OS TESTAMENTOS DE EISENSTEIN
por Lucas Baptista



I


“Se o ponto crucial no desenvolvimento cinematográfico reside – como eu acredito – na avaliação e redefinição da natureza e do papel da estrutura narrativa, pode-se dizer que a história do academicismo no cinema e na crítica tem sido a da substituição de formas e valores literários por teatrais.” Quando esta declaração foi feita em 1966 por Annette Michelson, seu alvo foi a tradição realista, defendida por André Bazin, e um de seus contra-exemplos foi Alain Resnais. Naquela ocasião, Michelson não sabia, não podia saber, que Resnais se tornaria um dos nomes a substituir formas e valores literários por teatrais.

O que se poderia observar já naquele momento é que uma das figuras mais emblemáticas em termos de inventividade formal na história do cinema teve uma trajetória semelhante. Décadas mais tarde, o fato se torna ainda mais importante, dado que o ápice da originalidade de Sergei Eisenstein coincide em vários sentidos com o de Resnais. Se Outubro (Oktyabr, Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 1927) é análogo a Hiroshima mon amour (1959), Ivan, o terrível (Ivan Groznyy, 1942-1944) equivale a Medos privados em lugares públicos (Coeurs, 2006). Nos dois casos, a carreira tem início com uma abordagem fundada na montagem. Mais do que isso: funda-se uma concepção do cinema como sendo o meio privilegiado para representar a transformação do mundo efetuada pela consciência inscrita na estrutura da obra. Nos dois casos, a filmografia é concluída pela rejeição deste ideal, e o objetivo é deslocado para a exploração dos modos pelos quais a consciência torna-se inscrita no próprio mundo durante o seu registro pela câmera.

No limite, a influência teatral se caracteriza pela manutenção da unidade espaço-temporal, ou ainda, pela correspondência da realidade filmada com a realidade cênica. Profundidade espacial, continuidade temporal e integralidade do movimento são os principais critérios, e a expressividade no trabalho com os atores percorre toda a composição. As técnicas envolvidas na construção da narrativa – os modos como se distribuem a exposição e a dramatização – seguem essas diretrizes e com isso restringem, focalizam as possibilidades formais. O caráter objetivo das aparências é reforçado, e o mundo visível, em sua unidade concreta, é tornado uma espécie de ponto de convergência dos meios de representação.

A influência literária, sobretudo quando ecoa as aspirações do modernismo, é definida de maneira distinta. Enfatiza a recomposição dos dados recebidos pela câmera e sua organização em uma estrutura abstrata, que afirma a própria autonomia. A representação realista – o desvelar de um relato correspondendo em alguma medida ao mundo natural – pode ser uma referência, mas não a primordial. A organização formal do discurso ganha ênfase à medida que o interesse volta-se mais ao processo constitutivo da realidade do que à sua presença.

É uma noção elementar que a narrativa, longe de apenas representar o mundo, o transfigura; que suas propriedades espaciais e temporais, sua manipulação de escalas e ritmos, de padrões e texturas, estabelecem uma realidade própria. Mas não é trivial que todo um projeto de cinema seja baseado na hipóstase desta noção, em sua centralização e amplificação permanentes. Este projeto inclui uma suposição complementar, mais rara e mais valiosa: parte do princípio de que a unidade a ser considerada na obra é a de uma mente que recebe os dados fílmicos e os recompõe com a memória e a expectativa, e que se esta reconstrução opera internamente no espectador, é à lógica desses processos internos que a composição deve se ater, e não à dos eventos externos, registrados pela câmera. Na interação entre a consciência e o mundo, a tradição literária, exemplificada pelo auge das filmografias de Eisenstein e Resnais, destaca o primeiro termo. A vertente teatral, representada pela etapa final de suas obras, dá preferência ao segundo.

Sabemos que Eisenstein desejava adaptar Ulisses, e que mobilizou as suas descobertas para adequar a forma cinematográfica às exigências trazidas pela literatura mais avançada de sua época. O que estava em jogo era a possibilidade de inscrever, na construção fílmica, os mais variados processos mentais, da argumentação lógica ao fluxo de sensações pelo qual o romance de Joyce se tornou célebre. Os exemplos mais bem-acabados desse esforço são duas sequências de Outubro: na elevação da ponte, Eisenstein restabelece as coordenadas espaço-temporais que definem o evento, e por consequência sua apreensão pelo espectador, através de intervalos gráficos e rítmicos, monumentalizando o instante e o distendendo ao ponto da alegoria; e na comparação entre os ídolos, sugere um espaço-tempo abstrato, metafórico, no qual organiza um encadeamento de associações, opondo e comparando as figuras da revolução em uma verdadeira constelação mental.

