FILME COMO POESIA
Assim como o poema lírico é a manifestação direta de sentimentos e pensamentos através de palavras, com as possibilidades expressivas do enredo, do movimento, da música, do diálogo e da imagem atenuadas, servindo apenas essa pura expressão, a função lírica do filme se dá através do seu próprio idioma disponível. Ele pode conter elementos narrativos, como em Autumn Fire (Herman G. Weinberg, 1930-1933), ou nenhum, como em The Dead (Stan Brakhage, 1960). Pode consistir inteiramente de imagens pictóricas, como At Land (Maya Deren, 1944), ou pode utilizar música, emprestada como em On the Edge (Curtis Harrington, 1949), ou especialmente composta como em Romance sentimental (Romance sentimentale, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1930). Pode incluir diálogo, como em Hägringen (Peter Weiss, 1959), ou narração, como em Os pivetes (Les mistons, François Truffaut, 1957), a qual pode ser ela mesma um poema, como em Loony Tom, the Happy Lover (1951), aquele deleite de James Broughton ao qual a expressão de Lorca, “aleluia erótico”, se aplica com tanta felicidade.
Os dispositivos usados por si só não tornam o filme um poema lírico. O efeito que eles criam, sim. Os filme-poemas mencionados acima se diferenciam nas técnicas que empregam, mas todos têm em comum o objetivo da comunicação direta de sensibilidades e visões.
Expressão similar pode ser encontrada em filmes que não sejam verdadeiramente poemas. Nesses casos, a comunicação carece da franqueza, da intimidade, da qualidade pessoal caracteristicamente lírica. Isso é resultado da presença de outro elemento formal, mais forte, através do qual a poética apenas é filtrada.
Um bom exemplo disso está em A paixão de Joana d’Arc (La passion de Jeanne d’Arc, Carl Theodor Dreyer, 1928). Quando Joana está prestes a ser torturada para confessar, nos são dadas as suas impressões da atmosfera no calabouço, dos juízes assustadores ali reunidos, do torturador, dos instrumentos. Recebemos os mais fortes efeitos visuais de como se sentem seus pés acorrentados; o horror cambaleante de seus passos rumo à câmara de tortura; sua vertigem ao desmaiar, em uma montagem de cavaletes, estacas e rodas de tortura horríveis, que pairam ameaçadoramente e giram nauseantemente. No entanto, mesmo que estejamos propensos a sentir essas emoções profundamente, a qualidade do filme-poema não está lá. A expressão não se dá por si e para si mesma, mas sim para um complemento à progressão narrativa, à ação que sempre permanece dominante. Ela constitui uma intensificação da situação mais do que uma pura expressão de medo ou desespero.
Além disso, e de forma ainda mais crucial, nós estamos vivamente cientes de que esses são os sentimentos peculiares de Joana, e não necessariamente os do cineasta, ou os nossos. As correntes estão nos seus pés. Nós a vemos em uma situação muito específica, e não podemos aceitar seus sentimentos como puros, mas apenas em função do seu infortúnio particular. Isto, é claro, está relacionado ao ponto de que considerações narrativas necessariamente condicionam a expressão emocional. Mas isso se estende ao ponto de que não se trata apenas de uma questão da história distrair ou diluir a poesia; de que quando os instrumentos de tortura giram, sentimos que eles estão fazendo isso na mente particular da menina Joana; e que mesmo sob as mesmas condições, outra pessoa poderia reagir de outra forma, poderia gritar ou chorar de raiva ao invés de desmaiar.
Essa qualificação não existe no verdadeiro filme-poema, onde a expressão é absoluta e universal, quer a aceitemos ou não. Se rejeitamos tal expressão, o fazemos porque não podemos sentir que ela é válida para nós mesmos, ou que comunica efetivamente a visão do cineasta. Mas se rejeitamos a expressão em A paixão de Joana d’Arc, isso acontecerá porque não podemos sentir sua paixão como sendo válida para ela, embora, é claro, nossa aceitação disso dependa de sentirmos isso parcialmente.
