CHANTAL AKERMAN – CINEASTA DO CORPO E DO GESTO
Ainda há pouco vimos na Cinemateca um antigo Dwan, um antigo Frank Lloyd, um antigo Vidor. O que descobrimos é que o cinema não é a arte do movimento – o movimento é sua técnica –, é a arte do movimento verdadeiro. O que o cinema redescobriu foram os gestos dos homens.
— Jacques Serguine
Já nada acontece aos seres humanos, é à imagem que acontece tudo.
— Serge Daney, sobre a televisão
Para pensar o fundamental do cinema de Chantal Akerman, o que julgo então ser a sua teoria e razão de ser, analisarei três momentos que considero decisivos na sua obra. Jeanne Dielman (Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles, 1975), sendo este o filme que irá constituir o centro da minha análise, mas também Eu, você, ela, ele (Je, tu, il, elle, logo do ano anterior, 1974), e, por fim, Do Leste (D’Est, 1991-1993).
Jeanne Dielman, monumental obra de mais de três horas, vai nos deixar entrar na rotina de uma dona de casa, ao longo de três dias, apreciar as suas tarefas, a relação com o seu filho, a maneira como vende o seu corpo a homens, mas também iremos às compras com ela e a veremos tomar conta de um bebê, entre tantas outras coisas.
Todo o cinema da realizadora belga é assente, construído, sobre um dispositivo formal fortíssimo, em que a fixidez da câmera – radicalíssima cineasta do plano, da composição e do tempo – nada mais está interessada do que em ver, ou melhor, rever/redescobrir, o movimento dos corpos e dos gestos dos humanos.
Neste sentido, todo este portentoso cinema materialista nada tem a ver com as vanguardas puramente formalistas que por esta década (a de 1970) explodiam, e onde o homem ou não existia ou então era puerilmente vislumbrado numa dispersão estética à beira do histerismo, esse cinema politicamente engajado e com fome de provocação e de ruptura, que, volto a frisar, está claramente nos antípodas de Akerman, como dos Straub, por exemplo.
Essa coisa do “film is a gun” será sempre o oposto do cinema da belga, porque ela filmará sempre “por”, “a favor de”, por amor e nunca contra.
Akerman está então mais próxima de um classicismo (embora, e isto também é fascinante, comungue de muitas das questões que enformaram o dito “cinema moderno”), no sentido da clareza do relato, da simplicidade (anti-simplista, essa simplicidade/complexidade), da solidez, da concisão e mesmo de uma vontade de contar coisas.
A frontalidade de Akerman (ausência de plongées ou contre-plongées, nesse ponto de vista sempre à altura dos homens), a forma como cada plano dura o que tem que durar para que se possa ver a tarefa ou ação que está a ser executada pela personagem, a insistência na pura rotina e na banalidade das tarefas (poder-se-ia dizer, “banalidade da ficção”) só nos faz ver o que já pensávamos que não interessaria – por precisamente pensarmos estar demasiado visto – ou seja, a maneira como um corpo se mexe, como os gestos das mãos ou a expressão do rosto trabalham e mudam, como se anda, como se come, como se desespera etc., uma infinitude cósmica de pequenas coisas que na realidade definem o humano e o tornam um “ser politico”. Chegar aí pela minúcia da representação, da paciência e do interesse fazem a singularidade da arte de Akerman.
Mas se por vezes (muitas, na minha opinião) Akerman e este filme chegam à emoção – e sem dúvida que chegam – esta não é arrancada às normas e estratégias da “ficção normalizada” e da psicologia, do aconchego onde o espectador se pode facilmente rever e pacificar. À emoção aqui se chega, ao contrário, de um modo mais complexo e grave – Bresson não andará longe – pois toda essa ausência de psicologismo faculta um manso desespero em filigrana que nos faz sentir um mal-estar e um desespero que irão culminar na cena final do crime, nesse extraordinário plano em que Jeanne Dielman, sentada à mesa e com sangue na roupa, tem estampada em si toda a aflição do mundo. (Favor comparar com o último plano de Singularidades de uma rapariga loura, Manoel de Oliveira, 2009).
“O cinema mostra-nos geralmente pessoas, acontecimentos, lugares que não conhecemos; não há razão para isso nos dar a impressão de que estão aqui, mesmo ao nosso lado”, Daney sobre o naturalismo, precisamente também aqui queria chegar.
Para ficar claro, não se trata de naturalismo puro, não se trata de realismo puro, muito menos algum tipo de maneirismo, trata-se sim de algo de incaracterizável e da ordem das origens: como se move um corpo, um andar, a beleza de tudo isso e a câmera como o único instrumento que é capaz de o captar – uma ciência do olhar, tal como o microscópio na investigação.
