O MUNDO COMO PALCO – A ECONOMIA ESTÉTICA DE HONG SANG-SOO
por Matheus Zenom



Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente
que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros.
Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de perseguido.
Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstrato do mundo.
— Jorge Luis Borges “O jardim dos caminhos que se bifurcam”

Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático,
uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige.
— Machado de Assis, Dom Casmurro


O cineasta e os filmes


Hong Sang-soo, cineasta contemporâneo da Coréia do Sul, realizou vinte e quatro longas-metragens entre 1996 e 2020, o suficiente não apenas para que se possa definir a partir do conjunto da sua obra um estilo, como também claramente um caminho que aponta ao que hoje se pode designar como um “método Hong Sang-soo”.

Após ter dispensado a decupagem tradicional e começado a filmar as suas cenas em longos planos fixos, ele adota o zoom como uma solução expressiva para que, no interior da duração contínua do plano, possa realizar diferentes tipos de enquadramento, ênfases e variações, sem recorrer ao corte ou ao deslocamento da câmera. Após ter dispensado o roteiro e iniciado seus filmes somente a partir de um curto tratamento (de dez a vinte páginas), recentemente tem aberto mão também disto e escrito os seus filmes diariamente, durante algumas horas antes de cada filmagem, baseado nas cenas que realizou no dia anterior. No fim da década de 2000, passa a utilizar câmeras digitais, o que torna ainda mais dinâmica a sua filmagem, não temendo mais os gastos econômicos com película, assim como os limites do material de registro: havendo gente à disposição, não há limites para o quanto se filme.

Tendo trabalhado em seus filmes mais recentes também como produtor, os faz tão baratos que não depende também de qualquer auxílio financeiro para que possa filmar. Atualmente, não custam mais do que 100.000 dólares, o que garante um retorno financeiro imediato, que o permite continuar produzindo sem preocupação, e explica também a intensidade da sua produção mais recente: nos últimos cinco anos, oito novos longas-metragens nos foram apresentados. Sua informalidade estética é consequência desta sua informalidade anterior, que diz respeito ao próprio trabalho de produção. A leveza dos equipamentos digitais, a disposição quase infinita de se registrar novos materiais, a possibilidade de revisão instantânea dos seus resultados de filmagem, a montagem não levando mais do que um dia para ser realizada e a possibilidade de se continuar a construção do filme tendo em vista já o seu material bruto, lhe são fundamentais.

Ainda assim, não há exagero e nem desperdício: é como se houvesse uma concentração e uma disciplina “analógica” que não o permitissem se desviar deste rigor, lúdico apesar de tudo. Hong, afinal, diz utilizar a maioria das cenas que produz: é mesmo somente quando elas se mostram, já na montagem, desnecessárias para a continuidade dramática pretendida que ele as descarta. Não há a necessidade de acréscimo para que possa adquirir novas facilidades práticas. Opta, assim, por um cinema mais pobre, por filmes “pequenos” e sem grandes compromissos, recusando todas as facilidades materiais que poderiam se colocar entre ele e o filme.

O primeiro contato com um desses filmes pode parecer uma experiência relativamente distinta para a maioria dos espectadores. A princípio, não sabemos como tateá-los, pois não exibem suas qualidades logo nos primeiros momentos, apresentando-se apenas pelos elementos mais básicos da representação dramática: um par de atores, um espaço, um texto encenado e uma câmera fixa que o registra. Têm um aspecto frágil principalmente porque revelam assim muito claramente os seus meios de produção, sem máscaras e sem artifícios que se coloquem entre a câmera e os atores, entre o registro e a encenação. Seus filmes guardam muito pouco de um caráter de espetáculo convencional, pode-se dizer, porque, na diminuição das distâncias entre o sistema estético e o sistema de produção, tudo o que apresenta parece estar, em certo sentido, disposto em escala reduzida. De alguma forma, mais do que fazer cinema, parece que Hong brinca de fazer cinema deste modo, como se, ao invés do teatro, o que ele fizesse fosse, na verdade, um teatro de papel:

Considerado de um ponto de vista artístico, o teatro de papel recorda-nos o princípio essencial da arte, o princípio que se encontra em maior risco de ser esquecido nos tempos que correm. Refiro-me ao fato de a arte consistir em limitações; o fato de a arte representar ela mesma a ideia de limitação[1].

Cada novo filme que realiza parece ser um novo ponto de vista sobre a sua própria obra, por assim dizer, pois, ainda que se sirva por tantas vezes dos mesmos elementos dramáticos, é o próprio ato de realização que marca a diferença entre cada um desses filmes; é o seu diferente contexto e as diferentes escolhas estruturais, simplesmente, que podem indicar a sua natureza final. Nesta perspectiva, a experiência da própria filmagem se inscreve através dos atores e do texto, à medida que ele tem de escrever diariamente suas novas cenas, submetido às contingências de cada momento, guardando sempre a inescapável realidade do seu trabalho.

Antes de todas as jornadas de filmagem, Hong escreve três ou quatro cenas destinadas para este dia específico. Isto implica dizer que, entre elas, deve haver certa relação bem estabelecida, certa continuidade essencial, certo problema que é colocado a partir deste conjunto. No dia seguinte, já sob outro ânimo, e a partir dos resultados do dia anterior, do “problema” que foi ali estabelecido – ou, pelo menos, indicado pelos elementos dispostos –, ele pode escolher segui-lo ou subverter este primeiro direcionamento, apresentando outros elementos que, de certa forma, o questionam. O caráter da sua narrativa, portanto, não está distanciado dos elementos ontológicos que compõem esta narração, de maneira que Hong escreve somente a partir daquilo que tem disponível para si, sejam atores, equipe técnica ou locações. Sua criatividade resulta do confronto com os meios disponíveis e a ficção se alimenta do seu trabalho material: “Eu lido geralmente com lugares e atores, atrizes – não com personagens”[2].


Os fundamentos estilísticos e o universo expressivo


Por ter de encontrar assim novas soluções diárias, é muito útil retomar sempre as mesmas personagens e as mesmas situações que já conhece muito bem e já trabalhou anteriormente. Assim, a maior parte de seus protagonistas são cineastas, professores de cinema, escritores e artistas em geral. Todos têm, basicamente, a mesma personalidade, prestam-se às mesmas situações, envolvem-se nos mesmos conflitos. Há um momento de O dia em que ele chegar (Book chon bang hyang, 2011) em que o próprio Hong parece fazer uma piada a respeito disso: uma personagem, professora de cinema, conta que, andando pela rua, encontrou sucessivamente um diretor, um produtor, um compositor de trilhas sonoras e um estudante – todas elas pessoas ligadas ao cinema – em um intervalo de 20 minutos. “Não é uma enorme coincidência?”, ela pergunta aos outros dois com quem se senta à mesa do bar, ambas estas personagens também cineastas. Em qualquer outro filme, uma situação como esta representaria de fato algo extraordinário, mas aqui o que a personagem descreve é simplesmente o universo diegético de Hong Sang-soo: ela vê essas personagens porque apenas elas existem nele, pois os seus filmes representam um “mundo cinematográfico” particular. De acordo com Hong, isto se dá porque são esses os tipos sociais e as profissões que ele melhor conhece, e às quais poderia abordar com maior intimidade, sem correr o risco de incorrer em caracterizações infundadas.

