THE HART OF LONDON, Jack Chambers, 1970
por Fred Camper



The Hart of London, de Jack Chambers, é um filme de 80 minutos expansivo e ambicioso que combina imagens de desastres extraídas de cinejornais, cenas urbanas e rurais, e outras imagens que evocam os ciclos de vida e morte. É um desses raros filmes que funcionam precisamente graças à sua vastidão; rústico e descomedido quase ao ponto de antecipar a rejeição pós-moderna das “narrativas mestras”, não pode ser reduzido a um simples resumo, e a visão dele se transforma a cada revisão.

Este é um filme raramente exibido; sei de apenas uma exibição pública em Chicago há umas boas duas décadas. O que faz com que a exibição na Chicago Filmmakers no dia 24 de junho seja a sua segunda exibição, tendo dividido opiniões mesmo entre os entusiastas do cinema de vanguarda (embora apenas três dos onze críticos, curadores, professores e cineastas de Chicago que se interessam particularmente por cinema experimental ou não-narrativo aos quais eu perguntei o assistiram). Alguns o veem como uma obra-prima (Stan Brakhage, um defensor inicial que contribuiu para a sua distribuição nos EUA, o descreveu como “um dos poucos GRANDES filmes de todo o cinema”), alguns escreveram críticas ambivalentes, outros admitem que não sabem o que pensar do filme. Eu o odiei na primeira ocasião em que o vi, achando-o confuso e desorganizado, e o amei nas quatro vezes em que o assisti desde então. É um filme de sobreposições surpreendentes – o nascimento de uma criança, em preto e branco, é intercalado com imagens coloridas de um abate de carneiro (simbolismo cristão deliberado) – que parece estar falando de questões elementares de vida e morte, e ainda consegue entrelaçar cinco ou seis grandes temas e permitir que o espectador sinta que eles estão logicamente inter-relacionados.

A “Londres” do filme não é britânica: Jack Chambers nasceu em 1931 em Londres, Ontário. Estudou arte lá, trabalhou na construção civil, viajou ao México e passou oito anos na Europa. Viveu na maior parte do tempo na Espanha, estudando arte em Madri e se convertendo ao catolicismo, retornando a Londres em 1961 ao saber que sua mãe morria de câncer. Tornou-se conhecido como pintor (obras expostas em grandes museus canadenses) enquanto também escrevia poesia, e em 1966 começou a fazer filmes. São cinco filmes concluídos, todos extraordinários de maneiras diferentes; The Hart of London é o último e o mais longo.

Chambers contou a um dos primeiros críticos a escrever sobre o filme, Avis Lang (cujo artigo foi reproduzido em uma edição do jornal canadense The Capilano Review, de 1984, sobre Chambers), que todo o tema do filme é “geração”, e isso está certamente presente nas muitas sobreposições de vida e morte e referências a desastres. O próprio Chambers foi diagnosticado com leucemia em 1969, ano em que começou a trabalhar no filme; ele cuidou agressivamente da sua saúde, e viveu até 1978. Mas há outros grandes temas também. Como em muitos filmes de vanguarda, há uma exploração do contraste entre percepção objetiva e subjetiva. Mais especificamente, o tema da alienação da civilização em relação à natureza é intercalado com uma análise brilhante dos fragmentos de cinejornais, que são retratados tratando seus temas não numa perspectiva empática ou humanizadora, mas como objetos para o olhar voyeurístico do espectador, quase como itens em uma vitrine. Há também um ligeiro misticismo subjacente; Chambers frequentemente sugere uma unidade subjacente de todas as coisas à luz.


* * *


The Hart of London começa com imagens de um noticiário televisivo de 1954 de um cervo que perambula por uma região de aspecto suburbano em Londres. Nós o vemos primeiro no bosque, depois correndo por quintais e pulando uma cerca. Há uma tensão entre os quintais subdivididos e os movimentos graciosos do cervo: esse animal não foi feito para terrenos retilíneos. Há também alguma perplexidade, por parte do espectador, sobre como reagir. Os habitantes da cidade apontam para o cervo, e as imagens parecem exibi-lo como se fosse uma espécie de espetáculo, quase como um animal em um zoológico. Policiais o perseguem, o capturam e finalmente o matam, e seu corpo é mostrado para a câmera.

As imagens parecem convidativas, mas quando se percebe que elas foram criadas tendo em mente o cervo como espetáculo, vivo ou morto, sentimos repulsa. O cervo é visto como um outro observado de forma fugaz; mesmo os documentários convencionais sobre a vida selvagem fazem um trabalho melhor em capturar a aparência e o movimento dos animais. O espectador se sente ao mesmo tempo atraído e repelido; e, no entanto, há uma maneira pela qual cada pessoa vista posteriormente no filme ecoa o cervo; cada outra cena importante do filme recapitula, temática e formalmente, essa abertura.

