FANTASMAS NA MÁQUINA
por Lucas Baptista



I

Cristal e chama, duas formas da beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se, duas maneiras de crescer no tempo, de despender a matéria circunstante, dois símbolos morais, dois absolutos, duas categorias para classificar fatos, ideias, estilos e sentimentos.

— Italo Calvino

O que permanece após o encontro com um filme? Ou ainda, no espírito da citação de Calvino: que imagem um filme cria no espectador, após este encontro?

A natureza da experiência cinematográfica é transitória. Cada átomo de informação apresentado é imediatamente levado pelo projetor; qualquer constelação de sentido que se destaque é colocada sob a perspectiva da incontornável sucessividade. Se em artes como a pintura, a escultura ou a arquitetura é possível ao espectador se referir a partes estáticas, é porque as obras desdobram-se espacialmente de maneira estável, fazendo com que o tempo da experiência, se variado, o seja por fatores externos. O espectador da escultura pode mover-se à sua volta, tocá-la, observar repetidas vezes suas proporções: tudo colabora para que a imagem mental seja lentamente estabelecida no decorrer deste processo. No cinema, é a convenção em si e a constituição material das obras que tornam as mesmas tarefas impossíveis. Encarar um filme é colocar-se à disposição de um encadeamento visual e sonoro marcado por um ritmo específico, ordenado e calibrado previamente. No encontro cinematográfico, não há objeto estável; imagens e sons, após a acelerada impressão sensorial, desaparecem. Como a música, o cinema é uma arte que nasce e morre no tempo.

Uma investigação mais profunda não poderia ignorar a base cognitiva e a contribuição do espectador à experiência. O que me interessa aqui, entretanto, é um terceiro elemento: a composição da obra. Em que medida a constituição de um filme afeta este processo ou define as margens pelas quais ele ocorre? De que maneira os princípios de criação e organização dos filmes se refletem na imagem que criam no espectador?

Certas obras, pela força de suas ilusões ou pela coerência de suas trajetórias, estendem-se com amplitude na memória. Neste caso, a forma se revela com alguma clareza; a disposição das partes tem o propósito de um discurso, pois o que nos é dada é a necessidade dessa ordem, sua estrutura direcionada. Recorremos mentalmente a essas obras como a poemas cuja métrica delimita o ritmo e antecipa as palavras. Como um exemplo desta tendência poderíamos citar Um corpo que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958), um filme em que as simetrias, inversões e recorrências de motivos fazem mais do que facilitar a fixação do arco dramático: são a própria definição deste arco, um traçado seguindo as estritas leis da causalidade narrativa.

De outras obras, somos capazes de reter apenas um instante particular, um gesto, um corte, um fragmento no qual reconhecemos um tema, uma emoção, um temperamento familiar. O domínio exercido aqui não é o da estrutura, mas o da atmosfera ou da impressão. A geometria se dissolve conforme avançamos e, ao final do percurso, mais do que uma ordem, sentimos que certas coisas desapareceram perante nossos olhos e que a projeção nos permitiu vislumbrar, em sua impassível regularidade, algo da ordem do inefável. Mas a reverberação posterior não raro nos parece mais que um resquício da experiência: parece a experiência mesma, sintetizada e simbolizada em uma de suas partes, vaga e indefinida como esta seja. Um filme como Dog Star Man (Stan Brakhage, 1961-1964) é emblemático nesse sentido, com imagens e movimentos sendo variados em um número tão elevado de combinações que apenas alguns pontos se destacam, como se nos restassem apenas os centros gravitacionais ao redor dos quais testemunhamos o vórtice incessante. Se Hitchcock pode ser considerado um modelo de cineasta da ordem geométrica e direcionada, Brakhage seria sua antítese, a quintessência da impressão fugidia e resistente à disposição cristalina.

Essas divisões nos servem como inclinações ou referências. Não é improvável que todo filme deva necessariamente se erigir sobre os pilares do traçado consciente e da abertura à efemeridade. Não me cabe aqui esgotar a questão, portanto, mas utilizá-la como ponto de partida.

