O QUE ATRAVESSA O OLHAR DAS ESFINGES
por Bruno Andrade



No número 213 da revista Cahiers du cinéma há um longo artigo sobre os filmes de Marcel Pagnol assinado pelo crítico Michel Delahaye, intitulado “La saga Pagnol”. Nesse texto Delahaye, após reconhecer a tradição literária na qual Pagnol se insere (Guy de Maupassant, Miguel de Cervantes, Émile Zola, Jean Giono, Jean Giraudoux e William Shakespeare são citados) e destacar alguns dos autores cinematográficos que foram por ele influenciados e de certa forma asseguraram-lhe uma posteridade (Jean Renoir, John Ford, Orson Welles, Jacques Demy), identifica as principais inovações técnicas introduzidas pelo dramaturgo francês. Delahaye destaca as filmagens em locações realizadas com captação do som direto, a autenticidade dos cenários assegurada pelas filmagens em locações, a dilatação da duração do plano cinematográfico decorrente do aprofundamento dessas novas técnicas e o despojamento do aparato e do maquinário que proporcionou uma nova práxis da produção e da realização cinematográfica, permitindo aos atores uma maior liberdade de composição.

Mas o que mais parece interessante nesse estudo são as palavras com que Delahaye conclui seu texto:

Pagnol prefigura também um cinema a nascer. É necessário tomar consciência disso em Madagascar, por exemplo (país duas ou três vezes citado na obra de Pagnol e no qual sua família possuía terras – puro acaso). Aprendemos que os nativos demonstram em relação a certas “regras cinematográficas” como a elipse apenas indiferença e incompreensão, e que os europeus, que lhes dedicam muita atenção, explicam a eles, tendo em vista o que os precede e a natureza de sua tradição oral, que caso se permitisse que fizessem cinema sozinhos, realizariam aberrações – filmes, por exemplo, que durariam de cinco a seis horas. É então que, se essa questão é respondida tomando o exemplo típico de Pagnol, compreende-se ao mesmo tempo Pagnol e a África. Percebemos que temos, com Pagnol, uma prefiguração do que poderá fazer, na medida do que lhe for possível, o cinema africano.

É assim que o mais provinciano, o mais particularista e o menos cinematográfico dos cineastas acabou inventando, reinventando e prefigurando de uma só vez todo um cinema.

Esse cinema, exaltado por Delahaye e prefigurado por Pagnol, foi muito provavelmente o de Ousmane Sembene, Oumarou Ganda, Sidney Sokhona, Souleymane Cissé e tantos outros. Mas foi também, e mais inesperadamente, o de Manoel de Oliveira (Acto da primavera, 1963; A caça, 1964), António Reis e Margarida Cordeiro, Paulo Rocha (Mudar de vida, 1966; A Ilha de Moraes, 1984), Jorge Bodanzky (Terceiro milênio, 1980-1981, codirigido por Wolf Gauer) e mais recentemente Joana Torgal e Rodolfo Pimenta (Wolfram, a saliva do lobo, 2008-2010), Jean-Claude Brisseau (A garota de lugar nenhum [La fille de nulle part, 2012]) e Hong Sang-soo. Houve ainda um cinema que se colocou despojadamente na encruzilhada entre o que se prefigurou e o que de fato brotou de uma prática cujos resultados devem muito ao cinema direto, um cinema que teve na inquietação e na generosidade mitológicas de Jean Rouch seu verdadeiro alento (Pouco a pouco [Petit à petit, 1968-1970], verdadeira epopeia dessa trajetória que leva o cinema da Europa à África e da África à Europa).