No que diz respeito à sua função narrativa, essas caracterizações delimitam as relações sociais das personagens, ajudando a definir com quais outras pessoas devem encontrar, em quais situações e o que pode haver de conflito a partir disso. Algo que confirma a pertinência dessa abordagem é, por exemplo, as cenas em grupo, onde na maioria das vezes apenas duas personagens participam de uma determinada discussão enquanto todos os restantes se dispõem na cena muito mais como uma plateia diegética, como membros de um círculo social do qual fazem parte também estas personagens e no qual esses acontecimentos podem provocar uma repercussão, fazendo assim ecoar o conflito e estender os limites do drama para os protagonistas.

Resulta daí uma narrativa cotidiana em que a ociosidade das suas personagens é fundamental, gastando o seu tempo livre em aventuras amorosas que não podem cumprir, ou sentando-se em bares e tendo enormes conversas regadas a álcool – ociosidade que, enfim, não deixa de dizer respeito à dos atores que dispõem do seu tempo livre para trabalhar nesses filmes de tão baixo orçamento, de certo modo. Além disso, pouco há de um conflito definido a priori, e seus caminhos narrativos se modificam de maneira significativa conforme o filme avança e novas possibilidades são apresentadas. Neste sentido, a sua aparente superficialidade dramática é uma condição original a ser superada, necessária para a manifestação de exceções em passagens que criam um relevo mais profundo, que sugerem uma possibilidade de conflito e uma estrutura a seguir.

Toda a construção narrativa se dá em um sentido extremamente dramatúrgico, voltada para a preservação da unidade da cena, na qual deve haver necessariamente uma apresentação, um desenvolvimento e uma conclusão, sob uma marcação muito bem definida. Sua concentração é para Hong um elemento fundamental em seu sistema estético, uma vez que ela permite que o próprio jogo dos atores adquira destaque expressivo. Hong é um cineasta pouquíssimo dado à movimentação de atores, a longos deslocamentos espaciais, e se vemos por vezes algumas personagens fazê-lo, é pelo motivo que estas imagens provocam um intervalo entre os blocos de representação por diálogo:

Eu gosto delas porque há uma luz diferente no exterior, ou as árvores estão se movendo. Mesmo que as cenas sejam curtas, elas são preciosas. Eu tenho longos planos de conversa e entre eles há uma pequena inserção ou eles estão andando na rua. Apenas isso é precioso para mim[3].

Seu cinema é, assim, voltado para o desempenho do ator, para a interpretação do texto, para o desenvolvimento de um evento dramático. Sua mise en scène prima pela fixidez, pelo rigor da disposição dos atores nos espaços. Na maioria das vezes, isto se define apenas pela presença de dois atores, sentados em um bar, café ou restaurante, os quais têm longos diálogos a respeito principalmente de si mesmos e das suas relações amorosas, buscando sempre uma tentativa de aproximação, também na sua maioria das vezes frustrada. Neste tipo de “drama sentado”, o conflito que se desenvolve é muitas vezes “intelectual”, remetendo não necessariamente àquilo que se dispõe no presente da cena, mas ao que as personagens evocam através do conteúdo da sua fala.





O filme mostra, então, toda a cena em sua integridade, sem interrupções de montagem: jamais uma cena é filmada com mais de um único plano; do mesmo modo, nenhum plano filma mais de uma cena, mas ambos se correspondem nos seus filmes, formando um mesmo bloco de espaço-tempo contínuo, uma mesma unidade formal na qual toda a mise en scène está essencialmente estruturada. Isso concerne duas propriedades essenciais: a duração, correspondente à totalidade da cena, e a distância da câmera em relação ao espaço, estabelecida por um plano médio frontal, que permite a visualização da sua integridade. Esse plano respeita, portanto, uma divisão entre o espaço da encenação e o do registro cinematográfico, que não se coloca jamais em meio à cena. Partindo de uma postura observacional, o filme parece servir-se de uma superfície, de um evento que ocorre independente desta articulação na filmagem, agindo sempre como um olhar exterior.

Tornando essa relação ainda mais “chapada”, deve-se destacar tantas vezes também a ausência de profundidade de campo nesses diálogos: atrás destas personagens, vemos somente paredes logo coladas aos seus corpos, quando muito algumas janelas que permitem uma vista da rua a seguir. Assim como nunca impõe um direcionamento à sua narrativa a fim de obter qualquer efeito de uma maneira mais fácil, Hong também não procura direcionar a imagem para apresentar uma beleza já dada ao espectador: sua imagem nunca é pitoresca ou decorativa. Ao contrário, ele detecta essa beleza onde a princípio ela parece não existir, descobre-a nos lugares mais inesperados – ou melhor, faz o espectador descobri-la:

Eu quero conter o que está acontecendo no enquadramento mais econômico. Acompanhá-los da maneira mais econômica tem uma beleza particular. É isso o que eu procuro [...], não a assim chamada “cena bonita”. Nunca[4].

A distância tomada pela câmera na maior parte desses planos favorece a uma intensificação da experiência imersiva do diálogo: a sua continuidade é aquilo que envolve o espectador na discussão e o plano médio é o afastamento necessário para que se preste atenção ao conteúdo das palavras (e das legendas, tão importantes, visto o fato de que o idioma coreano dos seus filmes é estrangeiro para a grande maioria do seu público internacional). A montagem, a substituição das imagens, a sua novidade, distrairia a atenção em relação ao diálogo: abre-se mão disto, portanto, para que o conteúdo e a expressão da fala se elevem, para que toda a informação do plano se concentre nesses aspectos em destaque.

“A expressão da fala”, pois embora não necessariamente possamos compreender o conteúdo dessa comunicação oral, o gestual de seus atores também é fundamental para a cena. Certamente, esse concepção de plano exige muito da performance deles: são eles, enfim, que garantem o tensionamento de uma cena cuja fixidez da imagem se impõe como característica original. Por vezes, esses planos chegam a se prolongar por cerca de dez minutos e, ao longo desta duração, suas personagens, tão humanas, se despem aos poucos de toda inibição, revelam os seus defeitos, as suas paixões. A princípio, Hong parte de um naturalismo das ações para abordar aquilo que há de mais constrangedor, desesperado, cômico e ridículo das relações entre as suas personagens. No entanto, também opera nisto, sutilmente, por vezes, um desvio absurdo, que faz com que as atuações tornem-se excessivamente expressivas e que determinados eventos trágicos pareçam-nos cômicos, fazendo-nos rir quando deveríamos chorar.

