O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO, Glauber Rocha, 1969
por Noël Simsolo



Glauber Rocha – Um itinerário exemplar


Sobre a biografia de Glauber Rocha, nos referiremos à ficha filmográfica sobre Terra em transe, publicada no número 244 da Revue du cinéma – Image et son.


Eu tento fazer um cinema musical, não pelo som, mas por toda uma estrutura de representação.
— Glauber Rocha, 1969


No momento em que Glauber Rocha voltou ao Brasil, após ter explicitado (esquematizado talvez) sua atitude em um filme africano e um filme espanhol[1], torna-se urgente descrever o trabalho que ele opera sobre os elementos cinematográficos. O mal-entendido do qual ele foi vítima resulta de um reflexo muito frequente na ideologia burguesa: tomar por discurso do filme os elementos enunciados nesse discurso e não as articulações desses elementos entre eles. Assim, porque era questão de revolução e de religião, a crítica e os distribuidores dos primeiros filmes de Rocha insistiram sobre diversos pontos (o Terceiro Mundo – a barbárie e a civilização cristã, o exotismo), chegando até a designar Rocha como artista do Terceiro Mundo e místico da revolução, exatamente como resolveram o cinema de Pasolini sob a equação simplista: Freud + Marx + Deus = Pasolini.

Esta atitude preguiçosa permitiu, por outro lado, um sucesso financeiro aos primeiros filmes (exemplo: Deus e o Diabo na terra do sol, 1964) e deu carta branca aos críticos empíricos ou oportunistas. Rocha se esforçou em desfazer o erro nas numerosas entrevistas que os festivaleiros europeus lhe pediam. Mas compreendeu que lhe seria necessário insistir sobre seu trabalho diretamente nos próprios filmes que compunha. Com relação a isso, O dragão da maldade contra o santo guerreiro é um manifesto. Assinalemos ainda que é o último sucesso parisiense de Glauber Rocha.

1969. Coloquemos a questão nesses termos: onde se situava Glauber Rocha?


a) Em relação ao contexto brasileiro:


Ele é membro de uma casa de distribuição, a Difilm, que difunde filmes em 16 e 35 mm. Em 1969, eles distribuíram quarenta filmes no Brasil. Começando com onze cineastas, eles fizeram debutar dezenove naquele ano (entre outros o interessante Júlio Bressane). Eles se ocupam de cinemas equipados em 16 mm. e esperam se beneficiar desta infraestrutura. O administrador geral desta casa de distribuição é Luiz Carlos Barreto.

A lei brasileira obriga todas as salas a dedicar cinquenta e seis dias por ano a filmes brasileiros. Mas depois de 1968 este elemento positivo não é mais suficiente para propagar os filmes do novo cinema brasileiro, tendo em vista seu aumento de produção. Além disso, existe um outro cinema brasileiro que confecciona filmes de inspiração hollywoodiana: westerns de cangaços, melodramas e pseudopoliciais. Apesar disso o público brasileiro, muito apaixonado por cinema (existem milhares de cineclubes), recebe positivamente os filmes do cinema novo. Outro fato a se notar: a ausência de censura no Brasil no plano das autorizações de rodagem. Esta ausência de pré-censura é muito inquietante porque a censura que se exerce sobre o filme pronto é extremamente arbitrária. Uma vez permitido, um filme pode ser exibido no maior número de salas durante um período de cinco anos (prazo fixado pela censura de Estado). Nesse caso, os filmes são distribuídos de maneira idêntica a não importa qual outro: mesma publicidade, mesma sala etc...

Naquele momento, Rocha lamentava que os filmes brasileiros não pudessem invadir o circuito de televisão, exclusivamente fornecido por produções americanas.

Enquanto produtor-distribuidor-cineasta, Glauber Rocha declarou no número 214 dos Cahiers du cinéma:

Portanto, trata-se também de uma luta política. É necessário adotar uma atitude contra a importação de filmes estrangeiros, sobretudo americanos, que entram muito livremente. Paga-se mais taxas sobre a importação de um negativo que serviria para rodar um filme no Brasil do que sobre a importação de um filme realizado no estrangeiro.

