UMA HISTÓRIA PROVÁVEL
Este artigo foi apresentado em um painel no dia 3 de setembro de 1976, como parte do “Fórum Internacional de Cinema de Vanguarda” durante o Festival Internacional de Cinema de Edimburgo. Posteriormente ele foi publicado na revista Idiolects n.º 6 (junho de 1978). O painel do qual eu era integrante – junto com Peter Wollen, Manuel DeLanda e Simon Field – tratava de filme e narrativa. Lembro-me de Paul Sharits a certa altura afirmando que tudo era narrativa, até mesmo o seu trabalho, o que certamente atrapalhava qualquer possibilidade de uma argumentação sutil. Foi nesta conferência que eu conheci Laura Mulvey e a ouvi falando sobre o seu hoje famoso ensaio Visual Pleasure and Narrative Cinema. Eu tomei coragem para perguntar à pobre mulher “e quanto à espectadora feminina?” como se ela já não tivesse sido colocada sob grande pressão em relação a esse tema. Ela replicou que lidaria com isso em um ensaio posterior, o que, é claro, ela fez à sua maneira costumeira de tirar o fôlego
Em um sentido estrito – e eu sempre preferi definições estritas porque dessa forma sabemos em que pé estamos – em um sentido estrito, um estado narrativo de ações existe quando ao menos uma de certas condições está presente, como indicações de causalidade, coerência temporal ou psicológica, ou resolução dramática dependente de uma clara restituição do tempo passado ou futuro. Narrativa exige que objetos, eventos e personagens estejam conectados, mesmo que ligeiramente, por outra coisa além de uma proximidade fortuita no tempo e/ou no espaço ou uma similaridade morfológica e iconográfica.
A narrativa produz uma expectativa e um efeito diferente daqueles produzidos pelas destilações, transmutações e perambulações entre significado e som que caracterizam a poesia. Ela também se opõe à parataxe, um método de ordenação que, em sua ênfase na discrição das coisas, presume sua afinidade ou equivalência a priori, uma afinidade que não é sempre imediatamente evidente. Evidência e qualificação não são tão cruciais em um método paratático para organizar materiais quanto para um método narrativo. Este continua a nos sobrecarregar e a nos intimidar com suas hierarquias de fatos contingentes, suas hordas de prioridades psicológicas, detalhes circunstanciais e circunstâncias extenuantes; seus excessos de prudência – ou de irresponsabilidade, conforme o caso – em revelar ou esconder particularidades de locação e tempo; seu potencial para produzir infindáveis especulações, discursos sobre o real e o plausível, identidades trocadas, e complicações crônicas, sem mencionar assassinato e caos. É alguma surpresa que tantos artistas tenham se ancorado tanto nele e dado tão pouca atenção a ele?
Eu suponho que sempre existiram aqueles trabalhos que podem legitimamente não ser chamados nem narrativos nem não-narrativos, trabalhos que compartilham tanto características narrativas quanto não-narrativas. Em trabalhos desse tipo, deve haver um instante no qual você percebe que o ponto de partida, o centro de gravidade ou o modo estilístico oscilou, forçando-o a mudar sua atenção e olhar e ler com um novo quadro de referência. Por exemplo, uma série de eventos contendo respostas a quando, onde, por quê, quem, dá lugar a uma série de imagens, ou talvez a uma única imagem, que, na sua obsessiva repetição, ou duração prolongada, ou previsibilidade rítmica ou mesmo na sua imobilidade torna-se desligada da história e entra neste outro domínio, seja ele catálogo, demonstração, lirismo, poesia ou pura pesquisa. O trabalho agora flutua livre de um clímax definitivo, pote de ouro, desfecho, verdade futura, existindo somente no presente.
Ou talvez um trabalho que começa sendo meditativo, imbuído com ressonância, clima, ou investigação de seus próprios procedimentos e premissas, de repente muda sua densidade ao apropriar-se de elementos do melodrama. E sempre poderá haver a possibilidade de uma fusão simultânea ou de uma coexistência desses modelos ao invés da sucessão que eu descrevi.
Se eu puder alternar para um relato mais pessoal por um momento, deixe-me inserir aqui que o meu próprio envolvimento com formas narrativas nem sempre foi feliz ou incondicional, e sim mais frequentemente um flerte que um compromisso. A razão reside parcialmente na natureza da forma predominante do filme narrativo. A tirania de uma forma que cria a expectativa de uma resposta contínua para “o que vai acontecer em seguida?” perseguindo fanaticamente uma inexorável resolução na qual todas as coisas encontram sua colocação justa ou correta no espaço e no tempo; uma tirania como essa, tendo já atingido sua epifania nos filmes (penso em Gertrud [Carl Theodor Dreyer, 1964], Sedução da carne [Senso, Luchino Visconti, 1954], A grande testemunha [Au hasard Balthazar, Robert Bresson, 1966], O desprezo [Le mépris, Jean-Luc Godard, 1963], A caixa de Pandora [Die Büchse der Pandora, Georg Wilhelm Pabst, 1929]), uma forma como essa tem inevitavelmente semeado mais oportunidade para resistência, ou ao menos evasão, que para emulação.