É um lugar-comum que o cinema narrativo, de maneira geral, opera numa chave semelhante àquela descrita no filme de Hitchcock, do que decorre sua dependência de elementos como o plano e o raccord, fundamentais na criação de uma estabilidade a ser conduzida sob a pressão da causalidade. Não é menos comum a ideia de que o cinema experimental se orienta por outras questões, muitas vezes rejeitando a lógica dramática, a caracterização e mesmo as noções básicas de plano ou decupagem. O que proponho, então, é um cruzamento dessas vertentes, como forma de observar um conjunto de obras que possui interesse evidente na elaboração estrutural, mas também no caráter passageiro e puramente material da experiência fílmica.


II


Há uma história frequentemente citada sobre a entrada de Ernie Gehr no mundo do cinema, e que parece revelar, senão o caráter de seus filmes, algo das intenções e dos interesses que os sustentam. Recém-dispensado do exército, Gehr teria vagado pela noite nova-iorquina sob forte chuva até se abrigar num prédio que logo descobriu ser um cinema onde ocorria a exibição dos filmes de Stan Brakhage. De acordo com o relato, a sessão teve um efeito tão intenso sobre Gehr que nas semanas seguintes ele tomou a decisão de fazer os próprios filmes. Ao ser perguntado sobre o que o atraiu na obra de Brakhage, ele respondeu: “seu grau de abstração, sua preocupação com textura, cor e ritmo, em vez de trama, suspense e drama psicológico”. Não tendo qualquer formação teórica ou conhecimento prático sobre cinema, Gehr frequentou o Millennium Film Workshop, administrado por Ken Jacobs, onde aprendeu a utilizar as ferramentas necessárias. Quando uma câmera não estava disponível, tomava em mãos apenas um fotômetro e vagava pela cidade medindo a luminosidade em diferentes locais e ocasiões, se acostumando com o novo instrumento, tornando-se, ele próprio, sensível à luz[1].

Uma atenção às condições materiais do cinema, da filmagem até a exibição, foi desde o início uma de suas marcas, rendendo aproximações com a tendência chamada à época de “cinema estrutural”. O termo, estabelecido por P. Adams Sitney, abarcou certos filmes surgidos em meados dos anos 1960 nos quais as preocupações modernistas da vanguarda americana pareciam elevadas a um grau máximo. Se a abstração, a textura, a cor, o ritmo e a rejeição da narrativa foram tópicos recorrentes em filmes anteriores ao período, na obra de Michael Snow, Hollis Frampton, Joyce Wieland e Paul Sharits os mesmos fatores atingiram uma concentração extrema, através de procedimentos repetitivos que estabelecem um “formato” geral, colocado por sua vez como a primeira impressão na mente do espectador. Há aqui uma tentativa de dar à obra um tipo de traçado reconhecível, e que poderia delinear o material fílmico na experiência temporal da mesma maneira que um objeto tem seu perfil delineado no espaço. No centro da definição do cinema estrutural está uma tensão entre a organização diagramática da forma e o fluxo temporal inerente à projeção.




Morning (1968) é a primeira obra “oficial” de Gehr. O filme se inicia com planos da janela de um quarto, vista pelo interior do cômodo. A passagem de um plano a outro é enfatizada tanto pela aceleração da montagem como pelas variações de luz, perceptíveis por seu alto contraste. Após alguns segundos de escuridão surgem outros planos da mesma janela, agora a uma distância maior, possibilitando a visão quase integral do quarto. O enquadramento centraliza a janela; no lado esquerdo vemos uma cama, no direito uma estante. Esta é a arena do filme, onde ocorre a principal intervenção do cineasta: uma série de alterações na configuração da câmera, nas proporções do quadro e sobretudo na abertura do diafragma. Conforme o diafragma se fecha, a luz que entra pela janela é esmaecida, e percebemos com mais definição os contornos e detalhes dos objetos no quarto; em determinado ponto, a luz se torna tão fraca que não é suficiente para iluminar o quarto; vemos, assim, apenas o contorno da janela e, dentro deste retângulo, o fundo em sua parca luminosidade. Conforme o diafragma se abre, os contornos se evidenciam; mas logo a luz torna-se tão intensa que os objetos são envoltos em um halo dourado, até finalmente mergulharem na cintilação que toma conta de todo o espaço, tornando invisível mesmo o contorno da janela. As variações são por vezes graduais, como num fade em direção ao branco ou ao preto, e por vezes intermitentes, com saltos e intervalos maiores.