Isso é ainda mais verdadeiro na cena mais simbólica e lírica da queima de Joana, onde vemos com ela o poderoso executor, os juízes inquietos, flores sobre a terra, uma mãe amamentando seu filho, pássaros que voam enquanto as chamas são acesas; tudo vigorosamente intercalado para nos mostrar suas impressões, refletindo seu medo e seu arrependimento pela vida perdida. Mas, novamente, elas não são totalmente nossas, não temos nenhuma reivindicação real sobre elas, nem o próprio artista. Eles pertencem a uma personagem específica em uma situação específica.
O mesmo pode ser dito de partes de Os incompreendidos (Les quatre cents coups, François Truffaut, 1959), notadamente quando o garoto, que foi pego devolvendo a máquina de escrever roubada, está sendo levado para a delegacia. Vemos através de seus olhos, através da parte traseira do carro, as ruas noturnas passando; uma visão das coisas da vida sendo implacavelmente perdidas. Mas essa passagem pungente tem o seu impacto completamente dependente de circunstâncias específicas, e embora se trate de uma narrativa carregada de poesia, Os incompreendidos não pode ser considerado um filme-poema.
O filme-poema deve ser primordialmente desenvolvido em termos de expressão pessoal, “abstrata”, e só em segunda instância a narrativa, ou qualquer outro efeito formal, pode ser introduzida.
Um excelente exemplo de poesia fílmica que ocorre dentro de outro contexto formal, e até incorpora personagens reais, é o episódio em flashback no início de Noites de circo (Gycklarnas afton, Ingmar Bergman, 1953). Nesta, uma das maiores passagens de qualquer filme, somos apresentados a uma visão apocalíptica, na qual um palhaço e sua esposa treinadora de ursos se transfiguram em criaturas simbólicas de poesia.
O filme abre com dois homens conduzindo uma carroça levada por cavalos em um circo itinerante do século XIX. Para passar o tempo durante o amanhecer, eles conversam sobre um incidente escandaloso que ocorreu vários anos antes, envolvendo o palhaço Frost e sua esposa Alma. Uma fusão leva ao flashback.
Soldados treinam perto de uma costa. O único som é o ritmo dos tambores, o ocasional tiro de canhão, e alguma música militar “alegre”, um pouco dissonante. Nenhuma voz é ouvida nessa cena. A luz é calorosa mas não brilhante, de um brilho opressivo.
Alma passeia em direção aos homens, vestida com roupas listradas chamativas. Eles a observam maliciosamente. Ela passa um chapéu no qual eles jogam algumas moedas. Ela dança cancan para eles, levantando a saia e revelando as roupas de baixo. Um oficial acaricia o seu bigode. Canhões são mostrados atirando falicamente. Alma começa a tirar as suas roupas. O oficial de bigode envia um garoto, que corre para as tendas de circo para informar Frost do mau comportamento de sua esposa. Frost, com perplexidade “cômica”, ainda com parte de sua maquiagem de palhaço no rosto, segue o mensageiro.
Quando chega à costa ele vê Alma na água, nua, divertindo-se com vários soldados. O resto do pelotão, sentado nas rochas ao longo da praia, observa. Frost chama Alma. O garoto esconde as roupas dela. Ela finalmente ouve e, envergonhada, começa a sair da água. Mas ela não pode deixar a água como está. Além da sua nudez, as rochas são muito pontudas para seus pés.
A música para. O canhão cessa. Silêncio. Apenas os tambores ressoam, uma única batida de tempo em tempo, acentuando o ritmo visual.
Frost tira suas vestimentas e entra na água, agora grotesco em ceroulas. Ele traz Alma para fora, ela agarrando-se ao pescoço dele, seus braços em torno das nádegas dela, sua nudez parcialmente escondida pelo corpo dele. Vemos seus pés sangrando por causa das pedras.
Ele a carrega para fora da praia. Cambaleia com ela por uma encosta. Os soldados os seguem, olhando com divertimento selvagem. Outras pessoas se reúnem em volta do espetáculo. Vemos o rosto agonizante e envergonhado de Alma, enquanto o de Frost sofre com a degradação de sua esposa e a sua própria, além das feridas e o cansaço físico. Sua maquiagem de palhaço parece com cortes em seu rosto. Vemos seus pés ensanguentados. Intercalado com tudo isso está o céu ofuscante, ligando as imagens humanas em fusões dolorosamente lentas. Frost cai, Alma o levanta novamente, e ele retoma sua jornada e seu fardo. Batidas de tambor intensificam o silêncio. A turba ainda observa o trôpego Frost enquanto ele consegue finalmente voltar para o terreno do circo, onde desmaia. Ele e sua esposa são ajudados por seus companheiros. Um dos integrantes do circo olha para o céu e esfrega a testa. Vemos o céu intenso. Uma fusão encerra o episódio.