Quanto ao Instituto Nacional de Cinema, os jovens cineastas se recusam a trabalhar com ele. Esta administração governamental gostaria de ver os novos cineastas (muitas vezes vencedores de festivais internacionais) trabalhar para eles; mas seus membros recusam os filmes. De tal forma que as únicas relações dos cineastas com o Instituto são administrativas: esta comissão está habilitada somente a dar o certificado de qualidade sem o qual qualquer filme pode ser lançado.

Com Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha é o mais conhecido dos realizadores do jovem cinema; mas é sobretudo ele (apesar dele e do trabalho que efetua) o cineasta brasileiro célebre. Seus filmes recebem os melhores acolhimentos nos festivais e nas revistas de cinema as mais diversas. Tanto Positif como os Cahiers du cinéma defendem com menos ou mais inteligência os filmes que ele realizou. Sem o querer, Rocha se descobre líder do jovem cinema. Se ele chega a declarar que “as reações políticas no Brasil são aberrantes” (entrevista supracitada), ele reconhece não haver realmente feito cinema político no Brasil; ele simplesmente deu informações sobre o Brasil. Exotismo e folclore, assim como política e militância, não são suas proposições mais importantes. Aliás, outros cineastas brasileiros, como Carlos Diegues, Gustavo Dahl e Leon Hirszman (A falecida, 1965), trabalham muito mais precisamente sobre uma dialética materialista e revolucionária. Seria completamente ridículo afirmar que Glauber Rocha era um teórico em 1969. Certamente ele teve uma atividade crítica, uma coletânea sobre o cinema brasileiro foi publicada sob sua assinatura, mas seus filmes não experimentavam concretamente esses tipos de análises. Curiosamente, querendo jogar a carta do espetáculo, ele fez de O dragão da maldade contra o santo guerreiro um filme sobre a representação.


b) Em relação ao cinema novo:


1968-1969 foi um importantíssimo período no que concerne o cinema novo. O Festival de Cannes daquele ano viu a tentativa da primeira experiência da Quinzena dos Realizadores. O público e a crítica puderam descobrir uma incrível quantidade de jovens cineastas, e em particular os primeiros sucessores de Godard a não imitar o mestre. Entre as descobertas, deve-se citar Nagisa Ōshima (O enforcamento [Kōshikei, 1968], O garoto Toshio [Shōnen, 1969], Diário de um ladrão de Shinjuku [Shinjuku dorobō nikki, 1968-1969]), descoberto também no Festival de Avignon; Carmelo Bene (Nossa Senhora dos Turcos [Nostra signora dei turchi, 1968], Capricci, 1969); Fernando Solanas (A hora dos fornos [La hora de los hornos: Notas y testimonios sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación, co-direção Octavio Getino, 1966-1968]); Emile de Antonio (No ano do porco [In the Year of the Pig, 1968]); Michel Baulez (Le cinématographe, 1969) etc.

O impressionante é que o prêmio de melhor mise en scène foi atribuído a Rocha, representante oficial do Brasil. Entretanto, seu filme teria tido seu lugar antes no festival paralelo da S.R.F.[2]. Com efeito, os trabalhos de Rocha pareciam se aproximar dos de Bene, Godard (que se tornara um cineasta militante) ou Monte Hellman.

Os festivais permitiram a Rocha travar conhecimento com os filmes daqueles que trabalhavam em uma via idêntica: a das estruturas de representação. Mesmo que achasse alguns desses filmes muito teóricos e intelectuais (cf. entrevista na Image et son n.º 236, a propósito de Bene), de maneira geral ele podia apenas aderir.