A concentração estrutural do filme é evidente. Tendo fixado a direção da câmera e os eventos perante a ela, Gehr se dedica à manipulação de poucos parâmetros. Quase toda a modulação deve-se à variação luminosa, com breves intervalos em que o quadro é reduzido ou ampliado. Morning investiga diretamente algo tomado como pressuposto por uma infinidade de filmes: a luz como aquilo que nos permite reconhecer objetos, espaços e eventos, por ser a substância mesma do processo fotográfico. Sendo a luz um dos fatores primordiais, é perfeitamente possível que toda a composição seja organizada em torno dela: em princípio, não é necessário que nada além da luz seja alterado em um filme. Existe, afinal, uma escala luminosa; existem pontos onde a luz impede o reconhecimento da realidade espacial, seja este o domínio da claridade ou da escuridão. A liberdade do cineasta nessa escala é análoga à de um músico que improvisa com valores dinâmicos, atingindo ora o silêncio, ora o limite superior da audição. A cada operação, o que resulta é um movimento possível apenas no cinema, uma decorrência da luz projetada no tempo. O movimento aparenta ser contínuo quando o pulso luminoso surge e desaparece no quarto como uma única onda de energia; mas quando o movimento é fragmentado, quando ocorrem saltos entre as configurações, percebemos o fator rítmico que ao mesmo tempo isola cada fotograma e os submete ao padrão articulado. A relação entre “fotograma” e “plano” é assim redefinida nos termos próprios de Gehr, para quem um plano é nada mais que “uma região do espectro da luz estendida pelo tempo”[2].




Em Reverberation (1969), Gehr parte de um material filmado nas ruas de Nova York, estendendo a duração pela repetição dos fotogramas e alterando as qualidades luminosas com uma impressora ótica. O registro monocromático tem sua granulação intensificada, como se o próprio suporte borbulhasse constantemente. Durante todo o filme, há um ruído extremamente denso: o som das perfurações da película, filtrado por algum tipo de eco ou compressor.

As imagens mostram um jovem casal na cidade. Eles são acompanhados por outras pessoas num cruzamento, observando algo que se encontra fora de quadro. Em seguida, são vistos sozinhos em outro espaço, uma calçada em frente a uma imensa parede de concreto. O fato de incluir pessoas, e sobretudo pessoas que parecem lidar com uma situação vagamente narrativa, faz com que o filme de Gehr tenha uma atmosfera insólita; a ocasião que envolve o casal nos é completamente alheia, vista de maneira elíptica, e não é sequer apresentada com nitidez, já que em vários momentos a imagem é tomada pela granulação brilhante. A constante manipulação termina por sugerir uma narrativa que envolve as pessoas enquadradas mas as coloca em relação direta com os eventos puramente fílmicos, que ocorrem no suporte da representação. Quando o casal, de costas para a câmera, observa algo que parece acontecer em uma região distante da rua, a cena ganha um caráter escultural, típico de planos filmados em profundidade, e isso coexiste com as mudanças de luminosidade efetuadas por Gehr, desde leves variações de brilho e contraste até um banho luminoso que dissolve todo o conteúdo em uma nuvem branca e metálica. Ouve-se ainda, no decorrer de toda a cena, o mesmo ruído assombroso, sobrepondo um tom de perigo iminente à situação. A granulação e sua contraparte sonora são responsáveis pelo tom dessa narrativa, e pelo próprio fato de existir algum direcionamento no material, ainda que vago e incompleto, visto que não há relação sintática entre os planos. Todos que habitam o filme o fazem como se estivessem imersos num fluido denso e pesado; os gestos são arrastados, o sentido é abstraído. Mesmo quando o homem e a mulher estão imóveis, parecem interagir com a grande câmara fílmica que segue seu movimento particular, um campo de forças indiferentes à presença humana. Este é um universo de grão e ruído, onde pessoas e eventos emergem como possibilidades, e onde sua própria existência é ressignificada pelas coordenadas da imagem e do som.