Se a cena e o plano se associam em unidade, eles diferem na maioria das vezes em temperamento. O plano mantém sempre uma postura contida, independente da instabilidade e dos impulsos emocionais de que as personagens sofrem no interior da cena. Garante-se assim através dessas posturas opostas um atrito em que sobressai a expressão de cada um desses elementos, ou seja, dos atores e da câmera, cada um à sua vez e, no entanto, agindo juntos. Sendo a fixidez a sua regra, torna-se muito preciso e sutil o movimento de câmera quando ele acontece, fazendo-se notar com clareza pelo seu caráter de exceção. Ainda assim, a distância entre a câmera e os atores continua, com a movimentação ocorrendo somente através do zoom e do movimento panorâmico em torno de seu próprio eixo, sem que a câmera se desloque da sua posição no espaço.

O zoom enfatiza determinados elementos pela diminuição da sua distância, pelo seu isolamento no quadro. Ressaltando um aspecto a princípio já disposto, mas pouco evidente, ele ultrapassa a superfície da cena e nos revela o que até então se fez oculto pela imposição da distância necessária ao visionamento do todo da cena. A panorâmica, por outro lado, é o movimento que expande os limites da realidade desta representação, revela o seu espaço contíguo, aquilo que se fazia presente ao seu lado, porém não era ainda dado a ver: é o que revela o seu fora-de-campo. O primeiro, direcionando-se ao que já está contido na imagem, penetra o interior da cena; o segundo, revelando novos elementos a princípio exteriores, a dilata. Poder-se-ia também falar a esse respeito de “profundidade” e “largura”; no entanto o mais importante é como, realizando a manutenção desta continuidade espaço-temporal, o plano de Hong é capaz de expandir os limites da sua realidade diegética e da abordagem sensível à sua representação. O oculto e o ausente são assim revelados.

Como ilustração, basta nos referirmos à primeira cena em que vemos o casal de Você e os seus (Dangsinjasingwa dangsinui geot, 2016) junto na cama, através de um enquadramento que revela não somente onde se deitam como também, próximo à câmera, a moldura da porta do quarto onde estão. O homem inicia uma discussão com a mulher a respeito dos comentários que ouvira recentemente de que ela havia sido vista bebendo em um bar – afinal, tinha-lhe prometido não voltar a fazê-lo. Ela responde, revolta-se, tenta se defender, diz que tudo isto é mentira. A argumentação de ambos prossegue até que em determinado ponto o homem desiste e, num gesto impulsivo, atira-se ao colo da outra. É nesse momento preciso em que o plano se move pela primeira e única vez, com um zoom agindo exatamente sobre esse movimento do homem, reenquadrando o seu corpo deitado sobre a mulher. Some a moldura, estamos próximos das personagens, e ao longo do restante da cena o quadro permanece desse modo.

Nesses diálogos, a utilização dos recursos em conjunto é essencial, na medida em que eles não apenas se aproximam e se afastam dos rostos dos atores, como também passam igualmente de um para o outro. Hong faz o seu “campo/contracampo” deste modo, oferece ação e reação sucessivamente, destacadas através desta alteração do recorte, sem, no entanto, depender da interrupção de uma continuidade dramática. Assim, os planos de Hong se apresentam dispostos a representações de qualquer escala, a realizar qualquer movimento buscando algo que está dentro (em profundidade) ou fora de quadro. A possibilidade dessas mudanças no interior do próprio plano beneficia seus filmes não só por viabilizarem a manutenção dessa duração, desse bloco cênico “bruto” na tela, mas também porque eliminam as imposições e dificuldades materiais que ocorreriam caso se optasse pela interrupção do desenvolvimento da cena para a reconfiguração de toda a estrutura da produção em prol de uma tomada de vista distinta, um plano distinto sob uma outra escala.

Pode-se acrescentar, ainda, no que diz respeito a esse “bloco duro” de representação, que todo o som dos filmes também é direto, realizado por microfones de lapela que se mantêm presos aos atores. Isto cria uma relação em que, enquanto a sua câmera se mantém fixa e a sua aproximação se dá apenas pelos movimentos ópticos, o som tem uma presença constante, acompanhando os atores em qualquer movimentação, especialmente nas cenas que ocorrem distantes da câmera – ou em que eles se movimentem criando essa distância –, permitindo que não haja limites para o quão longe possam ir.

Hong, através da escolha implicada na filmagem desses planos, parece sugerir uma interpretação do mundo como um palco, no sentido de que, para além das cenas ocorrerem em lugares reais, todas são desempenhadas sob tal estrutura formal e rigor de encenação, condensada sobre determinadas limitações espaciais, onde não operam outros desvios. A contingência que por vezes se manifesta sobre essa representação, como se verá a seguir, não é senão a exceção que se impõe sobre essa regra. É a propósito da consciência dessa “limitação” mesma que se justifica a frase de Chesterton sobre os “teatros de papel”, pois os filmes de Hong apontam para uma simplicidade, uma frontalidade expressiva e um caráter lúdico que se relacionam com esse tipo de atividade, na qual a limitação torna a expressão mais potente por ser, necessariamente, mais concisa e menos dispersa.

No entanto, quando se diz que existe um “rigor na encenação”, não significa que essas limitações são dirigidas por Hong criando gestos calculados ou movimentos estritamente definidos que são impostos aos seus atores. Pelo contrário: existe uma grande margem de improviso na interpretação, desde que os atores a realizem sob os estritos limites que o texto lhes impõe. A partir daí, Hong corrige aquilo que desvia as intenções do texto e, principalmente, também se adapta formalmente ao interior dessa representação, no que diz respeito à aplicação da atividade da câmera sobre o modo como os atores representam. Assim, parece sempre justa a sua distância, pelo modo como define esses movimentos no próprio ato de observar o desempenho dos atores e o desenvolvimento da cena. O realizador é ele mesmo espectador da representação, selecionando aquilo que corresponde ao melhor ponto de vista para o momento presente da cena e revelando um olhar atento por trás da sua câmera.


A contingência material e a questão ontológica


Em seu trabalho diário, na medida em que propõe uma continuidade à sua elaboração narrativa, Hong procura estabelecer relações, portanto, não apenas com parte do que foi produzido no dia anterior, senão com o que foi imediatamente a última cena filmada, em um esforço para que o filme seja feito assim como que em um único fôlego, sem margens para correções. Uma das bases inescapáveis de todo o seu sistema estético (e que diz respeito à transparência desse método de produção) é o modo como os filmes reproduzem a ordem cronológica exata em que todos os planos foram filmados, com raríssimas exceções. O primeiro plano da filmagem corresponde ao primeiro plano do filme, o segundo plano da filmagem ao segundo plano do filme, o terceiro é o terceiro... Assim até o plano final, que encerra a filmagem e o filme. Esse método implica que muitas vezes a disponibilidade dos atores ou das locações determine a continuidade da narrativa do filme. Aquilo que define posteriormente a estrutura e o faz definir os caminhos que deve tomar a seguir, aquilo que impõe o que deve constituir de fato o filme e indica a sua forma final, não se define senão a partir do próprio filme, do material que já se realizou até então.