Essa saga, como Delahaye a chamou, corresponde ao cumprimento da vocação realista do cinema. Porém, e talvez seja o momento de introduzirmos aqui o nome de Pedro Costa, ela não se deu sem oscilações e impasses, sem que passasse por zonas obscuras, acidentes de percurso e desvios de rota que a conduziram a caminhos pelos quais pôde se desfazer dos excedentes que acumulou ao longo do tempo, acidentes e desvios que permitiram delinear suas principais linhas de força. Pois como podemos ver mais claramente hoje, essa saga corresponde à fração do cinema que de uma prática sólida da transparência mediadora de uma narrativa (como praticada por Pagnol mas também por Howard Hawks, Kenji Mizoguchi, Allan Dwan e Budd Boetticher) passou a uma prática materialista da transparência metódica dos seus meios de produção (como praticada por Jacques Tati, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Andy Warhol, Éric Rohmer e Budd Boetticher). Se a princípio as duas linhas parecem divergir – é isso o que o grosso dos críticos e teóricos do cinema afirma até hoje –, é preciso reconhecer, a partir da obra de Pedro Costa, que na realidade ambas compartilham aquilo que está na própria origem do método Pagnol e que irriga a poética de todos esses cineastas: eles não dirigem propriamente seus materiais tanto quanto lhes concedem um vácuo para preencherem. Para chegar nisso, alguns inscrevem uma figuração do mundo feita de rostos, árvores, máquinas, rios, montanhas, o sol, o ar e tudo em volta apenas para suprimi-la, com o fim de tornar esse vácuo perceptível (é o caso, por exemplo, de Fritz Lang, Georges Franju e John Carpenter), enquanto outros usam esse vácuo para acentuar a presença vital de rostos, árvores, máquinas, rios, montanhas, o sol, o ar e tudo em volta, a fim de que a variedade natural do mundo seja realçada, projetada e tudo resplandeça, mantendo esse vácuo como um anel luminoso em volta da riqueza material do que nos é dado a ver (é o caso, ou, melhor dizendo, o segredo, de F. W. Murnau, Jean Renoir e Jacques Rivette).

Costa não pertence nem ao grupo de cineastas que gravitam em torno de Lang nem aos cineastas impulsionados por Murnau. Sua posição é singular e, a despeito da quantidade de textos que suscitou até este momento, sua obra não se sujeita facilmente à exegese. O que podemos dizer é que seus filmes ora parecem nos convencer de que é no próprio vazio que as coisas se dão a ver realmente, ora parecem mostrar que é nas próprias coisas que percebemos melhor o vazio que ameaça consumi-las. Jamais uma inflexão reforça somente a subjetividade, o afeto central, a tonalidade psicológica, tudo aquilo que preserva nosso próprio alheamento em relação ao conjunto do que nos é apresentado (“Um realismo aberto”, como definiu o crítico Marc C. Bernard a propósito de certos filmes norte-americanos dos anos 1960, capaz de “envolver o corpo, a inteligência e as estruturas do mundo tais como eles são exatamente e tais como nós não podemos jamais vê-los”). Por outro lado, jamais uma expressão destoa da realidade de uma situação vivida (esse realismo aberto paradoxalmente realça não a autonomia, mas a interdependência entre os níveis físico, intelectivo e estrutural). Nenhum distanciamento, mas também nenhuma identificação: uma emoção, por mais insuportável que seja, ainda nos é confidenciada por uma voz serena, e há sempre algum segredo que parece se agitar em olhares que, longe de nos confortar, confrontam o espaço que existe entre nós e a tela (impossível não pensar na maneira como o olhar de Vitalina em Cavalo Dinheiro, 2012-2014, parece sugar tudo o que há em volta, tanto o que está na imagem como o espaço escuro da sala em torno da tela). O trabalho de Costa se funda sobre o compreensível, mas essa compreensão não se dá sob a forma que nos habituamos a ver no cinema: seus filmes são construídos mais sobre os ruídos de uma narrativa que sobre um encadeamento claro e inflexível. Esses ruídos não se prolongam indefinidamente tanto quanto intervêm uns sobre os outros, de forma que nunca sabemos onde um começa e outro termina. O alcance de Juventude em marcha (2002-2006) vem justamente do sentido de marcha inerente à sua construção: à maneira de uma corrente de força, esse tempo-espaço que floresce plena e abundantemente de uma estrutura composta como um corpo lacunar conduz uma ameaça silenciosa que se acumula nos vácuos que o filme deixa nas passagens de um bloco de espaço-tempo para outro, de modo que quando um desses blocos é finalmente retomado a energia antes concentrada se disseminou e o que anteriormente era inibição transformou-se em indignação, e assim sucessivamente vemos a serenidade virar angústia (o choro silencioso de Vanda na cena de almoço já é uma boa indicação de que a prole de Ventura está prestes a aumentar), a contemplação virar ação (a indignação de Lento, inicialmente contida e manifestada posteriormente; Vanda deixando sua filha com Ventura nos planos finais para ir trabalhar). Isto equivale a dizer que o interesse não está no fora-de-campo, mas sim justamente na força daquilo que antes não tinha como se fazer presente (a indignação, a angústia, a ação) e agora não apenas está em campo como é esse campo, é o objeto de uma contemplação que não precisa prescindir do mundo em prol do vazio ou o inverso. Aqui mundo e vácuo, imagem e visão são uma só coisa: no plano final de Juventude em marcha já não há mais nada além disso, a iminência das coisas a se transformarem e a permanência de tudo o que se fez e se viveu no espaço de uma vida, Ventura deitado e a filha de Vanda ali, a próxima na linha de sucessão da descendência de Ventura, a mais nova rebenta da prole. A eternidade e o agora: uma cama e, talvez, no futuro, uma faca afiada.