Em Serene Velocity (1970), o corredor vazio de uma universidade é enquadrado simetricamente à noite, marcado por uma tonalidade azulada, quebrada apenas pelas sombras, as linhas brancas das lâmpadas fluorescentes e o vermelho das placas de saída. Gehr mostra este corredor seguindo um padrão de montagem: alguns fotogramas são apresentados de uma mesma posição; há então um corte para o mesmo enquadramento, o mesmo número de fotogramas, mas com um leve zoom in; em seguida, um corte para o mesmo enquadramento, o mesmo número de fotogramas, mas com um leve zoom out. O princípio é mantido por toda a duração. A combinação dos zooms é como uma sístole e diástole em relação ao enquadramento inicial. Não há movimento no interior do espaço. Toda a progressão resulta da variação dos intervalos entre os fotogramas – as distâncias de um enquadramento a outro. O ritmo da variação é constante, mas as distâncias aumentam gradativamente, conforme os enquadramentos se afastam do ponto central. Se em Morning a luz era o fator isolado e manipulado, em Serene Velocity isso ocorre com a distância focal da lente: é esta a escala selecionada por Gehr para realizar sua composição, desta vez com uma abordagem absolutamente regular.

Serene Velocity se caracteriza também por um movimento propriamente fílmico e pela exploração de um espectro, efetuada neste caso pela travessia do conjunto de possibilidades. É excluída apenas a região da escala identificada com a continuidade, com o plano, consequência da escolha de um ponto central do qual os trechos posteriores irão se afastar. Não há mais a fluidez, apenas diferentes níveis de contraste. No início do filme, quando a distância entre os enquadramentos é pequena, as cores tremulam como se desligadas de um movimento contínuo, e sua proximidade permite que o corredor seja percebido com certo volume e profundidade. À medida que a distância aumenta, o pulso torna-se mais percussivo, e a profundidade do corredor dá lugar ao achatamento da tela, transformando objetos e luzes em formas geométricas que, em sua alternância, sugerem um lento e prolongado efeito de flicker. O que se desenvolve é um jogo perceptivo, uma investigação sobre a consistência de um “espaço-tempo fílmico”, um campo de fenômenos ópticos possíveis apenas devido ao aparato do cinema. Não experimentamos o corredor em profundidade fora das coordenadas estipuladas; também não experimentamos as formas geométricas na superfície da imagem fora destas coordenadas; devemos necessariamente integrar os dois pólos sob o ritmo imposto pela composição. O filme torna-se uma camada perceptiva através da qual podemos observar uma parte do mundo, mas uma camada que não pode senão alterar a própria substância da visão, que se revela um elemento ativo nesta cadeia.




Still (1969-1971) é dividido em cinco seções. Todas mostram uma rua filmada pelo mesmo ponto de vista. A primeira seção é silenciosa, mas da segunda em diante há som que parece às vezes direto e às vezes estreitamente relacionado à cena. Como em Serene Velocity, uma única técnica é escolhida por Gehr: neste caso, sobreposições de imagens da rua sob um enquadramento comum, em diferentes épocas do ano. Dessa forma, vemos, por exemplo, um carro estacionado, e percebemos que, por sua opacidade, é parte do plano principal, enquanto ao mesmo tempo vemos um segundo carro, translúcido, atravessar a tela, compreendendo que se trata de uma sobreposição. Gehr controla as imagens como diferentes tecidos muitas vezes somados em um único plano. O cruzamento das características e níveis de transparência gera efeitos curiosos, como quando a imagem de um caminhão escuro atravessa a tela lentamente, ao mesmo tempo em que uma segunda imagem, mais transparente, de um táxi amarelo, atravessa a tela rapidamente – vemos o táxi apenas enquanto ele passa pela área coberta pelo caminhão, pois o resto da tela é claro demais para que ele seja visível.