Neste sentido, Filha de ninguém (Nugu-ui ttal-do anin Hae-won, 2013) se inicia com a personagem do título sozinha, em um café, enquanto espera pela sua mãe. Quando esta chega, as duas passeiam por novos lugares na cidade, revisitam outros em que estiveram ao longo dos anos, a mãe conta também sobre o seu passado; mais tarde, preparam-se para uma despedida, pois a filha ficará sozinha depois que a mãe fizer uma viagem da Coréia do Sul ao Canadá, onde irá morar nos próximos anos. Elas passam juntas toda uma tarde e, depois que se separam, Haewon liga para um homem e pede para encontrá-lo, pois faz já bastante tempo que não se veem e ela se sente sozinha. Isso acontece já com cerca de vinte minutos de duração. Ele aparece em instantes e logo depois descobriremos que este seu amante é também seu professor na universidade (dentro do departamento de Cinema, é claro), e toda a história a seguir será a respeito da relação entre os dois. Filha de ninguém se inicia, portanto, não por aquilo que acaba se tornando a sua narrativa principal, mas pelo que aparentava ser quando se iniciaram as filmagens. Ao longo do caminho, independente dos motivos – se a atriz que interpretava a mãe já não podia mais participar das filmagens, se aquele desenvolvimento dramático não oferecia mais novas possibilidades –, introduziu-se essa nova personagem, redirecionando o filme a essa outra relação, que dá continuidade à centralidade da personagem protagonista, motivo pelo qual os dois eventos estão associados.

Deste modo, é comum que alguns filmes de Hong se apresentem como uma sucessão de narrativas dissociadas e episódicas, pois, devido à sua economia narrativa, chega muitas vezes a um esgotamento ou uma conclusão muito antes das durações estipuladas para o longa-metragem. A seguir, sob a necessidade de completá-las, o que Hong faz é introduzir outro episódio, valendo-se novamente dos mesmos atores (talvez dos mesmos espaços e personagens) para desenvolver então outra narrativa, que pode ou não estar relacionada com a primeira. Faz-se então necessário que ele se afaste e reflita a respeito do trabalho enquanto ainda o executa, a partir diretamente da análise dos seus resultados materiais, devendo procurar novos rumos a partir dessa interpretação. A criação não somente acompanha assim todo o seu trabalho material, como ambos se tratam de uma mesma atividade: escrita e realização são indissociáveis.

É devido a esse sentido cronológico, sob a mesma lógica desse encerramento de episódios, que se dá a presença tão constante dos sonhos nos seus filmes. Muito comumente há o desenvolvimento de sequências inteiras que, partindo de um naturalismo tal como antes, pouco a pouco revelam um caráter absurdo das suas situações, até que somente após o seu fim, através de um corte, retorna-se à situação inicial antes dela ocorrer, revelando que se tratava de um sonho. Todo o seu Lista (List), média-metragem de 2011, está baseado apenas nisso: uma jovem escreve uma lista de afazeres no início do filme que acaba sendo a estrutura de todas as ações que desempenha a seguir, até que elas manifestam o seu caráter onírico e, então, o filme volta ao seu princípio, revelando esta personagem que acorda do sonho logo após ter escrito a tal lista. Nestes momentos, no entanto, até que o sonho nos seja revelado pelo corte, não podemos desconfiar de que se trata de um desvio em relação à realidade narrativa anterior. Tal como essas imagens nos são apresentadas, não existe nada que as diferencie da realidade dos eventos cotidianos, nenhum som, nenhum efeito que as caracterize como sonho, senão quando essas ações começam a assumir pouco a pouco um caráter mais absurdo e, por fim, um corte faça voltar a um momento anterior, revelando esse desvio. O filme promove assim uma confusão das aparências que põe o espectador nas mesmas condições de suas personagens que sonham, para apenas depois descobrirem que nada disso é realidade.

Dentro desse método cronológico assumido por Hong, a escolha por atribuir essa caracterização onírica às cenas é muito útil por invalidar determinados desenvolvimentos sem muita perspectiva de desenvolvimento dramático, promovendo um retorno ao estado inicial de onde o filme havia partido e a reconstituição dessa continuidade narrativa a partir do despertar de um sonho de suas personagens. As sequências de sonho guardam, portanto, muito do caráter especulativo da sua escrita diária e são como o testemunho daquilo que deu errado, dos caminhos que se propuseram e não puderam ser seguidos – mas que, ainda assim, sob essa caracterização, encontram seu modo de estarem presentes no filme. Acima de tudo, Hong parece comunicar algo de uma fé absoluta na ontologia cinematográfica, no que diz respeito primeiramente à captação da sua imagem concreta e depois na duração que possibilita o questionamento a seu respeito; na capacidade de apreensão dos pedaços de realidade a que a câmera se dispõe e a formação de um entendimento a respeito de uma narrativa a partir da visualização de todos esses diferentes pedaços de realidade, confiando que cada coisa encontrará no filme o seu lugar.

Hong se permite, assim, estar disposto a aceitar todas as manifestações que possam acrescentar ao seu filme: não apenas à sua linha narrativa principal, mas também ao que acaba criando uma zona de indefinição no interior dessas narrativas mesmas, uma margem para o imprevisto e a livre interpretação que se impõe como uma das características mais fortes do seu cinema. Deste modo, há pelo menos dois ou três momentos em sua obra nos quais determinados acidentes intervêm diretamente sobre a superfície da sua ficção, constituindo brechas por onde o filme escapa e estabelecendo um tensionamento com o tratamento, o isolamento, o rigor da representação ficcional.

Em Noite e dia (Bam gua nat, 2008), filme estruturado como um diário que acompanha a estadia de um sul-coreano exilado por alguns meses em Paris, vemos em uma de suas datas o protagonista andando distraidamente por uma calçada quando é interrompido por duas mulheres que o impedem de seguir. São assistentes de uma produção cinematográfica e têm atrás de si uma estrutura montada, com parte da equipe técnica e alguns postes de luz. Todo o espaço a seguir está interditado, portanto, e elas orientam o sujeito a seguir uma de duas opções: ou atravessa a rua e segue pela outra calçada, ou espera até que terminem de filmar em alguns instantes. A personagem, que não compreende bem o francês, se conforma em esperar ali tranquilamente. Pelo rádio, uma delas confirma: somente daqui a cinco minutos os atores estarão ali para que a cena seja filmada.

Estando a personagem ali alguma coisa vinda da parte superior do quadro, supostamente caindo do céu, atinge-a e gera uma pequena movimentação. Uma das mulheres percebe e caminha até o seu lado, se abaixando e pegando em suas mãos um passarinho que havia acabado de cair: um zoom revela-o em suas mãos, vivo, piando, um animal de verdade. Logo se juntam os três, que o olham e sorriem. A única imagem a seguir é um plano do ninho em que supostamente ele estava, como para atestar a veracidade desse acontecimento anterior, para completar a natureza do seu registro. Encerra-se aí esse capítulo no meio do filme, constituído apenas com uma cena tão simples e fugaz, de dois planos e pouco menos de dois minutos, que nada faz avançar no que diz respeito ao seu conteúdo narrativo, mas que cumpre, como um acontecimento de natureza absolutamente prosaica, a proposta da estrutura de diário que todo o filme assume.