Resnais, de maneira semelhante, recrutou já no início de sua carreira os autores que viu como sendo os mais interessantes na literatura contemporânea, e direcionou seus esforços à resolução dos problemas colocados pelo trânsito entre a voz narradora e o mundo referido por esta voz. Como Eisenstein, ele parece ter reconhecido que “o verdadeiro material do cinema sonoro é o monólogo”. Marguerite Duras foi então a sua primeira colaboradora nos longas-metragens, e já no início de Hiroshima mon amour ambos propuseram uma estratégia análoga à sequência dos ídolos de Outubro: um espaço-tempo transversal à história e à consciência individual, que recompõe diversos contextos em um só fluxo, utilizando a memória como referência para uma jornada na paisagem marcada pela guerra. Mais adiante, com um mergulho nas lembranças da protagonista, revelaram por fragmentos os encontros da atriz com o soldado alemão, criando uma versão extremamente concisa da transfiguração de coordenadas realizada na elevação da ponte, substituindo as repetições pelas elisões, a monumentalidade pela condensação.

Há outros pontos de contato entre os dois filmes, desde a organização da narrativa em grandes blocos, até as tentativas de criar, para cada um deles, uma identidade própria, como se a autonomia de cada experiência devesse encontrar sua mais perfeita tradução em um esquema formal único, sem precedentes na tradição. Eisenstein e Resnais encararam os desafios da representação como verdadeiros problemas intelectuais, e para ambos o êxtase das soluções encontradas frequentemente correspondeu à intensidade do resultado na dimensão temática. Na primeira fase de sua obra, Resnais praticamente elaborou um catálogo de estruturas de montagem capazes de figurar experiências traumáticas (sendo o trauma o paradigma de unicidade na experiência), fazendo com a psicologia individual o que Eisenstein fez com a história da União Soviética, representando suas etapas cruciais como mudanças nas placas tectônicas da narrativa. Os massacres em A greve (Stachka, 1924-1925) e O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin, 1925) invocam a força da montagem de maneira complementar aos saltos radicais entre as camadas de memória em Muriel (Muriel ou le temps d’un retour, 1963) e Eu te amo, eu te amo (Je t’aime, je t’aime, 1968).

O início da carreira de Resnais nos documentários foi essencial para essa concepção narrativa, e a última fase de sua obra representou, em grande parte, uma recusa dessa herança. Os documentários de Resnais caracterizam-se por algo como uma coordenação de fatos: objetos, em geral estáticos, são capturados pela câmera em padrões claramente geométricos, e alternados pela montagem em diálogo com a voz e a música. O objeto, por sua recusa da expressividade gestual, se torna o paradigma de elemento não-teatral, e o procedimento fundamental se torna a organização desses elementos com um discurso verbal que os cerca tanto quanto as peças musicais. O resultado é a multiplicação de planos fechados, a repetição de substituições metonímicas, a representação de pessoas por objetos, de cenários por suas partes, variando os eventos por direção, movimento, ritmo, ligando e refletindo as camadas temporais por parâmetros formais. É a força evocativa desse modo que marca o início de sua produção ficcional, e que permite à montagem revelar um caráter quase orquestral, estendendo os princípios da escola soviética ao período sonoro. Resnais nunca foi tão exato na aplicação deste método quanto nos momentos em que a expressividade dos atores é deslocada de sua realidade original: mãos e vozes separadas de corpos, objetos e ambientes recontextualizados, interagindo na temporalidade criada pela narração. O contraponto sonhado por Eisenstein descobre, nesses filmes, um terreno de atuação possível.


II


“Todas as lendas, toda a mitologia e todos os mitos, todos os fundadores de religiões e as religiões em si esperam sua ressurreição luminosa e os heróis se acotovelam em nossas portas para entrar.” Quando esta declaração foi feita em 1927 por Abel Gance, seu objetivo foi exaltar o cinema como uma nova linguagem, e o exemplo central foi o seu próprio filme sobre Napoleão. Naquela ocasião, Gance não sabia, não podia saber, que outra figura histórica teria a sua ressurreição luminosa realizada por Hans-Jürgen Syberberg, cercada de lendas e mitos, em uma forma radicalmente distinta.

O que se poderia observar já naquele momento é que, no século XIX, duas formas de espetáculo anteriores ao cinema serviram como referências para o seu desenvolvimento. Uma delas é a ópera de Richard Wagner, na qual a unificação dos motivos visuais e sonoros, bem como a distribuição de funções dramáticas entre instrumentos e personagens, atesta o caráter sintético do projeto. O objetivo declarado de Wagner era criar uma “obra de arte total”, capaz de absorver o espectador em um drama envolvendo todos os sentidos; de maneira condizente, ele recorreu à mitologia germânica, em busca de temas e imagens fundamentais em sua cultura. A herança wagneriana é reconhecível no cinema narrativo industrial, do qual o filme de Gance é um dos casos mais espetaculares. Esta herança marca também a transição de Eisenstein para a segunda fase de sua carreira.