A título de indicação, nós daremos aqui a lista de melhores filmes do ano de 1969 que ele deu à revista italiana Cinema & film:

Othon (Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, 1969-1970), Nossa Senhora dos Turcos (Carmelo Bene), Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West/Once Upon a Time in the West, Sergio Leone, 1968), Sons britânicos (British Sounds, Jean-Luc Godard e Jean-Henri Roger, 1969-1970), Um mais um (One + One, Jean-Luc Godard, 1968), O vento do Leste (Le vent d’est, Jean-Luc Godard/Jean-Pierre Gorin/Gérard Martin, 1969-1970), O estranho caminho de São Tiago (La voie lactée, Luis Buñuel, 1968-1969), La primera carga al machete (Manuel Octavio Gómez, 1969), Sob o signo do escorpião (Sotto il segno dello scorpione, Paolo e Vittorio Taviani, 1968-1969), Amor louco (L’amour fou, Jacques Rivette, 1967-1969), Os deuses malditos (La caduta degli Dei (Götterdämmerung)/The Damned, Luchino Visconti, 1968-1969), Os herdeiros (Carlos Diegues, 1968-1969), O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1968), Ternos caçadores (Sweet Hunters, Ruy Guerra, 1969), etc...

Esta lista não é tão eclética como parece a princípio, pois O dragão da maldade contra o santo guerreiro abre com uma citação de Leone.

Assim o lugar de Rocha no cinema novo se torna evidente. Após esse Festival de Cannes de 1969, ele passa um ano no outro lado do Atlântico e realiza dois filmes “tricontinentais”, nutridos do jovem cinema que ele admira e decorrentes de reflexões rigorosas sobre o distanciamento e as estruturas de representação.

Parece necessário situar O dragão da maldade contra o santo guerreiro como filme revelador para (e de) Rocha.


Roteiro – Abertura pré-créditos e créditos:


Música concreta obliterada por tiros de fuzil. Um cangaceiro atravessa a tela, o sangue verte sobre o seu ventre. Ele grita e agoniza; o assassino (Antônio das Mortes) por sua vez atravessa o campo da câmera.

1º Um vilarejo de camponeses no Brasil.

Um professor ensina a história do Brasil aos alunos agachados na praça, próximo à fonte. O coronel proprietário de terra do vilarejo manda procurar o assassino de Lampião: Antônio das Mortes, o célebre matador de cangaceiro. Este último atualmente está aposentado e místico. Acaba se deixando convencer. O coronel é cego, possui uma bela mulher loira que é a amante de seu sócio. Ele suspeita que um cangaceiro e seu bando, entre os quais um santo guerreiro negro e uma santa, atrapalham o trabalho dos beatos, os camponeses místicos. Ele tenta resolver o problema com a intervenção de Antônio.

2º Antônio é recebido no vilarejo. Na ocasião de uma festividade. O cangaceiro vem se “representar” com a santa. Antônio das Mortes o provoca em duelo. Os habitantes os rodeiam e cantam a dançar enquanto os dois homens (ou os dois mitos) andam em círculos e se encaram; um lenço rosa entre os dois marca a distância que os separa dos golpes. Eles cruzam as espadas enquanto o povo entoa cantigas e Antônio golpeia o cangaceiro no ventre.

3º Os camponeses e os fiéis do cangaceiro levam o ferido para a montanha, onde ele canta sua vida e sua morte.

Antônio está triste; ele bebe; o professor o provoca; o intrigante joga jogo duplo; o coronel se autocongratula.

4º Mas há a lenda e Antônio das Mortes não quer mais matar. O coronel chama os mercenários que vão abater os homens do cangaceiro. O professor se irrita.

5º O vilarejo está um pouco estremecido pelos recentes acontecimentos. O coronel se dá conta de vários detalhes. Sua mulher pede a seu amante que o mate. Este último falha e se vê logo desmascarado. Ele se refugia em uma casa do vilarejo após um tiroteio. Mas é capturado e levado com a mulher do coronel. Esta última jura sua fidelidade e apunhala numerosas vezes o corpo de seu amante.