Cabe aqui, no entanto, explorar um pouco mais essa cena por um aspecto que auxilia a um entendimento mais complexo de algumas das relações que se constroem nos filmes de Hong. No momento em que o homem percebe que algo havia caído, sem saber ainda que se tratava de um passarinho, o propósito da cena já havia sido cumprido, não parecia mais ter o que se desenvolver a partir daí. De acordo com a estrutura episódica do filme, ali se encerraria mais um capítulo diário (tal como de fato acontece a seguir), sem apontar para uma continuidade imediata. A continuidade da filmagem nesse momento se dá apenas no sentido de criar uma determinada “sobra” para a montagem, correspondendo a um registro que essencialmente já não é mais dramático, não corresponde mais propriamente à matéria representacional a que o filme se propõe. É nessa brecha deixada pela ausência de representação, de texto, que se dá a abertura para a presença de um fenômeno exterior, pois esse acontecimento faz com que os atores voltem a se movimentar, que o olhar da câmera permaneça ativo. O zoom e, principalmente, a continuidade do plano, mostram que se trata de um animal de verdade e que esse é um acontecimento que altera as próprias vidas cotidianas, acrescendo ao filme uma nova possibilidade de significação imprevista. Desta maneira, se essa cena pretendia a princípio fazer uma crítica a um determinado modelo de produção cinematográfica, Hong acaba por, em seguida, evidenciar a vantagem pessoal que toma a partir do seu método, pela naturalidade com que incorpora uma manifestação contingente e enriquecedora, sem que tenha que realizar qualquer tipo de preparo se não o de manter disponível o registro – algo que de maneira alguma poderia ocorrer sob o outro modelo.

Outro momento assim acontece em A câmera de Claire (La caméra de Claire, 2017), em uma cena na qual as personagens de Isabelle Huppert (Claire) e Kim Min-hee veem as fotografias que a primeira tirou. A segunda reconhece em uma destas fotos o realizador com quem havia acabado de terminar um relacionamento amoroso e por quem havia sido despedida do seu emprego. Em meio a essa discussão, que gera então um momento de conflito entre as duas, pouco a pouco cresce um ruído até se tornar um som tão estrondoso que, durante cerca de meio minuto, sufoca o diálogo e provoca um desconforto nas atrizes, motivando uma mudança no tom e no volume das suas vozes para que o diálogo possa sobressair ao ruído e, ainda, o que é mais impressionante, incitando-lhes por um instante um olhar fugidio na direção da câmera (por trás da qual supostamente se encontra o realizador), como para confirmar se deveriam ou não permanecer atuando. Afinal, em outra situação de filmagem convencional (como a representada em Noite e dia), esse acontecimento seria motivo suficiente para que se interrompesse a filmagem e se retomasse novamente esse plano. No entanto, Hong mantém o acidente, não só no instante da filmagem como no resultado final do filme, e utiliza-o como pretexto para mais tarde justificá-lo através de outro plano, em que se vê a personagem do realizador (visto nas fotografias comentadas) dormindo no sofá e, atrás dele, através da janela, o trem que passa e provoca o mesmo som anterior.

Entre esses dois momentos, a natureza desse elemento sonoro, cuja única relação estabelecida se dá pela sua manifestação concreta, tão simplesmente pelo seu caráter material, permanece a priori indecifrável. É uma “mancha” o que a sua intromissão cria no filme: um preenchimento das suas capacidades por uma matéria que se recusa a qualquer tipo de significação, que se apresenta tão simplesmente em sua opacidade, denunciando desse modo a manipulação de todos os outros elementos do filme na construção da sua aparência ilusória. A partir deste momento, o que vemos também já não são mais as personagens, mas unicamente as atrizes, Kim e Isabelle, sem caracterizações, pois é verdade que também “o acidental ameaça a unidade do ator e da personagem, deixando ao espectador a fadiga ‘suplementar’ do ser humano, que não parece responder mais à personagem”[5]. O seu desconforto e olhar indeciso não só denunciam a “janela” da representação, mas provocam sobre ela um vento tão forte que a escancara completamente; tudo a seguir é recebido com o frescor desse acaso, com a possibilidade de por vezes haverem ventos ainda mais fortes, novas surpresas reservadas ao espectador. Posto em termos mais objetivos, a consciência da representação torna ainda mais interessante a observação do que existe no filme para além daquilo que a constitui: essa imprevisibilidade diz respeito à própria manifestação dos elementos materiais do filme, escapando a qualquer tipo de controle narrativo, mesmo de consciência por parte do realizador. É não apenas o próprio filme que se mostra, mas também a manifestação concreta do mundo que se faz chamar a atenção.


O espectador e a “ficção de leitura”


No modo como o trabalho de Hong se articula, tudo o que se apresenta deve ser aceito e incluído no filme, na ordem em que se apresentar, com o mínimo de manipulação possível. O seu trabalho de criação está no modo como cria essas articulações, os contextos em que apresenta essas cenas, de que forma é melhor apresentá-las. Por trás do gênio de Hong está não a invenção, mas a descoberta: ele cerceia a realidade e a manipula; serve-se dos elementos do acaso que se manifestam sem, no entanto, impor aquilo que lá não está. Aí reside a segurança e a naturalidade de sua mise en scène.

A diferença do cinema para não importa o quê, incluso o romance, é primeiramente a impossibilidade da mentira; em segundo, a absoluta certeza, partilhada por espectador e autor, que na tela tudo se arranjará com o tempo. Se o metteur en scène, o realizador, intervém em qualquer coisa na realização de um filme, ele intervém nisto, antes de tudo. Ele se aventura entre essas duas evidências: a da imagem por onde ele espreita e a da duração pela qual ele a conclui[6].

A consciência da manipulação da linguagem em seus filmes pode ser resultado de sua produção inicial em curtas-metragens experimentais[7], os quais ainda não vimos e talvez jamais vejamos, mas cuja bagagem basta para sugerir que Hong, definitivamente, não adentrou o terreno do longa-metragem ficcional por caminhos ordinários: antes, deve ter reconhecido ali outras possibilidades (mais voltadas à exploração da linguagem) de experimentação, fator determinante à excepcionalidade expressiva de sua narração. É por esse nexo que se pode ressaltar como as suas estruturas, com raras exceções, não se dispõem como ornamentos no tratamento de temas ordinários – processo criativo que, simplesmente, recorreria a outros meios para o mesmo fim, processo que adquire uma importância fundamental uma vez que seu gesto estrutural impõe a necessidade de outra atitude por parte de seu espectador.

Assim, a relação já apontada entre suas cenas e planos desempenha um papel crucial, pois se através do plano individual, no aspecto bruto da sua unidade e duração contínua, Hong se serve da matéria real sem artifícios, sem margens de ambiguidade, ele muitas vezes põe em questão o que veio antes à medida que apresenta a imagem seguinte, sugerindo novas possibilidades. Por esse domínio secreto que constitui uma elipse se estabelece uma contradição na qual a capacidade de abstração do espectador deve atuar, a fim de atribuir à relação entre essas duas imagens um novo sentido. Se o cineasta considerasse a necessidade de supressão dessas brechas, isso romperia não apenas com a sua cronologia, mas significaria o contrário de todo o seu método, pois exigiria uma autocorreção constante, retirando do filme todo o despojamento de sua produção e resultados estéticos. Mantê-las em seu resultado final não expõe uma carência e uma fragilidade de exposição, mas uma consciência da impossibilidade de resumir a significação dos seus elementos narrativos, guardando assim algo de uma experiência concreta da realidade, onde esses signos ainda não estão decodificados – ou seja, onde atuam somente as aparências, cujo sentido profundo permanece velado. A consequência disso é o questionamento da própria diegese do filme, isto é, dos seus acasos e da sua ficção.

