DEUX FOIS, Jackie Raynal, 1969-1971
1. (Aproximativo e incompleto) Sinopse/Inventário. Ela anuncia ao espectador o conteúdo (iminente) do filme enquanto come febrilmente uma salada ao mesmo tempo em que olha, aflita, à direita e à esquerda do quadro. Vemos uma menininha em um trem. Um espelho nos observa. Em uma farmácia superexposta, uma mesma cena se repete. Uma mulher corre. Seus cabelos ao vento, o filme é mudo. A cidade. As pessoas surgem como nos filmes dos Lumière. Um homem sai do nevoeiro. Um homem se olha e nos olha. Ela está sentada em um canto, ela faz xixi através das suas meias escuras. Substituições. Leituras. Caretas[1].
2. Históricos. Espantosa aventura a deste filme. Produzido (ainda) no início dos anos 1970 de maneira (franco) mecênica por Sylvina Boissonnas (a qual, rica e jovem herdeira, produziu na mesma época, sob o abrigo das produções Zanzibar, os filmes de Patrick Deval, Serge Bard, Philippe Garrel, assim como um filme realizado por ela própria – Un film [1970] – que ainda hoje permanece praticamente invisível e que corre muito bem o risco de se tornar mítico se isso continuar[2]). Realizado por uma (ex) “mais jovem montadora da França” através de uma aposta (um a priori terrivelmente terrorista para a época): fazer um filme – o contrário, em suma, daquilo que ela tinha, todo ano, o hábito e o dever de fazer – em que praticamente não houvesse montagem.
A aposta foi realizada: trinta planos, algumas raras palavras[3]. Mas tudo isso não mereceria ser contado se Deux fois não fosse o filme que é: uma das obras – e eu peso as minhas palavras nestes tempos de inflação verbal – mais fortes e, ao mesmo tempo, mais enigmáticas que nos foi dada a ver.
3. Inflações. Mais precisamente: um filme que não se pode resumir, um filme que se volatiza uma vez a projeção terminada, um filme que é impossível fixar na memória, um filme que não existe[4]. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que existem filmes (a existência deles, entenda-se aqui material, é certamente a única certeza que podemos ter deles) que não existem, que ao menos não existem como os outros: quando os vemos não os vemos verdadeiramente, porque passamos uma boa parte do tempo nos perguntando se de fato vemos aquilo que estamos vendo, o que significa que os vemos mal e que procuramos (já) outra coisa que não está lá (que falta), outra coisa que a partir de então não conseguimos mais separar daquilo que efetivamente vimos. Na lembrança esses filmes se apresentam como fragmentos, precisos, e suas impressões fortes mas – necessariamente – vagas. O que acontece se por aventura, por curiosidade ou paixão, decidimos ir e ver mais de perto, se vemos esses filmes duas vezes? Não acontece nada. Na realidade, isso recomeça como antes, às vezes recomeça melhor. Aquilo que estava na tela ainda está na segunda visão, aquilo que não estava não está também, mas ainda acompanha muito obstinadamente o filme. Uma prova suplementar que não há segunda vez, que tudo se dá na primeira. Tudo já está dito na primeira vez – desde o primeiro plano –, mas sabemos que o que começa com “era uma vez” não tem nem fim nem começo ou, se preferirmos, só exige ser contado mais uma vez.