Poderíamos tentar seguir ou concluir este texto somente com aquilo que torna Pedro Costa um cineasta excepcional. Mas não teríamos chamado a atenção para a situação de Pagnol enquanto criador cinematográfico, não teríamos mencionado Howard Hawks e Andy Warhol se um retrato de Costa como artista solitário nos satisfizesse. Pois Costa não está sozinho; antes dele houve Pagnol, assim como antes de Pagnol houve Charles Chaplin, que se opôs a Pagnol no aspecto mais elementar para ambos: o som, e consequentemente a possibilidade de utilização da fala, da linguagem como elemento de composição. Costa, como Pagnol em Marselha, como Chaplin na esquina de La Brea com a Sunset Boulevard, cria a partir de condições materiais (logísticas, de maquinaria, climáticas) muito específicas, e para isso escolhe um lugar (Fontainhas inicialmente, mais tarde Casal da Boba, Quinta da Laje) que lhe permite parar, pensar um pouco, e talvez até um pouco inutilmente, um pouco gratuitamente, como certamente deviam pensar os primeiros homens que inscreveram nas paredes das cavernas, lá onde o cinema começou, nossas caças e nossas batalhas – nossa história. Mas Costa, ao contrário de Samuel Fuller, ao contrário de Raoul Walsh, não filma caças e batalhas: o que Costa filma é o momento em que uma ideia se instala e faz com que a vida se revele nos olhos daquele que a contempla, que a relata, que tenta desenvolvê-la e transformá-la em pensamento, em fala, em memória. O que Costa filma, como Pagnol e como Chaplin, são pessoas conversando, escutando umas às outras ou calando-se. O que Costa filma, enfim, é aquilo que antecede ou sucede as caças e batalhas, aquilo que de certa forma conclui, sinteticamente, a nossa história aqui nesta terra: “um suspiro torna-se um romance”, e após duas horas e trinta e seis, duas horas e cinquenta minutos de pensamentos, de anedotas, de relatos, de olhares, de silêncios, de memórias e experiências compartilhadas uma imagem se cristaliza – a do Homem.