No limite, essa “confusão das aparências” diz respeito também a uma consideração a respeito da personalidade de determinadas personagens, a qual se contradiz sutilmente na relação entre momentos narrativos. Esse conflito é mais explicitamente o elemento central das narrativas de Você e os seus e A visitante francesa (Da-reun na-ra-e-seo, 2012): em ambos, uma mesma atriz interpreta diferentes personagens e, no limite, a natureza de seus conflitos dramáticos está relacionada à impossibilidade de dissociação entre as aparências dessas atrizes e suas personagens.

A visitante francesa se estrutura a partir de uma narrativa-moldura em que uma estudante de cinema, passando o final de semana em um hotel numa cidade de praia junto da sua mãe, escreve três roteiros a fim de passar o tempo. O que o filme nos apresenta a seguir são essas três histórias independentes, passadas no mesmo lugar, a partir de três personagens diferentes, todas elas, no entanto, chamadas “Anne” e interpretadas pela mesma atriz, Isabelle Huppert. Cada uma delas chega com um objetivo diferente na cidade e acaba por se relacionar com as mesmas pessoas locais, que em nenhum momento questionam a sua personalidade, entendendo claramente se tratarem de pessoas diferentes – com exceção do salva-vidas da praia: ele, que se apaixona por Anne na primeira parte, insiste que todas as outras seguintes tratam-se da mesma pessoa, o que acaba por provocar todo o desenvolvimento dramático do filme e uma continuidade entre esses diferentes episódios. De certa forma, esta é uma personagem deslocada da diegese do filme, pois ignora todo o jogo de representação das pessoas ao redor de Huppert, ou, ainda, é o único que vê a interpretação da própria Huppert, a fazer estas “Annes” diferentes, que somente a ele não enganam.

Na primeira cena de Você e os seus um amigo diz ao protagonista Young-soo que viu sua namorada Min-jung bebendo e causando uma briga em um bar. Mais tarde, o casal discute a respeito disso, afinal tinham combinado de não beber mais desse modo: ela nega o que o amigo lhe contou e vai embora. A partir de então e ao longo de todo o restante do filme, Young-soo se dividirá entre ir procurá-la (sem resultados) e lamentar com os amigos o fato de tê-la perdido. Ao mesmo tempo, outra mulher, interpretada pela mesma atriz que fez o papel de Min-jung e com suas mesmas roupas, ganhará evidência no filme. Em determinados momentos, ela será reconhecida por outros homens como Min-jung, mas negará: a princípio dirá se tratar de um engano; depois, dirá que tem, na verdade, uma irmã gêmea. Jamais saberemos o que se esconde por trás dessas afirmações. A ausência de comunicação objetiva em Você e os seus carrega em si algo de uma inspiração surrealista, onde as possibilidades de sentido atuam muito mais pelas sugestões do que por definições estritas. Se os códigos não estão claros para as personagens presentes na diegese, então por que o filme deveria ser claro também para o espectador? A ausência de resoluções quanto às personagens presentes na narrativa é também assumida na forma com que essa narrativa se apresenta.

Nesse sentido, é preciso lembrar que, em uma das cenas iniciais do filme, uma personagem entra em um café com uma bicicleta completamente dobrada, que se condensa de tal forma até perder sua identificação visual. Ao mesmo tempo, essa bicicleta segue extremamente material e reconhecível, e a consciência de seu movimento e sua função utilitária ali permanece inata, ainda que se pareça impossível sob esse estado de torção. A propriedade de condensação que a bicicleta dispõe desse modo, sendo mais prática e leve, parece natural e positiva, ao mesmo tempo em que é oportuno que esse objeto esteja ali logo no princípio, pela maneira como aponta à própria ideia de contorcionismo que o filme também representa. Não apenas essa condensação atua como uma alegoria para a forma que o filme assume e o dinamismo de seu método de produção, como a forma retorcida, então, aponta para a ambiguidade do conteúdo dramático e do questionamento da aparência das suas imagens. Afinal, se as imagens são, sempre, representações, a coerência realista não é uma obrigatoriedade, e assim elas podem adquirir qualquer sentido imprevisto de acordo com as interpretações sugeridas pelos diferentes contextos em que elas se inserem.

Assim, outro objeto presente cujo valor alegórico se associa ao da bicicleta é o manequim na janela do estabelecimento em que Min-jung trabalha e onde Young-soo vai procurá-la em dois momentos distintos. A natureza utilitária do manequim, como um corpo à disposição de cada um que deseja, a partir dele, projetar uma caracterização de acordo com os seus interesses específicos, resume todo o conflito dramático do filme, que gira em torno da ideia central da aparência de Min-jung – ou, sendo mais objetivo, da imagem desta mesma atriz sentada em uma mesa de café –, imagem que serve aos propósitos e possibilidades de todas as personagens masculinas. No entanto, nenhuma destas interpretações pode defini-la ao espectador, pois a partir de cada uma dessas personagens essa imagem modifica-se, somando-se e adquirindo novos sentidos, enquanto essa imagem mesma da atriz no café permanece imutável, constituindo a pedra fundamental de todas as relações do filme. A partir desses sucessivos encontros, acumula-se a experiência relativa às expectativas criadas por cada uma dessas personagens, até que nas cenas finais todas elas se encontram frente a ela. Nesse momento suas linhas de interpretação também se confrontam e a estrutura de paralelismo do filme também se consolida frente ao espectador.

Por trás da superfície cômica dos mal-entendidos, se apresenta nesses dois filmes um questionamento ontológico fundamental a respeito dessas aparências e as expectativas criadas por espectadores e personagens, questionamento jamais respondido narrativamente e mantido em absoluta abertura de sentido. Esses problemas oferecidos ao espectador de Hong, que tem de participar ativamente na construção do sentido do filme que assiste, não estão muito distantes do procedimento formal que está presente na obra de Machado de Assis, tal como apontado por João Cezar de Castro Rocha: “O leitor, grave ou frívolo, não conta mais com a facilidade de um universo monocromático. Articula-se assim uma nova ficção de leitura.” Algumas páginas à frente, o completa:

Tudo se passa como se o texto disseminasse pistas que comprometessem a estabilidade semântica do enunciado. [...] No plano do conto, o que afirma um parágrafo é posto sob suspeição em outros. No plano do romance, os capítulos se transformam em armadilhas: este puxa o tapete daquele; o capítulo Y desmente o prometido no X, e assim sucessivamente. Em tal circunstância, o leitor passa a desempenhar papel central na constituição do sentido; papel que ultrapassa o nível puramente metafórico, pois demanda uma autêntica técnica de montagem das diversas instâncias textuais. Essa é, por assim dizer, a marca-d’água propriamente machadiana[8].