4. Generalidades. Tentemos explicar. Nos filmes de Fritz Lang (para tomar um exemplo clássico) há – como nos filmes de quem quer que seja – aqueles de que nos lembramos, que nos marcaram, e aqueles que esquecemos. O grande segredo (Cloak and Dagger, 1946) é um dos que eu tinha esquecido. Ao revê-lo recentemente na televisão pude compreender por que esse filme era “esquecível” – antes: podia sentir que o filme se esquecia, se apagava, literalmente diante dos meus olhos, ao mesmo tempo em que o achava – e o sentia – mais impressionante que muitos dos seus outros filmes “inesquecíveis”. Como um filme que aniquila a si mesmo pode provocar esse desejo feroz de aniquilar os outros, esse desejo de proclamá-lo mais belo, mais forte, mais cativante? Jean-Claude Biette, por exemplo, que é um cineasta do inefável – daquilo que não pode ser descrito –, possui uma maneira bem singular de responder quando questionado sobre o sentido – escondido – de uma sequência de um de seus filmes: ele descreve minuciosamente o que se passou – portanto aquilo que se viu, aquilo que se pôde ver – sobre a tela. “O mistério permanece.” Tratam-se de filmes que se reduzem exclusivamente àquilo que percebemos na tela (não há nada exterior, off, nada existe além do que é efetivamente filmado, mostrado, visto). A opacidade de tais filmes faz com que a imaginação se encarregue de travesti-los. Eles são, dessa forma, metamorfoseados, revestidos, embaralhados. Esses filmes desafiam a memória e ao mesmo tempo se integram às nossas lembranças: algumas imagens a mais, esquecidas, reprimidas, que se encarregarão de sobressair, como se nós mesmos as tivéssemos vivido – mas essa não é a verdade? – no nosso próprio passado.
5. Três vezes. Foram-me necessárias três projeções – ao longo de vários anos – para eu aceitar que não compreendia nada de Deux fois. A não ser talvez isto: a impressão – rara, extraordinária – que alguma coisa é mostrada pela primeira vez encontra-se apenas em filmes como o de Raynal, que funcionam no modo do “é uma vez só e isso é tudo”. Aqui não é tanto a mulher que nunca vimos dessa forma, mas o homem: quando ele se expõe à câmera, sob todas as suas faces e facetas, ele está mais nu do que nunca, sem por isso cessar, por mil ardis e maneiras, de parecer belo (à imagem do diabo), de se maquiar com a única maquiagem que ela suporta que ele use, de ser o rosto – e o corpo – que ela deseja, que ela deseja ver nele.
Duas precisões ainda: 1) o filme pertence, por uma boa parte, àquilo que foi chamado de “underground” e que abrange um tal bazar (pode-se incluir tanto Akerman quanto Warhol, Yvonne Rainer, Moullet e Dwoskin) que será necessário que nos decidamos a explorar mais adiante os subsolos.
2. Deux fois é um dos filmes mais precisos sobre a paranoia. Vê-lo é (também) uma experiência traumatizante. Os olhos (invisíveis, claro) que vigiam e rastreiam a jovem mulher (sem lhe deixar um segundo de trégua, o que a aturde) nossos olhos, portanto, nos olham.
Notas:
[1] Uma revista americana, Camera Obscura, acaba de dedicar uma boa parte – apaixonante, mas o resto o é igualmente – de seu primeiro número a Deux fois. É graças a eles – elas, aliás – que devo agradecer por poder reconstituir quase cronologicamente alguns dos fragmentos desse filme. É possível encontrar nesta revista uma descrição detalhada dos 32 “segmentos” que constituem Deux fois, assim como um resumo fotográfico. (Para referências sobre Camera Obscura consultar a publicidade publicada no nosso n.º 275).
[2] Eu não sei se existe uma cópia de Un film e se ainda é possível vê-lo. Quanto ao filme de Jackie Raynal, agora é possível procurá-lo, pois ele figura – desde há pouco tempo – no catálogo da “Coopérative des Cinéastes” (cf. Cahiers n.º 273 e 274).
[3] A aventura não acaba aí. O filme obtém em 1972 o grande prêmio do Festival de Toulon/Hyères. Depois, e apesar dessa recompensa, ninguém teve a coragem de distribuí-lo. Foi necessário que se passassem, a despeito de inúmeros entusiasmos, quase sete anos para que, graças a esta “Semana dos Cahiers”, o filme comece, timidamente, a ser visto.
[4] Convém não confundir o inventário que inicia este artigo com uma sinopse: é uma série de impressões em bloco, que indicam que a estrutura do filme é como a de um catálogo. O próprio filme – não há como dizê-lo suficientemente – é então entalhado na película.
(Cahiers du cinéma n.º 276, maio de 1977, pp. 51-52. Traduzido por Bruno Andrade) |
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