Para chegar nessa imagem Costa realiza algumas modificações em determinados princípios da montagem cinematográfica. As ideias de Dziga Vertov, os experimentos de Chaplin e a prática de Jean Rouch são menos conciliados que alinhados para que possam verificar-se paralela e mutuamente, atuando uns sobre os outros. Isso faz com que a montagem modere aquilo que pode contribuir para a proliferação de excedentes (das significações, dos artifícios e dos dispositivos engendrados pelo filme) ao mesmo tempo em que acentua o que pode acabar encoberto pelos processos (de captação, estruturação e composição da realidade filmada) integrados minuciosamente no seu interior. No quarto da Vanda (1998-2000) ainda é o filme em que vemos os resultados desse trabalho na sua forma mais condensada: uma construção que encontra na solicitude o seu motor e situa as personagens e seus esforços como organismos a integrar uma estrutura viva, dinâmica, em evolução permanente (inclusive na dilapidação que levará à sua extinção), uma estrutura que tem por nome Fontainhas. E é também em No quarto da Vanda que vemos como Costa é um dos cineastas mais sintéticos do cinema moderno (não à toa o trabalho de Jacques Tourneur lhe é tão caro); como cada plano é um bloco compacto em que as ações (altercações, pausas, trabalhos, rotinas, conversações) se integram a ambientes que acumulam resquícios preciosos (bagatelas, utensílios, fetiches, pilares, tapumes) das vidas que por ali passaram; como Costa extrai em forma de diagrama um recorte marcante desse espaço vital; como o acidental e tudo o que irradia, se espalha e se assenta como sinal de vida no espaço da tela decorrem de um comedimento e de um comprometimento que o realizador e seus colaboradores convertem em concentração absoluta (um suspiro de fato torna-se um romance, como em Franz Kafka, Marcel Proust e Marguerite Duras, como em Erich von Stroheim, Josef von Sternberg e D. W. Griffith); como todo esse trabalho de contenção termina por formar cristais que atingem um grau de autonomia a que estamos pouco acostumados (devido à força de sua composição, à compressão material exercida pela técnica de Costa sobre a realidade contingente), um grau que autoriza a fluência numa estrutura elíptica, a qual não obstante constrói uma continuidade abstrata, sub-reptícia, que sustenta menos as motivações das personagens que os mistérios e as emoções de cada ator; uma continuidade que, provinda de cristais, não tem como não ser ela mesma cristalina – ou, como diria Straub, bioscópica, um corpo lacunar composto de blocos de puro presente.

Para chegar nessa imagem do Homem desacorrentado, enfim, do vínculo que uma ordem prescritiva ou descritiva de uma trama, de um drama, de um esquema prévio qualquer lhe impõe, Costa parte de uma redução meticulosa do sistema econômico de produção de um filme. Restituindo à câmera sua função original de instrumento científico, Costa faz com que o Homem passe pela sondagem óptica e documental mais completa e pungente que o cinema pode proporcionar, e é por isso que os artifícios habituais de mediação narrativa (trama, ênfase ou tautologia dramática da ação, esqueleto psicológico das personagens) são categoricamente rejeitados. Toda a reflexão de Costa diz respeito ao papel exercido pela transparência metódica dos meios de produção sobre a transparência mediadora de uma narrativa, uma forma de sublimação que permite à imaginação (abertura ao mundo) surgir consubstancialmente com o trabalho (abstração e condensação) em um filme, e assim finalmente podemos associar Costa a António Reis e Margarida Cordeiro, a Ousmane Sembene, a Paulo Rocha, a Jorge Bodanzky, a Sidney Sokhona, a Manoel de Oliveira, a Oumarou Ganda e sem dúvida alguma a Jean Rouch.

Mas isso ainda é pouco. É dizer nada sobre como Costa utiliza a economia de meios para fazer um voto paradoxal no luxo e na invenção, sobre como sua câmera encontra padrões ornamentados em vielas e corredores íngremes, sobre como a luz esculpe figuras humanas e as abandona numa noite sem fim, sobre como casebres abarrotados de encalhes e poeira surgem na tela com o esplendor de uma construção mortuária de séculos e séculos atrás no Egito antigo, sobre como uma câmera digital, 65 anos após O vampiro (Vampyr, 1931-1932) e 40 anos após Gertrud (1964), consegue filmar, como Carl Theodor Dreyer filmou nesses filmes, as esfinges e as vibrações físicas que nos chegam delas, o choque de cada momento de ainda estar vivo...

Sim, é a borboleta de Griffith que atravessa o relento dos olhos de Vitalina.


(Abril-maio de 2017)

 

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