Minhas próprias incursões dentro desse território resvalam em um tipo de banditismo, cuja necessidade evoluiu lentamente a partir de um dilema imposto pelo assunto. Este dilema se tornou mais claro para mim na realização de cada um dos meus três filmes, apresentando a si mesmo na forma de uma questão básica, ainda que orientada distintamente, colocada – e nem sempre respondida – por cada um desses filmes e tendo, eu espero, uma aplicação mais vasta que o meu próprio trabalho.
A apresentação do conflito sexual em filmes ou a apresentação da experiência do amor e do ciúme podem ser revitalizadas através de um posicionamento estudado ou do deslocamento de clichês emprestados da telenovela e do melodrama? Estados específicos da mente e emoções ou sutilezas de interação social podem ser transmitidos em filme sem serem atrelados ou sendo apenas provisoriamente atrelados a particularidades de lugar, tempo, pessoa e relacionamento? E um assunto como esse pode ser apresentado sem ser “encenado” – tanto no sentido teatral quanto no psicanalítico – por meio de diálogos simulados e gestos? Rostos como os de Katharine Hepburn e Liv Ullmann são os únicos veículos para expressar dor e paixão? Pode um filme alcançar impacto comparável por outros meios que não esses rostos? E por que diabos alguém iria querer alcançar um efeito comparável àquele encanto da arte e da natureza que é o sorriso desaparecendo do rosto de Hepburn?
O espectador pode aprender a abandonar suas expectativas narrativas uma vez que essas expectativas tenham sido suscitadas por elementos narrativos em uma obra? Modos de operação devem ser consistentes no interior de uma obra? Um tema que lida com fenômenos perceptivos e fotográficos deve ser sequencialmente – ao invés de narrativamente – ligado a material que já foi investido com “narratividade”? Quando alguém pode dizer – para citar a leitura que Annette Michelson fez do diário de Eisenstein outro dia – “Experimento externo à tese é impossível”[1] e quando tal experimento é possível, ou apropriado? Por outro lado, quando é apropriado usar uma tese narrativa? Por que se preocupar com isso, afinal? Qual a conexão entre leões e judeus? Qual é a relação entre um homem se afastando de uma fila de pessoas e um carro distante saindo de trás de um grupo de leões em primeiro plano?[2] E uma fotografia de uma loira oxigenada domadora de leões de 45 anos não nos conta tudo que precisamos saber sobre a “merda do mundo”?[3]
Que tipo de pistas dizem a nós, o público, qual o momento de ler uma imagem – ou série de imagens – narrativamente, qual o momento de lê-las em parataxe, e qual o momento de lê-las iconograficamente? O que constitui continuidade nos filmes e que tipo de pistas nos levam a “começar de novo”? Por que essa urgência no nosso cérebro aculturado e purulento que nos impele a encontrar conexões entre o que nós simultaneamente vemos e ouvimos, entre o que nós acabamos de ver e o que estamos prestes a ver? O que constitui unidade em um filme? A narrativa e o além-da-narrativa podem existir simultaneamente na mesma tomada, criando uma espécie de efeito estroboscópico no que se refere ao significado?
Pode algo – digamos, um tigre – em um nível narrativo ser ao mesmo tempo ilustrativo da vocação da heroína, simbólico do perigo desconhecido, representativo de espécies ameaçadas – e ao mesmo tempo funcionar como um objeto de padronização coreográfica e cinemática? Ou este algo – digamos, um tigre –, uma vez atribuída a sua raison d’être narrativa, recusa a ser relegado ao que pode ser em comparação um limbo de pura construção formal fílmica? Ou, por outro lado, pode essa construção fílmica infundir vida nova em uma velha história, criar novos significados e níveis de interpretação? (Ver Critical Mass[4]).
É completamente quixotesco entreter noções de um trabalho que pode acomodar tanto um cone de luz quanto uma fatia de torta sendo comida por um prisioneiro político brasileiro fugitivo no San Juan Hilton às cinco e meia da tarde no dia 5 de agosto antes de encontrar seu cunhado, que tem as chaves para...
Técnicas geracionais ou polivalentes de reprodução de material pictórico, cinestésico e comportamental, ou técnicas para difundir e fraturar a representação do real – técnicas como essas vão promover uma aproximação entre o filme não-narrativo e a irritação-esperma-privação-intelectual que tão frequentemente acompanha filme-como-pura-pesquisa? Mas agora é melhor eu parar de fazer perguntas. Eu já comecei a manipular o jogo. E ademais, não é como se já não existissem muitos filmes que alcançaram isso – pelo menos por momentos a fio.
Notas:
[1] Ver October n.º 2.
[2] Estas referencias são ao meu filme Kristina Talking Pictures (1976), exibido na noite passada.
[3] Referência a um artigo entregue por Adriano Aprà no primeiro dia, no qual ele disse “Filmes estruturalistas não estão preocupados com a merda no mundo”.
[4] Hapax Legomena III: Critical Mass, um filme de Hollis Frampton, 1971.
(A Woman Who – Essays, Interviews, Scripts. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1999, pp. 137-140. Traduzido por Vinícius Noronha. Revisado por Gustavo Salvalagio e Fábio Visnadi) |
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