6º O padre, o professor e a mulher levam o cadáver para fora do vilarejo. Um pouco mais tarde o professor e a mulher se enlaçam próximos ao cadáver enquanto o padre tenta em vão separá-los.

7º Os mercenários fazem a festa depois de matarem os beatos. Antônio das Mortes tem uma grave crise de consciência e acaba se aliando ao professor para lutar contra os mercenários. Um verdadeiro tiroteio no campo de batalha se dá.

Apesar da oposição de suas ideologias, o professor e o matador de cangaceiro encontram uma causa comum e fazem frente aos mercenários. E os dizimam. O negro, armado de uma lança, acaba transpassando o coronel. Os algozes perecem.


Inspirações


A personagem de O dragão da maldade contra o santo guerreiro existe realmente: chama-se José Rufino e tem mais de setenta anos. Em 1968, Rufino retomou o serviço para prender um cangaceiro chamado Zé Crispim que fez a polícia fracassar na região de Pernambuco. Glauber Rocha o conhece durante suas pesquisas para Deus e o Diabo na terra do sol. Ele trabalha em grande parte a partir das lembranças de Rufino. Pode-se ver essa personagem em um curta-metragem de Paulo Gil Soares.

A estrutura do filme se inspira diretamente na dos westerns. Rocha declarou a respeito disso na entrevista ao Cahiers du cinéma n.º 214:

No Brasil há todos os elementos do western e um filme como O dragão da maldade contra o santo guerreiro vai nessa direção...

... Para a saída aos tiros da igreja, eu queria reencontrar o espírito de um western que havia visto: Pistoleiros do entardecer (Ride the High Country, Sam Peckinpah, 1962). Eu estava muito apegado a essa imagem de Randolph Scott e Joel McCrea prestes a atirarem juntos ao fim do filme.

Mas a obra se assemelha muito mais a um filme-ópera.


A ópera cinematográfica


Eu gosto muito de um certo cinema que pode ser chamado de cinema-ópera: Welles, Eisenstein...
— Glauber Rocha


Terra em transe (1967) assinalava em seu funcionamento (composição de cenas e articulações de elementos fílmicos) uma verdadeira implicação musical e teatral. O dragão da maldade contra o santo guerreiro vem reforçar esta constatação, ao vincular o gesto e a música em um espetáculo antes de tudo popular pela frequência de citações cantadas e a ausência de inflação no que concerne a cultura ocidental e neocolonialista.

Nesse caso, música e cantos devem se alternar com as representações de elementos da fábula. Esta necessidade de emprego de uma música vem em corolário de uma constatação de Glauber Rocha:


É na música brasileira que se encontra a verdadeira história e a verdadeira sociologia do Brasil, bem mais que nos livros.
— Glauber Rocha, entrevista aos Cahiers du cinéma


A importância do patrimônio musical surge no Brasil como um fato político, uma possibilidade de desalienação. Durante uma entrevista para a Image et son, Glauber Rocha esmiúça a questão:

O Brasil é um país musical e eu abordo o cinema em uma montagem musical com tempos e espaços musicais. Em meus filmes a música é muito importante... No Brasil todo mundo é músico. Toda a mise en scène de O dragão da maldade contra o santo guerreiro foi desencadeada pela música...

... Não se trata de uma ópera tradicional, é uma outra forma de ópera... Eu tenderia mais e mais aos filmes musicais, completamente cantados com dançarinos! Isso não me impediria de fazer filmes trágicos ou políticos, mas eles serão cantados porque na América Latina as pessoas se exprimem desse modo. Toda a história do Brasil existe em canções. A verdadeira história do Brasil, você não a encontrará nos livros de historiadores, mas nas canções. A sociologia, a antropologia, tudo está na nossa música. Todos os povos compõem e as canções se acumulam, de tal forma que nós nem mesmo conhecemos nossos arquivos musicais.