Cada uma das seções mostra a rua numa estação diferente, o que percebe-se tanto pela qualidade da luz como pelas folhas na árvore posicionada no lado esquerdo do quadro. Os dois extremos são a seção que ocorre no inverno, com a árvore seca e a luz mais difusa, e a seção que ocorre no verão, com a árvore já repleta de folhas e a luz claramente marcada. Há com isso uma influência direta sobre a vivacidade das cores, criando uma impressionante variedade cromática, com vermelhos, amarelos e verdes sendo esmaecidos ou dinamizados pela menor ou maior presença das sombras. Se o filme ensina algo sobre as condições básicas do cinema, é que a percepção da opacidade ou solidez dos objetos deve-se apenas à repetição de um padrão de luz sobre a mesma região do enquadramento. Assim como o movimento contínuo, a opacidade no cinema deve ser construída: ela existe apenas em circunstâncias específicas. A película em si é transparente. Quando nos deparamos com o vermelho da parede, significa que a composição daqueles fotogramas subtraiu verde e azul do feixe luminoso do projetor. Isso é tornado explícito no filme quando as diferentes camadas interagem, influenciando a constituição cromática dos objetos no decorrer de suas trajetórias. Se apenas a película transparente fosse exposta, veríamos a tela completamente branca. Um filme – qualquer filme – é uma composição de transparências e opacidades, de subtrações e combinações de formas e cores sobre a película para que o tempo da projeção seja modulado, esculpido com um sentido particular.




Eureka (1974) se apropria de um único plano, um travelling frontal pela Market Street de São Francisco, filmado em 1906. O bonde no qual se posiciona a câmera atravessa toda a extensão da rua, enquanto esta é cruzada por pedestres e outros veículos. O material original tem duração de aproximadamente cinco minutos, e corresponde a um exemplar dos registros urbanos, comuns no início do século XX, que utilizavam meios de transporte para dinamizar a filmagem, integrando-a ao espaço e ao movimento da cidade. O plano é retomado por Gehr, que repete cada fotograma de seis a oito vezes, estendendo a duração para cerca de 40 minutos, alterando os contrastes e as flutuações de luz. A representação do movimento é reconfigurada pela extensão temporal, e os riscos na superfície da película são multiplicados e mais claramente percebidos. Veículos e pessoas, num registro histórico, coexistem com as marcas da própria história sobre o material fílmico.

Mais uma vez o movimento contínuo é reinterpretado por Gehr. A continuidade é dilatada a partir de seus componentes elementares (os fotogramas), criando uma linha que mantém a estrutura inicial (o movimento em profundidade) mas possibilita a articulação em um nível mais específico. Em Eureka, o plano não é sinônimo do filme ou sua unidade elementar: é sua matéria-prima. A repetição dos fotogramas afirma a presença de cada um deles como entidade fotográfica, composições congeladas no tempo, tornando evidentes suas propriedades materiais; mas a manutenção do movimento, especialmente o movimento com frequência e direção nitidamente determinadas, enfatiza também o caráter de representação de um evento. É essa tensão entre a superfície e a profundidade, entre a imagem fixa e a imagem fugidia, que é tratada por Gehr sobre a estrutura do plano. Assim como em Serene Velocity, não é permitida em Eureka a experiência direta do espaço real – neste caso, sua travessia em tempo real. O movimento do plano tem seu andamento reduzido, e o movimento da película, evidenciado pelas variações mínimas entre os fotogramas, parece às vezes ganhar a frente, como se buscasse a própria liberação, mostrando de uma só vez a imensa quantidade de etapas em um movimento e a riqueza de detalhes decorrente da multiplicação dessas etapas em um mesmo quadro. O filme é um microscópico peculiar, que expande a percepção temporal tanto quanto a espacial, mas o mecanismo que permite a observação torna-se ele mesmo parte da observação. Gehr propõe com isso uma espécie de princípio de incerteza cinematográfica: uma vez que apreendemos a posição de um fotograma, seu momento é perdido; mas se apreendemos o momento de um fotograma, sua posição é perdida.


III

Aparições, coisas que surgiam no mundo sem que existissem causas, coisas que estavam separadas do universo pois eram efeitos puros, sem nada que os antecedesse, sem uma lógica, sem uma lei: os jogadores atiravam os dados para a mesa e os resultados apareciam. Como fantasmas...

— Gonçalo M. Tavares

Consideremos duas analogias pelas quais o olhar crítico pode se referir a uma obra: o organismo e o mecanismo. O paradigma mecanicista é representado pela análise redutiva, pela compreensão nos termos das partes constituintes e do isolamento das relações entre elas – relações sem propósito especial. O paradigma organicista, por sua vez, é representado pela síntese holística, pela compreensão nos termos da totalidade do conjunto, da interdependência das relações entre as partes – relações com direcionamento teleológico. Um organismo é normalmente mencionado como aquilo que exibe uma complexidade infinita, como se uma rede de causas além da compreensão humana estivesse por trás daqueles processos. O mecanismo, por outro lado, é aquilo que tem sua complexidade reduzida a processos finitos, conscientemente dispostos e reconhecíveis por análise empírica. É nesse sentido que encara-se um organismo como possuindo “vida própria”, enquanto o mecanismo apenas reproduz o funcionamento externo, e não seu princípio vital interior.