Em outro momento do filme, por exemplo, vemos um rapaz de short nadando em um lago gelado no inverno. Quase desde o início a polícia está lá; não tarda muito para que o jovem seja forçado para dentro de uma van. Ele provavelmente encorajou a filmagem de sua façanha pelo jornalismo local; tudo passa a impressão de que ele criou uma performance para o nosso deleite. Além disso, sua captura ecoa a do cervo, embora o fato de que ele encontre um destino mais feliz nos lembra do privilégio que nós, humanos, nos arrogamos. Mas em seguida vemos imagens de pessoas sendo conduzidas de um buraco do chão, vítimas de alguma espécie de bombardeio ou colapso de mina em outra parte do mundo. Agora a proeza perigosa do nadador parece frívola, uma brincadeira “segura” comparada ao que ocorre com outros. Mas a imagem das vítimas que emergem as trata como apenas outro espetáculo para as lentes, uma sucessão de rostos vistos brevemente. Essas imagens são tão reducionistas para a humanidade quanto o modo em que dividimos terra em pedaços retangulares é para a natureza.

Chambers narra uma história muito canadense. Essa nação, que indiscutivelmente tem a região natural remanescente mais vasta do planeta (quão distante deve ser um acre da Sibéria de uma mina, ou de um antigo campo de trabalhos forçados, para ser chamado de “natural”?), tende, particularmente na sua província mais industrializada, Ontário, a virar as costas para a natureza. Toronto, a cidade canadense mais populosa, possui arquitetura vitoriana excessivamente ornada que nada tem a ver com o ambiente local, de modo que até o pastiche mais bisonho da arquitetura da Escola da pradaria de Chicago pareça mais magnificamente ecocêntrico. A cidade é preponderantemente isolada do lago Ontário devido aos arranha-céus. Londres, pela qual passei apenas duas vezes e que me pareceu meramente insípida, é, segundo Brakhage, “uma das cidades industriais mais modorrentas e desinteressantes imagináveis”. Brakhage diz que acredita que Chambers não teria discordado dessa afirmação; será que a placa “Venha a Londres” que vemos no início do filme é irônica? O jovem nadando no rio gelado certamente é mais propenso a conceber a natureza como algo hostil ou como uma desculpa para a publicidade do que algo com o qual possa se conectar.

Outra sobreposição, mais ou menos na metade do filme, usa dois contre-plongées estabelecer um contraste entre a natureza benigna e a mortal enquanto também propõe uma crítica implícita e mordaz do estilo dos noticiários. O primeiro mostra uma massa d’água com alguns nadadores dispersos em torno dela; como se tivessem sido realizados de um avião, os movimentos do aeroplano são camuflados pelas panorâmicas manuais da câmera que vão de nadador a nadador. Essa imagem é nítida, contrastada e estival. Em seguida cortamos para uma tomada de uma inundação catastrófica, casas rodeadas por água em cinza pouco contrastado. Nesse momento o movimento agressivo do avião que transporta o câmera, passando rapidamente pela paisagem, é inconfundível. O segundo plano obviamente é de um cinejornal, e notamos a forma como o movimento do avião maximiza o número de casas inundadas que vemos, propagando o desastre diante de nós como se fosse uma panorâmica em movimento. A oposição natureza/civilização também está presente na forma como a natureza pode rapidamente se tornar fatal – especialmente se sabemos que a maioria das enchentes são causadas por humanos construindo casas em terras propensas a inundações regulares (“vargem”).

Um close-up extremamente exuberante e suave de folhas preenche o quadro, como se estivéssemos perdidos na natureza selvagem. De repente, em uma mudança de foco, um aparador é revelado, e percebemos que essas plantas estão sendo cortadas. O aparador surge tão suavemente, como se fosse uma parte natural da cena, que poderíamos pensar que nossa própria concepção da natureza inclui nossos planos de reformulá-la para exibições. Muito perto do final do filme um plano mostra o próprio Chambers aparando o seu gramado com um cortador de grama; somos lembrados pelos retângulos de outros gramados estendidos atrás dele que estamos todos implicados na subdivisão humana da natureza. É difícil não notar uma conexão com o processo cinematográfico também: tesouras cortando arbustos, como se cortam os filmes; a reconstrução da natureza em retângulos ecoa o enquadramento de um filme. Essa é outra maneira pela qual Chambers se coloca, como cineasta ou cortador de grama, no processo de domesticação e destruição que a captura e morte iniciais do cervo colocam em movimento. Chambers prossegue mostrando a imagem de uma tomada aérea das ruínas de pedra de uma cidade muito antiga, outra passagem de aparente ordinariedade para a ruína, retomando o tema de “geração” enquanto também sugere que a decadência é o fim último da civilização.