Essa “ficção de leitura” é também a marca-d’água da obra de Hong Sang-soo. Se o leitor de Machado encontra “na superfície serena dos textos, possibilidades desestabilizadoras de leitura”, o mesmo ocorre com o espectador de Hong. Podemos bem considerar que em seus filmes essa “superfície serena” corresponde aos planos tomados individualmente, que representam um determinado modelo naturalista de representação, enquanto as “possibilidades desestabilizadoras de leitura” dizem respeito à participação ativa do espectador, que procura as articulações de sentido na relação entre esses planos. Desta forma, é preciso dizer que alguns de seus filmes se diferenciam de outros por explorarem de maneira mais sistemática essas “possibilidades desestabilizadoras de leitura”, seja pelas suas estruturas narrativas ou pelo limite das fronteiras entre sonho e realidade, enquanto outros se atêm de maneira mais precisa à “superficialidade dramática” do drama naturalista, de realidade prosaica, cotidiana. Nesse sentido, Certo agora, errado antes (Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da, 2015) é possivelmente o seu filme que melhor representa um reconhecimento dessa contradição, dispondo-se entre esses dois aspectos.

Este filme se constitui de duas narrativas diferentes, chamadas respectivamente “Certo antes, errado agora” e “Certo agora, errado antes”. Em ambas, um realizador chega sem querer um dia com antecedência em uma cidade em que deve exibir e apresentar um longa-metragem. Ele tem de ocupar esse tempo até o dia seguinte, passeando pela cidade, conhecendo uma mulher local e se apaixonando por ela. A partir disso, ambas as partes divergem e o comportamento dessa personagem em relação a esse encontro, em cada um desses casos, acarretará em consequências opostas. Aqui não há nada de sonho ou quaisquer outras confusões de aparência: há apenas o transcorrer de duas narrativas que seguem o seu fluxo de desenvolvimento interior sem quaisquer outros eventos que interrompam a sua cronologia e sequencialidade. Assim, o filme composto por essas duas partes pode ser percebido, de acordo com a proposta dessa “ficção de leitura”, como se toda a sua primeira parte se constituísse apenas de uma narrativa prosaica, naturalista, que é apenas ressignificada a partir da introdução da segunda parte, pelo visionamento dos mesmos eventos sob pontos de vista distintos, que sugerem o tensionamento existente nessa estrutura formal escolhida pelo seu realizador.

Deve-se dizer que Hong, a princípio, havia filmado apenas a primeira parte da narrativa. Depois de interromper as filmagens e montá-la, adquiriu consciência sobre as possibilidades dessa estrutura de espelhamento, responsável pela sua projeção dramática principal. Ao apresentar nas duas partes as mesmas cenas refilmadas plano a plano, realizando apenas algumas sutis variações na decupagem e na representação de uma maneira geral, correspondentes à significativa mudança de temperamento dessas personagens nas duas situações, Hong reduz ao essencial a comunicação sobre de que modo essas pequenas mudanças de comportamento determinam como pode se dividir um mesmo sujeito a partir das suas ações, representando assim personalidades diferentes. O filme, no entanto, não se propõe a fazer diretamente esse apontamento, ele apenas o sugere por essa apresentação sequencial das partes distintas, sem maiores ênfases. Assim, o elemento disruptivo do filme não está propriamente nas relações que se dão no interior de cada uma das narrativas propostas, mas na projeção realizada pelo espectador, que procura estabelecer um sentido entre essas duas realidades, distinguindo as relações que se fazem ali presentes, suas contradições e caminhos opostos.

Uma tradução do inglês Right Now, Wrong Then, título internacional do filme, poderia ser muito mais fielmente compreendida como “Certo agora, errado então”. Esse “então” constituiria também uma diferença decisiva na compreensão do sentido proposto pela associação entre as duas partes do filme, pois, quando se iniciasse a segunda, ela não apontaria, necessariamente, para um erro cometido pela personagem na narrativa apresentada anteriormente; “então” abstrairia esse outro tempo, não implicando imediatamente uma oposição ou sujeição entre as duas narrativas que o filme apresenta, possibilitando assim maiores possibilidades de leitura. Não há uma disputa entre as duas pela caracterização de um sentido definitivo, mas sua aceitação como episódios distintos, cujo valor de interpretação depende do espectador. Desse modo, o filme acaba por constituir também uma reflexão sobre as escolhas estéticas presentes no próprio ato de representação cinematográfica, bem como das maneiras possíveis de se contar aquilo que, em linhas gerais, sugere ser uma mesma história – reflexão manifestada na própria prática de exposição do seu conteúdo dramático.


Os novos problemas e a crise do método criativo


Ainda sobre Certo agora, errado antes, é preciso dizer que esse aspecto dramático manifesto pela passagem entre as duas partes do filme impõe uma consideração a propósito dos novos caminhos expressivos do cinema de Hong. Em sua segunda metade, é já um novo tipo de personagem que se apresenta, capaz de interpretar a realidade, de agir frente a ela segundo sua própria vontade, não se deixando levar pelas convenções e sendo o mais transparente possível na exposição de suas emoções e dificuldades. Essa passagem introduz também uma nova fase da obra de Hong, distinta principalmente em relação à nova sensibilidade manifesta em seu conteúdo dramático. A partir dela, também, se inicia a sua colaboração com Kim Min-hee, decisiva em relação a essa mudança, como afirma o próprio Hong: “Eu estava sendo cuidadoso. Mas agora as coisas mudaram, eu acho, um pouco. Com Kim Min-hee eu pensei, ‘Talvez seja tudo bem dizer as coisas diretamente’”[9].

Se antes os seus filmes já apontavam para o desconforto de uma existência social, para a banalidade das relações superficiais em que personagens apenas se desinibem a partir da bebida, agora seus protagonistas parecem muito naturalmente dizer a verdade, por mais que isso por vezes possa lhes causar determinado conflito. Tratam de questões mais profundas, debatendo sobre a metafísica ou qualquer coisa além dessas aparências mundanas. Bom exemplo disto está em Hotel às margens do rio (Gangbyeon hotel, 2018), em que uma personagem diz prever a aproximação da sua própria morte e chama os seus filhos para encontrá-lo nesse tal hotel a fim de se despedir. No fim, inevitavelmente, sua morte virá.

Nesses filmes, Hong alinha essas duas “poéticas”, de conteúdo e linguagem, de maneira que aquilo que frequentemente suas personagens expressam é um sentimento abstrato que não apenas sintetiza as questões narrativas como também aponta incisivamente à própria linguagem do filme, de uma maneira que os dois aspectos se confundem. Em A câmera de Claire está o melhor exemplo disso, quando a personagem do título diz que acredita que as suas fotografias são capazes de mudar as personalidades das pessoas que fotografa, opinião em que insiste e na qual os outros não acreditam. O filme provará que ela estava certa,e não somente todas essas personagens fotografadas por ela se comportarão de maneira diferente, como chegarão a não reconhecê-la mais a partir de então, representando outras cenas ao seu lado como se fossem apresentados a ela pela primeira vez.