Poderia uma máquina suficientemente complexa representar a vivacidade orgânica? A diferença situa-se talvez na aparência de determinação dos elementos; a percepção das causas por trás da ordem seria o obstáculo a ser superado. Para que a máquina não aparente determinação completa, ela deveria incluir, em sua própria composição, uma série de interferências, de elementos que tornem a ordem mais difusa, que criem discrepâncias ou curtos-circuitos no funcionamento do sistema, como se este pudesse interagir com o ambiente e nele estabelecer seu propósito específico.

Em todos os filmes aqui citados, a aspiração mecânica é evidente. Cada um deles se atém a um local e um procedimento técnico, executando, dentro desse campo, variações que terminam por preencher toda a duração. Morning se concentra em um quarto, e nele a luz é variada. Reverberation utiliza um conjunto reduzido de planos, sobre os quais são manipulados o som e a granulação. Serene Velocity se passa em um único corredor, onde a distância focal é o elemento articulado. Still faz com que o mesmo enquadramento se multiplique através das sobreposições. Eureka parte de um travelling em uma rua para, sobre ele, executar modulações de movimento e luminosidade. Os filmes voltam-se, portanto, a espaços, e encontram na própria estrutura de tais espaços a organização de sua forma composicional, uma arquitetura fechada.

Se nos fosse possível estender os rolos de cada um dos filmes e observar sua totalidade, não poderíamos ignorar o rigor da construção: a manutenção de um “fundo” (os espaços), a divisão aritmética das partes, o aspecto combinatório das alterações. Em outras palavras, a estrutura construída por Gehr, seu artefato, decorrente de técnicas específicas sobre as quais exerceu controle. Esse controle é estrito ao nível do enquadramento, geralmente centralizado ou reforçando a perspectiva. As linhas demarcam os limites da imagem, estabelecem as divisões, inauguram um regime gráfico. É estrito o controle também ao nível da duração, chegando ao extremo da contagem de fotogramas em Serene Velocity. Na regularidade geral da organização, o sentido é o da pura relação: declara-se um espaço-tempo particular do filme, um mecanismo autônomo.

Neste cenário sólido e determinado, entretanto, a presença de uma única substância instável altera fortemente o propósito da composição. A câmera em Morning centraliza a janela em um enquadramento fixo, mas a luz invade o quarto, irradia sua energia em todas as direções, e tudo se dissolve no branco completo, fazendo com que mesmo o enquadramento seja desestabilizado. O corredor em Serene Velocity está vazio, mas o salto entre as distâncias revela aos poucos os objetos dispostos em sua extensão, impondo sua forma e presença à memória, surgindo e desaparecendo na trajetória fílmica. As pessoas em Reverberation são cobertas e reveladas pela granulação; os veículos em Still são guiados e remodelados pelas sobreposições; os de Eureka são atravessados pelos riscos e manchas da película. Os resultados partem da abordagem consciente, mas é como se esta fosse uma armadilha para atrair tudo o que é complexo demais para ser planejado. Na recusa do direcionamento causal, concentrando a atenção em um número reduzido de procedimentos, Gehr faz da regularidade espaço-temporal uma grade através da qual somos capazes de perceber as mais sutis variações materiais. Sem estas variações, os filmes seriam máquinas autocontidas. Mais do que uma simples aspiração à coexistência entre ordem e acaso, o que encontramos nessas obras parece ser uma investigação sobre os mínimos denominadores comuns que permitem a ordem e o acaso no cinema. De um lado, as propriedades físicas do movimento, as características mecânicas do fotograma e do plano, sua capacidade de ser medido ou quantificado. De outro, a maneira como a luz e a cor são percebidas, como definem a visão através de grãos e transparências, como determinados efeitos parecem brotar na cognição em momentos inesperados. Dentro do cristal, a chama brilha de maneira vacilante, imprevisível.

