QUADRILHA MALDITA, André De Toth, 1959
João Botelho a ensinar o que Jean-Marie Straub lhe ensinou: “um western de Boetticher pode ser tão bom como um de Ford”.
Um western de André De Toth pode ser tão intenso e vibrante e materialista e cheio de segredos e zonas escuras como um de Ford ou Boetticher.
Quadrilha maldita (Day of the Outlaw), sem Randolph Scott mas com Robert Ryan, em preto e branco e não em cores descoloridas, comprimido e irrespirável, pode fazer remissões aterradoras ao cinema de Straub/Huillet. Mas não interessa muito ou interessa tudo.
João Bénard da Costa sobre Dragões da violência (Forty Guns, Samuel Fuller, 1957), outro insuportável: “Fuller, que sempre foi de conter a respiração, como quando muito se corre ou como quando muito se ama, não foi ao Oeste para respirar naqueles imensos espaços, sublinhados pelo Scope. Foi para nos comprimir num espaço que é um momento perdido nesse espaço”.
Onde Fuller explode e estilhaça e impõe o suntuoso e doloroso lirismo, De Toth implode e ameaça à catástrofe a qualquer segundo e em qualquer cena. Está tudo nas rugas e na beleza da planura da imagem e lá dentro muito dentro.
Longe (aparentemente) das grandes respirações orgânicas das paisagens de Ford; longe (aparentemente) da fúria mineral e do pó dos duelos de Sete homens sem destino (Seven Men from Now, Budd Boetticher, 1956) ou O resgate do bandoleiro (The Tall T, Budd Boetticher, 1957); longe (aparentemente) dos Straub e de tudo o que eles significam?
Mais perto de Anthony Mann e do seu Scope ou bastante mais perto de outro grande e imensamente (criminosamente) esquecido western fora-da-lei, o feérico Dominados pelo terror (Track of the Cat, 1954), do igualmente esquecido William A. Wellman?
Chega de perguntas, chega de raccords. Chega? O que liga tudo isto é que apesar das traições e das humilhações, dos fracos e das fraquezas, das mentiras e dos Judas, estamos em “mundos de homens”. Mundos de justiças, de honra, de bater forte e de repor coisas no lugar certo, de tirar a limpo. Onde quem bate nas mulheres apresta-se a levar na boca e onde crianças reconhecem e compactuam com os de bom coração. Galáxias, constelações e abismos, valores e emoções, sentimentos, que faz de tudo uma e a mesma coisa. Impossível nos dias de hoje.
André De Toth foi igualmente aos grandíssimos espaços e à neve, às florestas e ao frio que corta, enfiou-se nas pequenas habitações como Wellman também o fez em Dominados..., revestiu tudo isso sobre um preto e branco sem meias-medidas, densíssimo/escuríssimo/branquíssimo, aplicou a elevada largura e o rasgamento da lente a um enclausuramento brutal onde só nos limites da profundidade poderemos sonhar e fugir para onde as bordas do enquadramento e a distância adotada jamais dão tréguas. Aquele suposto verde e aquele suposto branco como nos contos infantis...
A parte final, lá fora, é o teatro (palavra fundamental tanto para a forma cinematográfica como para a dissimulação dos homens que andam pelo filme) do horror onde o paroxismo e a contenção já explodiram e a tragédia e o rastro de perpetuação se confirmam. Sem “happy end” possível. Sem pacificação.
André De Toth cineasta da matéria. André De Toth cineasta da forma. André De Toth cineasta da mise en scène. Mise en scène, palavra tão mal entendida, mal aplicada e mal executada.
Mise en scène, princípio do cinema e princípio do olhar. Princípio de toda forma.
André De Toth sabe-o tão bem como Oliveira e Rivette e o modo magistral, seco e claro como expõe tudo isso está numa das sequências mais impressionantes de timing, decupagem e utilização da câmera que alguma vez vi. Robert Ryan desce as escadas e prepara-se para incendiar tudo; o seu parceiro está deitado na mesa e não parece lá grande coisa; Ryan tenta alcançar a garrafa de querosene e é severamente ameaçado; ecos de duelo e de confrontos no ar; Ryan não se encolhe, tenta reforços e ajudas; põe uma garrafa vazia a rolar sobre o balcão. Magnífico, verdadeiramente magnífico travelling de acompanhamento sobre a garrafa. Um dos mais inacreditáveis e insólitos que já vi. Para a direita. Quando esta (a garrafa) deixar de rolar as balas atingirão as carnes sem piedade. Haverá sangue.
Mas tudo isso é cortado pela entrada dos intrusos que tudo reverterão e porão em causa.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, e já estão os intrusos a sair de casa. Para o Inferno. De Toth aproxima-se de uma jovem mulher e aplica-lhe um não menos fabuloso e terno travelling sobre o olhar. Para a direita.
Não há saída e o gênio de um imenso cineasta é assim liberto e sentido, na pele.
Quadrilha maldita. Dominados pelo terror. Monumentos singulares. Monumentos sussurrados. Monumentos para alguns. “Foras-da-lei, os outros são todos conhecidos.” Foi o que alguém me disse e é toda a verdade que importa. Abraço.
(18 de novembro de 2010) |
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