Dessa forma, personagens reais em uma situação narrativa assumem significado mítico. Eles são absolutamente imbuídos com a visão do cineasta, e o episódio perde todo o sentido literal, transfigurado em uma parábola do sofrimento gerado pelo amor humano em termos religiosos. Tanto o homem quanto a mulher sofrem as chagas de Cristo e uma mútua ascensão do calvário, em meio às turbas zombeteiras: o homem carregando não uma cruz de madeira, mas uma de carne – sua mulher.
Todos os elementos existem aqui para o impacto direto da visão do artista. O efeito da narrativa como tal, ou o ritmo do corte, é completamente absorvido na poesia. Somos cativados primariamente pela emoção como ela se apresenta, envolvidos com a paixão absoluta. De fato, o filme inteiro desenvolve esses símbolos em diferentes contextos e personagens, e é ele próprio um longo, embora menos puro, filme-poema.
Podemos apreender do que foi exposto que quando o filme-poema utiliza personagens e situações “reais”, ele deve transformá-las em símbolos dos pensamentos e sentimentos do cineasta. Se eles mantiverem mais do que uma sombra de suas identidades, existirão demasiadamente por conta própria, demasiadamente como narrativa, “realista” etc., e muito pouco como expressões líricas puras. Por essa razão, os exemplos de A paixão de Joana d’Arc e Os incompreendidos não são filmes-poema, nem se pretendem como tal. Uma transformação total de formas e matérias em meras manifestações do estado de espírito do artista é o que é requerido.
Antes de considerarmos as implicações que essa necessidade teve em termos de escolas significativas de filme-poema, devemos, em preparação, perceber certos paralelos definitivos entre dispositivos da palavra associados a dispositivos poéticos e visuais que têm sido usados no cinema.
A metáfora pode ser encontrada na procissão fúnebre em Terra (Zemlya, Aleksandr Dovjenko, 1930) onde, mantendo o tom harmônico entre homem e natureza que perpassa o filme, um galho passa levemente sobre o rosto de Vasili morto enquanto o seu caixão é carregado por uma árvore. O efeito dessa imagem é: “O ramo é uma mão acariciando a juventude morta.” Novamente, Science Friction (Stan Vanderbeek, 1959), uma sátira do “progresso” moderno, o final corre assim: o “mundo” é mostrado flutuando no espaço (um pequeno modelo da terra iluminado na escuridão); uma mão entra no quadro, pega o mundo, e o remove; em seguida vemos uma frigideira quente; a mão entra segurando o mundo, e bate na frigideira; outra mão entra, e com a primeira, ela puxa a casca da “terra”; e dela cai a clara e a gema de um ovo, estrelado, na frigideira para fritar. O efeito dessa visão é: “O mundo inteiro foi reduzido a apenas um (desrespeitado, frágil, pequeno e dissecado) ovo”.
Algo semelhante é utilizado em Ouro e maldição (Greed, Erich von Stroheim, 1923-1924) onde, durante o casamento de Trina e McTeague, uma procissão fúnebre é vista ao fundo pela janela. O efeito: “O casamento é como um funeral.” De novo, Um cão andaluz (Un chien andalou, Luis Buñuel, 1928-1929) começa com Luis Buñuel afiando uma navalha; uma fina camada de nuvem passa pela Lua; Buñuel pega a navalha e passa pelo olho de uma jovem, que libera uma secreção sobre o seu rosto. O efeito (além do choque): “Uma nuvem se movendo através da lua é como uma lâmina de barbear cortando um olho”.
Já encontramos o símbolo em Noites de circo, mas outras duas instâncias esclarecerão ainda mais esse aspecto. Primeiro temos o símbolo direto, como em um Pudovkin mudo, O fim de São Petersburgo (Konets Sankt-Peterburga, 1927), onde em um período de escassez de alimentos para civis, durante a guerra, em meio a filas para o pão e motins, vemos uma criança chorando. A câmera se move até o seu rosto para que sua boca aberta preencha toda a tela. A boca da criança, assim, torna-se símbolo da fome, a agonia infligida sobre os inocentes pela guerra. Seu grito inaudível perde sua particularidade, e torna-se universal.