* * *


Embora seja frequentemente claro na sua temática, The Hart of London também parece deliberadamente abraçar contradições, tanto visuais quanto temáticas. Alternar preto e branco com cores, especialmente no corte entre o parto e os cordeiros (este último filmado no matadouro espanhol que Chambers visitou pela primeira vez na juventude), tende a intimidar o espectador de fazer as conexões óbvias que o conteúdo sugere. Ao discutir sua própria prática artística em artigos publicados na revista artscanada em outubro de 1969 e na revista Arts and Artists em dezembro de 1972, Chambers a nomeou de “realismo perceptivo”, e mais tarde de “perceptivismo”. Os artigos são densos e teóricos, mas um de seus objetivos parece ter sido abordar o momento de percepção antes que a mente seja capaz de interpretar uma cena, colocando assim o espectador em um “estado de passividade receptiva que de alguma forma libera um maior... sentido”. O objetivo de Chambers não era a simples verossimilhança: “aqueles que veem as aparências como a única realidade não experimentaram... o assombro”. Ao invés disso, o espectador deveria ser capaz de “perceber o Corpo Invisível ‘por trás’ do mundo”. Em sua desconfiança das interpretações aceitas dos objetos, sua escrita e seu cinema se parecem com o de Stan Brakhage – e foi o filme de Brakhage sobre o nascimento de seu primeiro filho, Window Water Baby Moving (1958-1959), que inspirou, em parte, Chambers a filmar.

Os escritos e o cinema de Chambers possuem algo de misticismo cristão e gnóstico. Seus planos iniciais para The Hart of London incluíam imagens de Jesus retornando, que não estão em lugar algum do filme que efetivamente vemos, mas a versão final cria uma espécie de diálogo gnóstico em torno de objetos e luz. Para os gnósticos o mundo terreno, que aprisiona a energia em formas concretas, nos impede de vivenciar a “faísca” original; Chambers escreveu sobre outro de seus filmes, Circle (1969): “A realidade... é um padrão invisível de energia que na sua forma material, atenuada, se torna árvores, rio, pessoas, céu.” E o uso que ele faz de sobreposições densas na primeira metade do filme, que ocasionalmente quase desbotam para o branco, cria um contraste entre a imagem como recipiente de um objeto reconhecível e a imagem como pura luz. As panorâmicas finais do rio para o céu reforçam esse tema.

As sobreposições consistem, em grande parte, de imagens de Londres, algumas delas velhas fotos que Chambers obteve por anúncio. Quase nos perdemos em um fluxo envolvente, mas há também uma atração-repulsão de tipo morde-assopra presente: a tactilidade e a profundidade que as múltiplas camadas criam são frequentemente lapidadas em uma superfície quase sólida e resistente, como quando Chambers incorpora imagens em negativo com pretos agressivos. Em meio ao fluxo há um homem com um rifle, o rosto de um empresário, e um prédio alto e largo cujas janelas formam um padrão imponente. Entrelaçados, eles sugerem a agressão inerente à cultura: o prédio substitui a luz do céu; o caçador remete à morte do cervo. Mas se mesmo as árvores “atenuam” a realidade, The Hart of London parece argumentar que construções humanas o fazem mais severamente.

Avis Lang considera que a penúltima cena do filme e as panorâmicas finais são afirmações otimistas de que “o mundo é um milagre”, remetendo à resposta de Chambers ao ver seu próprio filme pela segunda vez: “As coisas realmente são repletas de encanto do jeito que elas são.” Mas há mais em jogo aqui. Em imagens coloridas de filmes caseiros, vemos alguns cervos, primeiro próximos a um cercado, no zoológico ao ar livre da cidade. E embora não sejam cervos selvagens, os filhos de Chambers se aproximam cautelosamente enquanto a voz da mãe deles repetidamente sussurra na banda sonora: “Vocês têm que tomar cuidado.” Eventualmente eles conseguem alimentar o cervo. Ainda assim, há algo na voz dela que sugere que aqueles cervos têm o potencial de machucar. Nadar já havia se tornado desastroso duas vezes através da montagem do filme. O mundo natural, repleto de encanto, também tem o potencial de nos matar.


(este texto também apareceu em uma versão significativamente mais curta na edição de 23 de junho de 2000 do Chicago Reader. Traduzido por Gustavo Salvalagio e Bruno Andrade)

 

VOLTAR AO ÍNDICE

 

 

2016/2021 – Foco