Tudo o que não é da ordem do controle consciente ganha assim o estatuto de uma lei natural. Nessas obras que rejeitam a construção narrativa, as leis da máquina do cinema, suas próprias partes, precisas e regulares, devem elas mesmas contribuir na criação de um drama das formas. Nessa dimensão baseada no rigor técnico e na recorrência de materiais, há algo que surge “sem que existam causas”, algo separado do universo externo, “efeitos puros, sem nada que os antecedesse”. Algo que existe entre a realidade do mundo e a realidade do cinema[3].

A ênfase no caráter material da construção fílmica coexiste com a descoberta de tudo aquilo que só ganha vida durante o encontro com a obra, os movimentos particulares, irregulares, da própria máquina cinematográfica. Uma vez estabelecidos os limites, as regras do jogo, uma vez lançados os dados, o cineasta se retira e observa as incalculáveis variáveis sendo cruzadas, desdobradas, amplificadas. O simples contato entre as partes, a mais delicada fricção entre as peças faz com que o universo fílmico pareça ter uma vida própria. O plano, a cena, a opacidade, tudo deve ser construído, e no decorrer dessa construção percebemos que os desvios e ruídos levam a caminhos com igual expressividade. Os eventos são atomizados e fragmentados, mas sofrem depois uma fusão, em um novo ritmo, que os devolve ao fluxo do tempo pela projeção. Este processo não evoca o fantástico ou o sobrenatural; em vez da suspensão da descrença na realidade representada, há uma afirmação das próprias técnicas e de seus resultados, de modo que simplesmente aceitamos “a presença de toda a obra como uma ilusão fílmica”[4].

O que encontramos nessas obras é uma exploração da capacidade do cinema de atribuir vida a partes isoladas ou inanimadas, capacidade que se encontra em sua gênese como técnica de sugerir o movimento através de fotografias, e que é aqui expandida em várias direções. É característico nesses filmes que se parta de objetos e espaços, que eventos naturais sejam revistos e decompostos, mas que isso não diminua os tipos de movimento e transformação. Estes corpos e espaços transfigurados são algo como os fantasmas do cinema: fantasmas cujo passado ou memória independem de qualquer ficção ou mesmo dos eventos aos quais parecem relacionados, e cuja invocação depende inteiramente da eletricidade que atravessa os rolos de filme durante a projeção. Assim como não interfere diretamente nos eventos que registra, Gehr não interfere nas condições de apresentação dos filmes; ele as conduz, como um regente, consciente de que algo que deve nascer do próprio núcleo do dispositivo. Uma vez compostos os filmes, eles são entregues ao projetor como a um intérprete.

Não é o mundo, portanto, que encontramos nos filmes de Gehr, ou sua recriação baseada na percepção usual. É o mundo particular do cinema, descoberto em suas regras únicas e mediado pela percepção de um criador: uma arte que, nas palavras do próprio cineasta, “não reflete a vida, mas encarna a vida da mente”[5]. O homem que um dia encontrou no cinema o abrigo para uma tempestade se tornou uma espécie de cientista lírico, um investigador da câmera, da película e da sala de projeção, especialista em uma ciência válida unicamente por alguns instantes, mas que nesse intervalo é capaz de trazer à vida toda espécie de formas apenas para em seguida fazê-las desaparecer na escuridão.


Notas:


[1] A história é contada por Gehr em Scott MacDonald, A Critical Cinema 5: Interviews with Independent Filmmakers (Berkeley: University of California Press, 2006), pp. 361-363.

[2] Ernie Gehr, “Program Notes by Ernie Gehr”, Film Culture n.º 53-54-55 (1972), pp. 36-37.

[3] Essa mesma ideia é elaborada por Gilberto Perez em The Material Ghost: Films and Their Medium (Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1998).

[4] Regina Cornwell, “Works of Ernie Gehr from 1968 to 1972”, Film Culture n.º 63-64 (1977), p. 30.

[5] P. Adams Sitney, Eyes Upside Down: Visionary Filmmakers and the Heritage of Emerson (Oxford: Oxford University Press, 2008), p. 203.


(A versão original deste artigo foi publicada na revista Galáxia n.º 34, janeiro-abril de 2017, pp. 98-111)

 

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