Um símbolo mais complexo, que pode ser chamado de figura visual, ocorre em Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, Sergei M. Eisenstein, 1942-1944). O czar, envolvido em intrigas domésticas, assolado por perigos estrangeiros, em suas lutas para fortalecer a Rússia, está sentado sozinho, meditando. Na mesa ao seu lado encontra-se um grande globo terrestre, que ele acabou de usar para explicar seus planos aos seus ministros. Agora ele se senta e o contempla. Nos é mostrada uma longa cena disso, e vemos as sombras de Ivan e do globo projetadas e ampliadas sobre a parede atrás. Ele pega o globo e o vira, e as sombras enormes são cópias em carbono da ação. Em seguida vemos as sombras sozinhas.
Assim, o símbolo original de Ivan na carne segurando o sólido globo, que já significava “ele tem o mundo em suas mãos”, é ainda mais intensificado pela sua abstração e generalização na grande imagem-sombra: “o espírito de Ivan faz girar o espírito do mundo”. Eisenstein não para aqui, porém; ele trabalha a figura em todo o seu valor, desenvolvendo-a até mesmo como um conceito. No momento Ivan (e sua sombra) tomba, com a cabeça sobre a mesa, enquanto o globo (e sua sombra) sobe em posição relativa. E isso significa: “Seus esforços para dominar o mundo o cansaram” e “Ivan está curvado sob o peso do mundo”, pois, na imagem-sombra, “ele tem o mundo inteiro” literalmente “em seus ombros”.
Acima estão algumas possibilidades no cinema para alcançar os efeitos precisos da poesia. Mas esses mesmos dispositivos foram evitados por alguns artistas cujo trabalho é destinado precisamente e enfaticamente a ser filme-poema. Eles professam criar filmes-poema “não-literários”, “não-simbólicos”, “puros”.
Para que isso seja possível, o filme teria que ser criado ou em termos de percepção crua, impressionismo, ou de expressão direta, não-mediada (pelo pensamento consciente, o que implica conceitos, palavras), livre associação, surrealismo. A primeira abordagem representa, em termos literários, o tratamento “escrita automática” do mundo exterior, “objetivo”; o segundo, do mundo interior, “subjetivo”. Ambas, como veremos, podem ser combinadas, mas não precisam.
Um exemplo precoce, rudimentar e muito famoso de impressionismo interior, e uma associação construída (não livre), ocorre em A mãe (Mat, Vsevolod Pudovkin, 1926). Aqui o jovem revolucionário preso recebe uma carta informando-o de planos para uma fuga iminente. Suas emoções ao lê-la são transmitidas a nós por um close-up de sua boca sorridente, e então uma rápida sucessão de cenas se mesclam: uma criança rindo, água brilhando ao sol etc., todas destinadas a apresentar o surto de alegria do prisioneiro. A tentativa aqui é encontrar equivalentes visuais diretos para um estado interior, sugerindo assim exatamente o mesmo sentimento para o espectador. O fato de as imagens estarem totalmente dissociadas da situação, e até mesmo da personagem – mas, entretanto, representando associações universalmente válidas de alegria, aplicadas a uma circunstância específica – faz desta uma amostra justa de filme-poema fragmentário. Dura apenas alguns segundos, mas contém possibilidades a serem exploradas muito mais a fundo em filmes posteriores (pós-1925).
Um filme feito alguns anos depois, H2O (Ralph Steiner, 1929), exemplifica formalmente o tratamento impressionista exterior, embora não seja essencialmente um filme-poema. Consiste em nada além de água, conforme ela forma inúmeros desenhos e texturas, em vários sítios, em várias velocidades e em vários tipos de luz. Esses tratamentos do mundo físico não servem a nenhuma visão ou expressão emocional, mas existem apenas pelos seus valores plásticos, como filme de arte gráfico, e não como filme-poema.