Esta longa citação permitirá identificar mais precisamente o papel dos materiais musicais em Rocha. A armadilha seria ver apenas uma condescendência ao “folclorismo”; só que, muito pelo contrário, Rocha não se contenta apenas em trabalhar com o emprego de canções, referências nacionais, ele dialetiza sua utilização em um rigor que seria justo qualificar de “brechtiano”. O enquadramento de cada plano, o emprego de focais médias ou longas, a lentidão dos movimentos de câmera, tudo isso não cessa de mostrar a representação. Como na ópera tradicional, tudo funciona sobre a entrada ou a saída dos elementos na linha primeira do espetáculo (aqui: introdução de canções, passagens de atores no campo, improvisação coletiva se integrando de maneira homogênea no conjunto pelo enquadramento que a imagem produz).

Paradoxalmente, o que poderia ser apenas uma festa (ou um mistério) filmado torna-se um documentário sobre o filme em processo de feitura e sobre as diversas estruturas dos modos de representatividade.

A ópera popular, com personagens aparentemente codificadas, suas situações intensas (punhaladas repetidas, cenas de amor ao lado de um cadáver), suas canções referenciais, suas músicas necessárias, seus símbolos muito sublinhados para permanecerem símbolos e não serem mais do que signos; em suma, todos esses componentes que fazem do filme de Rocha um objeto do campo onde os neocolonizadores inscreveram o cinematógrafo; tudo isso desemboca em uma segunda estrutura, mais complexa e intelectual, mas igualmente importante porque logo depois Rocha buscará dialetizá-la ainda mais nos dois filmes seguintes.

Aqui, a crítica mundana e os detentores do saber acreditaram compreender tudo ao taxar Rocha de “barroco” ou de “surrealista”. Outros quiseram fazer dele um simples teórico. Na realidade, Rocha recusa, pelos seus filmes, essas diversas etiquetas, porque em 1969 ele ainda não é consciente da importância de seu trabalho nesse plano. Mais tarde, O leão de sete cabeças (Der Leone Have Sept Cabeças, 1969-1970) não pode ser lido de outra forma a não ser por esse princípio de análise.


A teatralização


O dragão da maldade contra o santo guerreiro aparece exclusivamente como dependente de seu quadro (tela-campo da câmera). Aquilo que é (em movimento ou imobilizado) inscrito nesse quadro existe no modo de um conjunto de signos em representação. Isso provoca uma redundância ideológica importante: uma representação é dupla. Aquela no filme é conduzida por essa do filme. Uma se projeta sobre a outra impedindo o espectador de se satisfazer durante a leitura. A máscara em sua abstração se assinala e, embora a especificidade do objeto esteja muito distante do teatro Nô, o filme compartilha o funcionamento ideológico do teatro japonês tradicional. A escrita já não é mais referente necessário com conflitos e códigos, mas uma linha que se autocritica sobre sua função primordial: a elaboração de uma estrutura. No caso de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, nós lidamos (Rocha o confirmou) com comunicações dissimétricas; mas justamente o trabalho efetuado sobre elas tende a uma simplificação, de fato a uma planificação.

O conjunto torna-se então tapeçaria, não mais do imaginário (como em Von Sternberg), ou barroca (em Ophüls), mas da experimentação dos diversos códigos de representação e da sua desconstrução. Rocha declarou:

Creio que é todo o problema da arte moderna, esta dialética entre simetria e assimetria, que pode se tornar convencional, também, em não importa qual momento, deve-se então praticar o exercício de rupturas.

— Glauber Rocha, entrevista aos Cahiers du cinéma

Assim, no interior desta tapeçaria, nós temos uma sequência voluntária de deslocamentos se articulando uns aos outros e relativos a todos os elementos inscritos na representação. O povo do vilarejo, os atores, os riscos da filmagem (espadas se encontrando durante o duelo) seguem seu próprio discurso. Cada elemento mantém relações visíveis entre o seu real e a fábula na qual ele participa. Rocha funde o todo na montagem; mas esse todo existe para além do processo de repetição ou de ablação que lhe impõe Rocha. Muito mais que produzir uma estrutura barroca ou confusa, isso determina uma certa liberdade de movimento, em que todo esquematismo é banido.