É significativo que Eisenstein tenha passado de uma concepção de estrutura narrativa baseada na dialética da montagem, tendo como horizonte o monólogo interior, a uma noção do filme como organismo, substituindo a disjunção pela unidade cênica. É sintomático ainda que a passagem tenha ocorrido na transição ao período sonoro, e durante as mudanças no regime de Stálin que culminaram na concepção “heroica” do realismo socialista. Foi neste momento que ocorreu uma guinada romântica no pensamento de Eisenstein, sua aproximação com a ópera e sua revisão do cinema americano. A crítica de Intolerância (Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages, D. W. Griffith, 1916) deu lugar ao elogio de A mocidade de Lincoln (Young Mr. Lincoln, John Ford, 1939). A sequência em que Lincoln e Ann Rutledge conversam à beira do lago, seguida de uma elipse que mostra a visita do protagonista ao túmulo de Ann, é emblemática: as simetrias visuais entre os atores, a transformação da pastoral em luto por meio do cenário, o texto sincronizado com a música exemplificam o cinema como narrativa totalizante, e a força de um mito fundador que orientou as reflexões posteriores de Eisenstein. O ápice dessa abordagem em sua obra foi alcançado em Ivan, o terrível, um filme no qual a manutenção do aspecto cerimonial enfatiza a montagem como fator perfeitamente integrado à cena, submetido à sua unidade espacial e temporal, responsável não por intervenções e abstrações, mas por ajustes e qualificações – a “batida do coração” descrita por Godard.

Há outra forma de espetáculo do século XIX, entretanto, que revela impulsos contrastantes. Na fantasmagoria de Étienne-Gaspard Robert, slides com fundo negro eram projetados com uma lanterna mágica por trás de uma tela translúcida em uma sala escura. A natureza espectral das projeções e a atmosfera de incerteza visual criavam a impressão de que as imagens apareciam no ar, imaterialmente; de modo condizente, o repertório incluía assombrações, esqueletos, figuras mitológicas. Tratava-se de um projeto essencialmente imaginativo, que promovia um espaço abstrato, oposto à representação baseada no relato narrativo ou na concretude da realidade. Diferente da absorção wagneriana, mantinha-se o caráter disperso e artificial das imagens.

A linhagem decorrente incluiu, como se sabe, um homem atento aos espetáculos de magia e ao lugar especial do cinema neste projeto. Quando Georges Méliès produziu Un homme de têtes (1898), ele recorreu, pela primeira vez, ao tecido preto como forma de criar uma ilusão no interior da cena. Com uma intuição semelhante à de Robert, Méliès percebeu que, se apenas a luz é impressa na película, o fundo negro serve como meio ideal para executar múltiplas exposições no mesmo intervalo de filme. Desde que não sejam dispostas sobre a mesma região da tela, as imagens parecem coabitar um único espaço, ainda que filmadas em tempos diferentes. Nos anos seguintes, Méliès desenvolveu um conjunto de técnicas e situações ao redor deste princípio: em filmes como L’homme orchestre (1900), L’homme à la tête de caoutchouc (1901) e L’équilibre impossible (1902), os corpos são fragmentados, multiplicados, distorcidos, estendendo o repertório da fantasmagoria e acrescentando a ela a credibilidade fotográfica. Outros filmes dedicados a truques no mesmo período, como The Big Swallow (James Williamson, 1901) e Les Kiriki (Segundo de Chomón, 1907), seguiram o caminho aberto por Méliès, como o fizeram mais tarde as tradições do horror e da fantasia.

A abstração espacial através do fundo negro foi essencial na obra do próprio Eisenstein. As sobreposições que comparam os animais aos espiões em A greve ocorrem todas a partir da escuridão compartilhada pelas imagens, e em Outubro, em meio a planos enraizados na arquitetura dos locais e que reforçam a dimensão concreta das ações, corta-se muitas vezes abruptamente para objetos centralizados na tela preta, isolados no enquadramento como se mantivessem suspensa a relação com o espaço narrativo. Durante alguns instantes, a imagem torna-se o único contexto, e a realidade fotográfica é submetida à organização do material pela montagem. A escuridão, nestes casos, foi tratada como o espaço paradigmático da imaginação. Não por acaso, Eisenstein recorreu ao procedimento para elaborar ligações metafóricas, interrompendo com isso a construção metonímica que funda a diegese. Kerensky e Kornilov, personagens históricos, foram comparados a ídolos religiosos e à Napoleão, deslocados da narrativa da revolução.