Não se sabe bem como Hong irá agir a partir desta nova sensibilidade que se introduz nos seus filmes mais recentes, e ainda são poucos os títulos que seguem mais diretamente essas propostas, como Na praia à noite sozinha (Bamui haebyun-eoseo honja, 2017), O dia seguinte (Geu-hu, 2017) e A mulher que se foi (Domangchin yeoja, 2020), para além dos últimos dois citados. Entretanto, é preciso dizer que essa mudança de direcionamento impõe também novas dificuldades que Hong não parece, a princípio, ter superado. Afinal, se esses filmes são significativamente menos expressivos que os do período anterior de sua obra, um dos motivos para isso talvez esteja na incompatibilidade entre o modelo dramático que parece querer seguir e o caráter de seu método de trabalho. Antes, o conteúdo dramático, as estruturas narrativas e seu modelo de produção compunham um sistema unificado. Alterada a natureza desse conteúdo dramático, já não mais disposto pelas personagens e situações que se repetem com sutis variações, também as suas soluções estruturais se veem aqui deslocadas, seu sistema se rompe e, consequentemente, todo seu método de criação parece entrar em crise.

Nesse sentido, é preciso atentar que o suposto apagamento de suas intenções (manifesto pela descontinuidade assumida entre as sequências e a frontalidade da câmera, ausência de “decupagem” e de gestos elaborados) sempre diminuíram a possibilidade de “erro” no que diz respeito aos aspectos particulares de composição dos seus filmes, confiada mais à duração e à acumulação do que aos efeitos imediatos. Isto leva a pensar que, se em seus filmes as qualidades são diferentes, também o “erro” se apresenta de outro modo, e é quando o filme somente se atém às suas premissas superficiais, ao seu caráter cotidiano desprovido de conflito, sem alcançar qualquer tipo de transcendência formal mesmo após esse acúmulo e duração, que mais precisamente parece ocorrer uma anulação expressiva que caracteriza o seu erro, a sua falha. Portanto, não são os detalhes, mas sempre todo o projeto que está em questão, o empreendimento do filme como uma única imagem, como uma unidade em que as partes não podem ser separadas. A prova disso é que, nos seus melhores filmes, poucos são os planos ou as cenas que mais particularmente se destacam: há, em geral, um nivelamento em que as forças se influenciam e se equilibram sob um olhar e uma interpretação crítica que coordena os efeitos dos seus elementos narrativos.

Mais gravemente, esta falha parece se definir em seu último filme A mulher que se foi[10]. A narrativa é composta de três encontros distintos que a personagem de Kim Min-hee tem com três amigas, as quais já não visitava há muito tempo e das quais ouve notícias sobre as suas vidas amorosas recentes. Em todos esses encontros, ela oferece uma desculpa para a sua visita dizendo que era a primeira vez que se afastava do marido após cinco anos de casamento, sugerindo, conforme anunciado pelo título, que essa mulher recentemente se separou mas não deseja assumi-lo diretamente em momento nenhum, sem jamais revelar muito de si e apenas guardando momentos de reflexões silenciosas.

Esse conflito interno pelo qual essa mulher passa e cuja personalidade não a permite exteriorizá-lo nessas situações é uma questão nova na obra de Hong. Entretanto, deve-se dizer que, para além do caráter sugestivo dessa projeção dramática, o filme consegue pouca coisa, uma vez que, se ela guarda essa distância em seus encontros, jamais expondo seus sentimentos, o filme também não é capaz de dispô-los como uma força de tensionamento dramático. Sem alterar as suas relações, a personagem de Kim Min-hee aparentemente flutua por todos esses episódios e o filme transcorre sem variações significativas. O problema disposto pela questão interna à personagem, portanto, é o que impede a narrativa deste filme de se desenvolver. Se isso é interessante teoricamente, na prática torna o filme carente de atrativos – e mesmo de um uso mais consciente da linguagem e de seus efeitos estruturais. Em realidade, aqui não existem valores que proporcionem equilíbrio às fragilidades estéticas que, pela sua despretensão técnica e agilidade de produção, já antes os filmes de Hong manifestavam, mas que eram compensados pelas suas sofisticadas estruturas narrativas, como parte da sua dialética expressiva.

Em A mulher que se foi essa carência jamais é suprida por qualquer outro valor e a “ficção de leitura” do seu espectador fracassa justamente por não serem mais evidentes os elementos dramáticos, materiais, de que esse espectador pode dispor para realizar essa projeção de sentido. Assim, o esforço de abstração sobre o conteúdo escasso que A mulher que se foi apresenta não encontra retornos, pois nele há uma grave carência de contrapontos, de relações complementares, para além dessa projeção que o título pode indicar (e que se poderia chamar a sua “teoria”, justamente pela sua ausência de manifestação por ações). No entanto, se este último filme de Hong Sang-soo não é capaz de guardar, em si, o tensionamento de expectativas que em outros momentos lhe trouxe seus melhores resultados, A mulher que se foi tem a qualidade de estabelecer novos critérios de comparação no interior de sua obra, definindo um limite na representação da “superfície serena” de sua realidade prosaica, que passa a servir muito bem de parâmetro para a compreensão mesmo das mais sutis “possibilidades desestabilizadoras de leitura” de todos os seus outros filmes anteriores – e dos que ainda hajam por vir.


Notas:


[1] G. K. Chesterton, “Os teatros de papel”, in Ficar na cama e outros ensaios (Lisboa: Relógio d'Água). Grifo meu.

[2] Hong Sang-soo, “That Day the Snow Fell”, entrevista a Christopher Small e Daniel Kasman, Notebook, 2015.

[3] Hong Sang-soo, “There Are Miracles”, entrevista a Darren Hughes, Notebook, 2017.

[4] Idem.

[5] Jean-Claude Biette, “Le papillon de Griffith”, Cahiers du cinéma n.° 388, outubro de 1986, pp. 10-11.

[6] Alexandre Astruc, “Qu’est-ce-que la mise en scène?”, Cahiers du cinéma n.º 100, outubro de 1959, pp. 13-16.

[7] Hong relembra esta tomada de consciência assim: “Até os meus 27 anos, quando vi o Diário de um pároco de aldeia (Journal d’un curé de campagne, Robert Bresson, 1951), eu nunca pensei que iria fazer um longa metragem narrativo. Eu sempre pensei que faria filmes experimentais, filmes muito curtos, estranhos [risos]. Esse era um plano vago. E então eu vi o Diário de um pároco de aldeia e pensei que era muito bonito. Esse filme foi algo, mesmo. Ele me deu esperança: ‘se um filme pode fazer isto, então eu posso aprender a fazer um filme narrativo’.” (Hong Sang-soo, “There Are Miracles).

[8] João Cezar de Castro Rocha, Machado de Assis: Por uma poética da emulação (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013), p. 269 e 292. Grifos meus.

[9] Hong Sang-soo, “There Are Miracles”.

[10] Tradução minha para The Woman Who Ran, título sem lançamento oficial previsto no Brasil.

 

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