Os apelos da existência física pura foram expressos com mais paixão, poeticamente, em Um dia no campo (Partie de campagne, Jean Renoir, 1936-1946) e O almoço sobre a relva (Le déjeuner sur l’herbe, Jean Renoir, 1959). Nos dois filmes as perseguições eróticas no campo culminam com hinos impressionistas completos à glória da natureza; na linguagem das folhas trêmulas, águas cintilantes e correntes, gramíneas varridas pelo vento, gotículas de água brilhando nas folhas, insetos agarrados às flores...
O longo filme-poema não-literário forjado de materiais internos está bem, até mesmo classicamente representado pelo surrealista Um cão andaluz. Embora a cena de abertura, como descrita anteriormente, contenha o que é formalmente um símile, isso ocorre apenas incidentalmente, e é, em primeiro lugar, uma mera associação livre, sem significado ou forma intencional. E o resto do filme é completamente irracional, sua “estrutura” apenas aquela da alucinação. Uma garota se esconde no canto de um cômodo enquanto em direção a ela um homem se esforça em puxar uma corda à qual estão presos dois pianos com burros mortos e ensanguentados sobre eles, e então dois clérigos, melancia etc.. Um homem é baleado em um quarto, ele começa a cair; ele continua caindo em um campo tranquilo, suas mãos deslizando pelo corpo de uma mulher nua...
A dificuldade com tal procedimento é que quando somos apresentados a impressões do mundo exterior bruto, como em O almoço sobre a relva, podemos aceitá-las pelo que são, responder totalmente ao seu efeito imediato, pois têm um valor universal, instintivamente apreciado. Mas esse não é o caso com impressões diretas do mundo interior bruto. O problema não é tanto que as reações das pessoas a uma obra como Um cão andaluz foram tão variadas, mas que sentiram a necessidade de explicá-la. Buñuel insistiu que não há explicação racional para as suas imagens. Mas então, temos nossos próprios sonhos à noite. Então por que deveríamos ir ao cinema por algo como eles, desordenado e sem sentido? A arte implica escolha proposital, e cativa completamente o nível subconsciente da mente, que nunca pode ser aceito como tal. Os fenômenos registrados são eles mesmos subjetivos, e sua expressão direta os deixa ainda sujeitos a interpretações significativas, o que não é verdade para as águas ou as plantas de Renoir. Com efeito, tal interpretação é precisamente o que Buñuel pretende deixar para o espectador, ou melhor, pretende removê-la completamente. Ele consegue tornar a experiência do público comparativamente subjetiva à dele mesmo, o criador do sonho. Mas ele falha na medida em que poderia aceitar as emanações do seu próprio subconsciente como “fatos” internos a ser registrados, enquanto o espectador, exposto às suas projeções, devem considerá-las como arte. Uma vez que o espectador não pode aceitar essas imagens como Buñuel as aceita, como “fato” interior bruto, uma explicação conceitual se impõe sobre ele, se não das próprias imagens, então de sua razão de ser. E uma explicação dessas implica palavras, uma tradução “literária”, “simbólica” do filme pelo espectador. Assim, a pura qualidade não-conceitual que Um cão andaluz por si só possui necessariamente evoca pensamentos “literários” no espectador.
Em todo caso, a experiência proporcionada pelo filme está longe de ser inválida, mas, como dito antes, é posta em questão enquanto arte, precisando ser completada pelo próprio espectador. Buñuel disse que seu filme não pretendia ser “arte”. Mas uma vez que um filme surrealista ou de livre associação não pode ter êxito como arte completa, o problema se coloca a respeito de como o filme-poema “não-literário”, “puro” pode ter êxito em outros termos que não aqueles do impressionismo exterior.
Uma direção nesse sentido já foi vista em A mãe, onde um estado interior é objetificado através de equivalentes exteriores geralmente aceitos. Isso sugere um compromisso, ou melhor, uma síntese entre o impressionismo exterior e interior, que tem sido tentada de forma mais plena no recente movimento de artistas que especificamente afirmam criar “filmes-poema”, absolutamente “não-literários” e “não-simbólicos”, mais especificamente Stan Brakhage.
No trabalho tardio de Brakhage encontramos uma expressão direta de estados interiores e não-conceituais. Ele de fato criou um equivalente fílmico de “escrita automática”. Os materiais a partir dos quais esses estados são expressos, entretanto, não são as construções oníricas de Um cão andaluz, mas sim o mundo físico de O almoço sobre a relva. A partir da “realidade” fotografada, em toda a plenitude de sua textura, Brakhage cria seu mundo interior.