A “mensagem” do filme (última cena) torna-se então uma necessidade estrutural. A aliança do professor e do matador de cangaceiro não é o resultado de uma maturação política, infligida por uma ficção demagógica, mas uma trama de signos, produzidos pelo conjunto do objeto, o que Rocha confirma na sua citação direta do western. Isso abrevia consideravelmente as mitologias fascinantes.

Aliás, para se convencer, basta constatar a repetição voluntária da morte do coronel; repetição que conduz o espectador a um lampejo que se apaga pouco a pouco para se transformar em um fato abstrato. Esse plano é o único que não pode se conformar às noções de teatro.


Cores de O dragão da maldade contra o santo guerreiro

A cor será feita em uma tradição da gravura brasileira. Vamos trabalhar sobre as cores primitivas; vamos trabalhar também em função da luz natural para conseguir a cor mais especial.

— Glauber Rocha, entrevista a Image et son n.º 236

Em O dragão da maldade contra o santo guerreiro a cor importa tanto no seu funcionamento como na sua elaboração. Entretanto, Rocha evita o simbolismo ou o referencial. Ele utiliza as cores dos imaginários populares, as quais ele situa na arquitetura da imagem com uma vontade pictórica selvagem. Sem sofisticação, apenas um fator suplementar na tapeçaria. Certamente, a cor é violenta, mas o que esta qualificação quer dizer exatamente? Que as cores agridem? Que os coloridos intervêm precisamente etc., etc.? Não, não há qualquer temática das cores; há apenas uma linha melódica suplementar se articulando com o conjunto. Quando se perguntou que importância ele atribui à cor, Rocha respondeu que era importante que um filme brasileiro fosse em cores; era uma forma de descolonização pois os brasileiros possuíam um complexo diante dos filmes americanos coloridos. Isto não quer dizer que existe apenas um trabalho técnico no plano cromático em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Rocha no início impõe cores que se colocam em movimento para conduzir o filme ao seu ponto de chegada. Ele teve o cuidado de evitar o “agradável” ou o “poético”. Por isso as cores são duras como a luz do sol.


Proposições para debate


Diferentes formas de representações em O dragão da maldade contra o santo guerreiro.
Estudar as relações: multidão/improvisação e ator/monólogo.
Dinâmica da cor.
Teatralização da fábula revolucionária.
Comparação com Os fuzis (Ruy Guerra, 1963-1964) e os outros filmes de Rocha.
Informações sobre o Brasil.
Articulação entre o plano dos créditos e o duelo.
Importância da música.


Bibliografia


Cahiers du cinéma: n.º 195 (Cela s’appelle l’aurore, texto de Glauber Rocha), n.º 214 (entrevista com Glauber Rocha por Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni).

Revue du cinéma – Image et son: n.º 218 (especial América Latina), n.º 236 (entrevista com Glauber Rocha por Noël Simsolo), n.º 249 (textos de René Gardies sobre O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas [Cabezas cortadas, 1970]), n.º 250 (textos de Noël Simsolo sobre os dois mesmos filmes).

Diversas entrevistas e textos em Positif...

A título de informação:
O Brasil por Miguel Arraes – Cahiers libres n.º 155 – Maspero.
Les 20 amériques latines au SEUIL por Marcel Neidergang.


Notas:


[1] O leão de sete cabeças e Cabeças cortadas.

[2] “Société des réalisateurs de films”, associação de cineastas fundada em 1968, responsável pela criação da Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes de 1969. [N.T.]


(Revue du cinéma – Image et son n.° 259, março de 1972, pp. 3-8. Traduzido por André Barcellos)

 

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