inequívoco, por exemplo pela insistência nas imagens daquela casa em ruínas, e pela utilização de um texto em off que reenvia constantemente para um passado distante. E cria-se assim a contradição que serve de motor (“dramático” ou “poético”, pode-se escolher) ao filme: La vallée close filma o “concreto”, mas filma-o enquanto sinal de um inatingível que passou – como se Rousseau chegasse tarde, como se o cinema estivesse condenado a chegar tarde, no momento em que já só há ruínas para ver. A obsessão de filmar o que está é, afinal, uma busca desesperada de algo que teima em permanecer ausente: o elemento humano, singularmente afastado das imagens do filme, mas incessantemente referido (procurado) pela voz off do filme, inclusive em termos afetivos (pode-se adivinhar, a partir daí, uma história de desencontros amorosos). La vallée close, que tanto lembra Straub como, por motivos diferentes, algumas experiências de Jean-Daniel Pollet (Le Horla, 1966, por exemplo) ou de Marguerite Duras, é no limite um filme sobre essa ausência e sobre o “esvaziamento” do mundo que ela opera – ou seja, uma crônica de uma imensa solidão, expressa em planos tão poderosos e tão sintéticos como os que nos mostram um telefone de parede que insiste em não tocar ou uma cama de casal desfeita só de um lado.


Nota:


[1] Luís Miguel Oliveira escreveu este texto na ocasião da primeira exibição de La vallée close na Cinemateca Portuguesa, em um ciclo intitulado “Novíssimo cinema francês”, no qual também foi exibido Sombre (Philippe Grandrieux, 1998). [N.E.]

 

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