O mundo externo é transfigurado pelo interno; o mundo interno é objetificado pelo externo. A “realidade” física não é mostrada por si mesma, mas mais pela emoção subjetiva associada a ela; ainda assim, ela é mostrada. A imageria não é arbitrária, pois não apenas expressa sentimentos como é a base “real” e o estímulo para eles.
Anticipation of the Night (Stan Brakhage, 1958) é tão irracional em suas combinações de imagens, tão subjetivo quanto Um cão andaluz. Mas essas imagens são “reais”: água correndo pela grama; as luzes noturnas de uma rodovia passando; uma rosa ao sol; um carrossel à noite. Tais imagens de vida efêmera são todas misturadas por uma câmera que se move febrilmente em uma fantasmagoria inquietante que culmina na sombra de um homem que se enforcou. Imagens do mundo físico não são usadas como símbolos significativos, mas pelo seu impacto emocional direto. Essas imagens às vezes são obscurecidas, não-identificáveis a princípio – para enfatizar seu valor expressivo acima de sua existência real; mas essa existência também é mostrada.
Naquela que talvez é a sequência mais intensa do filme a câmera se move, em solavancos inquietos e varreduras para frente e para trás, sobre um bebê dormindo, envolto em um longo lençol branco, cujos planos são intercalados com variadas imagens de um cavalo, as luzes azuis da estrada, árvores da floresta, um urso branco, e um grande pássaro branco que se estica e bate suas asas. Todas elas evocam respostas puramente emocionais, não exigindo verbalização para serem compreendidas. O pássaro e o urso podem ser os sonhos do bebê, mas poderiam muito bem ser aceitos da mesma forma que os carrosséis e as estradas, como “reais”, e tendo o mesmo impacto não interpretado e ininterpretável que as árvores e flores de Renoir. No entanto, ao mesmo tempo, eles não são usados para expressar sua própria beleza como tudo em O almoço sobre a relva, mas são tratados de modo a sugestionar outro plano subjetivo de experiência. E, novamente, não são as figuras fantásticas de uma psique, como em Buñuel, cuja própria existência exige alguma justificativa.
Esse estilo é (talvez infelizmente) purificado ainda mais em suas qualidades “não-literárias” em The Dead. Não há mais sequências suscetíveis de interpretação como incidentes reais. The Dead não tem enredo, situação, tempo ou espaço real. Todas as imagens existem apenas como expressão emocional, completamente transmutadas como tal. A câmera se move constantemente sobre as lápides em um cemitério, na maior parte do tempo em sobreposições, muitas vezes superexpostas, com as quais são interpoladas tomadas dos vivos, pessoas à beira da água (uma fonte ou lago no cemitério). Esses materiais são combinados e recombinados, repetidos de várias maneiras, mostrados em velocidades diferentes, invertido, de cabeça para baixo, com diferentes gestos da câmera, verticais, horizontais, curvilíneos, até balançando as pedras como um berço, com as tomadas sendo tratadas mais como frases musicais do que como assunto[1]. De fato, elas são frequentemente pouco reconhecíveis. Assim o “simbólico”, ou “literário”, é inteiramente evitado.
Nenhum dos filmes de Brakhage funciona inteiramente; mas não é meu objetivo aqui criticar deficiências em quaisquer termos que não sejam os da forma básica. Assim, o borrão dos efeitos produzidos pela câmera giratória em Anticipation of the Night e a nebulosa (embora propriamente “espiritual”) qualidade das sobreposições, desfoques e superexposições de The Dead não serão discutidas no presente momento, nem a falta de cadência adequada no fluxo interminável das imagens de Brakhage em ambos os filmes, nem uma certa monotonia formal. Pois os princípios fundamentais do filme-poema são plenamente seguidos nessas obras, e quaisquer erros de execução que existam não constituem negações dessa forma.
Nota:
[1] O movimento em si nunca é ritmicamente estressado a ponto de superar a comunicação emocional, tornando a sensação visceral de movimento dominante, e assim criando o filme-dança.
(Film Culture n.º 29, verão de 1963, pp. 22-27. Traduzido por Vinícius Noronha e Valeska G. Silva. Revisado por Gustavo Salvalagio) |
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