O interesse de Eisenstein por Wagner, e pela concepção da cena como ponto de convergência da representação, fez com que este fator fosse diminuído no período sonoro, mas toda uma linhagem do ensaio fílmico foi aberta por sua exploração nos anos 1920. Essa exploração é mais claramente marcada pelo sonho de um “cinema intelectual”, baseado na operação inversa – a fragmentação do espaço cênico, e a busca por uma temporalidade que emerge da interação entre as imagens, mais do que as coordena. Além de Resnais, foi nesta direção que seguiu o Godard das História(s) do cinema (Histoire(s) du cinéma, 1988-1998), bem como o Kluge de Der Angriff der Gegenwart auf die übrige Zeit (1985). Essa vertente do cinema moderno reconheceu no predomínio da metáfora e na flexibilidade de um espaço abstrato os meios privilegiados para representar o movimento e as transformações do pensamento.

O Hitler, um filme da Alemanha (Hitler, ein Film aus Deutschland, 1977) de Syberberg é, nesse contexto, um filme crucial, verdadeiro ponto de encontro de várias tendências. É um dos inúmeros casos do cinema europeu inspirado por Bertolt Brecht, concentrado em um dispositivo cênico frontalizado, que interpela o espectador de maneira intensa e constante, mantendo as premissas teatrais ainda que para dar a elas um valor relativo. É também um ensaio com alto teor histórico, plenamente consciente de seu caráter espetacular, e que coloca a herança de praticamente todas as outras artes sob o seu domínio. É, finalmente, uma investigação radical do potencial da escuridão como espaço literal e figurado no cinema. Na complexa estrutura discursiva do filme, a escuridão marca o contorno dos objetos, sua ausência de volume na tela; sugere o desenho da iluminação no palco, criando a noção de profundidade; serve de tela às projeções, ao puro jogo de luzes; representa a noite e o espaço sideral, o negativo da matéria; estabelece um denominador comum para todos os conteúdos visuais, independente de suas procedências. O espectro da representação é abarcado por uma única figura. O filme transita incessantemente de um modo a outro, os combina, os intensifica. A onipresença da escuridão potencializa as conotações mitológicas e psicológicas, e o nome de Richard Wagner tem mais do que um subtexto na organização da obra.

Este espaço se define pela multiplicação das ligações internas, e por algo como a fantasmagoria da história. Como descreveu Susan Sontag, “é um espaço de reflexão, de asserção teatral, de emblemas, de julgamento moral, de melancolia”. Nas metamorfoses de um cenário tornado análogo ao inconsciente, capaz de concretizar toda variedade de eventos, Syberberg internaliza, no palco de Méliès, as operações que Eisenstein realizou com sequências de planos. O resultado é uma jornada iconográfica que é tão metonímica quanto metafórica, passando do Nazismo à Alemanha, da Alemanha à Europa, da Europa à Civilização, atravessando a narrativa com ciclos naturais e musicais, com mitos do cinema industrial e de propaganda. No centro, como a bomba de Hiroshima no filme de Resnais, Hitler permanece um buraco negro, o paradigma de figura apocalíptica no século XX, referência totalizante e o fim de todas as cadeias associativas. Hitler é pintado, fotografado, esculpido, interpretado, filmado, enquadrado por todos os ângulos e de todas as distâncias, unificado e fragmentado pelas imagens; ouvimos sua voz, ouvimos vozes recitando suas falas, ouvimos as músicas que ele ouviu e que outros ouviram a partir dele. Como Kerensky e Kornilov no filme de Eisenstein, Hitler se torna um nexo de significados. Tudo o que surge no palco assombrado converge em sua figura, torna-se um eco em sua câmara de ressonância. A história – o pesadelo do qual Joyce desejava acordar – revela-se, assim, o grande monólogo interno de Hitler. Vagando pela terra arrasada que foi a Europa entre as guerras, com a mente repleta de aspirações e entulhos ideológicos, ele se torna uma sombra de Leopold Bloom, outra cria da nova linguagem de imagens, perdido entre o mergulho nas sensações e os anseios violentos. Herói e anti-herói, ambos se acotovelam nas portas do século à nossa espera.

J. G. Ballard escreveu que Chamberlain e outras personalidades da época cada vez mais nos parecem relíquias do passado, enquanto Hitler é cada vez mais contemporâneo, alguém que se recusa a desaparecer, e que deve, por isso, ser confrontado em outros domínios que não o histórico. Syberberg declarou sua vontade de “vencer Hitler no cinema”, e parece ter encontrado na flexibilidade imaginativa do espaço cinematográfico, e na figuração da escuridão, a chave para lidar com o problema. No salto de Wagner até Brecht, ao tocar Méliès no alto, no meio do caminho, Syberberg amplifica o projeto de Eisenstein, descobrindo uma de suas ramificações na dimensão cênica.

 

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