E se Akerman, muito através da violência do plano fixo e da atenção ao corpo, redescobre e nos dá a ver, de forma cristalina, o movimento dos Homens, será também importante constatar que além disso ela nos faz redescobrir um certo movimento do mundo: tanto pelo fora-de-campo, do qual uma infinitude e riqueza sonoras entram no quadro e se fazem matéria, quanto pela luz e fluxos vários que pelas janelas perpassam. No entanto, penso que o mais vital será mesmo a forma como podemos atentar ao que está no centro do plano e se distende até as bordas do enquadramento. Porque, sabemos, o mundo não se move como na ficção corrente e seus truques, ou como na televisão, onde a cada fotograma algo de forçado, “extraordinário” e por vezes anedótico tende a acontecer. Aqui, no cinema de Akerman, é algo mais próximo da vida que se plasma na película, o extraordinário do não extraordinário, os hábitos e o passar do tempo, as relações, a exasperação, tudo sem os ganchos narrativos habituais – basta ver todas as cenas exteriores, a justeza do tempo, a distância do olhar, a compreensão dos ritmos, a respiração certa.
Pode-se dizer que tudo isto, comungando de uma ética semelhante, se diferencia, por exemplo, dos já referidos Straub e Pedro Costa, ou mesmo de Philippe Garrel.
Sem o interesse “straubiano” do engrandecimento das gentes comuns através da dicção da palavra e dos grandes textos, da pose e do épico; também diferente da maneira como Costa devolve a dignidade e toda uma beleza dos seres e do seu mundo à gente real, às suas memórias e forças; um pouco ao lado do modo como Garrel aponta a câmera, de fronte a quem filma, e faz desse gesto e consequência a gravidade e razão do seu cinema, Akerman partilha com eles, vigorosamente, essa ontologia materialista do olhar e do fluimento temporal, esse primitivismo que é a razão inicial do cinema – dar a ver bem visto. Os Lumière, sempre.
Mesmo o uso da palavra, repare-se como em Jeanne Dielman ela é utilizada: nos momentos de maior ação/compenetração, ela é quase inexistente, sendo relativamente próxima ao cinema de Jacques Tati, usada como essencial ou nota de rodapé; pelo contrário, quando ela surge quase berborraicamente, é nos momentos em que só ali ela (a palavra) pode ser assim usada, nos encontros onde a comunicação é inevitável e as personagens a tomam como vital e, de certa forma, passível de catarse.
Existe um movimento dramático fortíssimo em Jeanne Dielman, por vezes da ordem do existencialismo, que tem a ver com a razão da ausência de um pai no filme – e que surge explicada numa carta de um seu irmão – que é o que faz mover, meio cega e meia surda, por vezes imparável, a personagem, numa atitude que lhe permita elidir um desespero latente. E todo este movimento vai em crescendo, mas numa total e impressionante surdina, que culminará, obviamente, na cena do crime, mas que se notará na fabulosa sequência em que Jeanne Dielman vai pela única vez à varanda de sua casa, funcionando essa tomada de ar como algo vivificante. A construção da sequência é particularmente notável: do fora para o dentro a découpage sublinha ainda mais o “tempo real” (num filme que vive nessa ilusão, e que condensa com um peso e uma densidade essenciais os blocos de tempo/duração que compõem os três dias) e os elos para dar a ver uma angústia e um sentimento de perda que fazem adivinhar que algo não acabará bem; como logo na cena seguinte, ela sentada e a campainha a tocar, pela primeira vez, duas vezes – aí, nesses momentos, é a alienação a tomar corpo.
Por fim, o pudor, a ética e distância de todo o filme, de cada plano e de cada som – que, juntamente à sutileza com que a elipse é trabalhada, amplia o todo de segredos e não-ditos – aparecem como algo perfeitamente essencial e incomum. Note-se como o filme trabalha a curiosidade e desejo do espectador: nas cenas de prostituição, por exemplo, em que a porta se fecha sempre e nos deixa do lado de fora e nos ignora, até que se “abre” no último dos dias. Mas aí, nesse momento desconcertante e de uma urgência indizível, tudo é o contrário do habitual e do esperado, do apetecível, um mal-estar que nasce da malaise da personagem – o oposto de uma certa pornografia das imagens (imagens no sentido amplo da imaginação) que faz por exemplo a “glória” de um Lars von Trier, onde tudo nos surge escancarado. Toda uma ética em processo.
O mesmo com a distância, que à maneira de Brecht ou de Bresson, jamais ousa aproximar-se do que não é aproximável, do interior complexo e indefinível das pessoas, do intimismo único. Apenas os percursos, os gestos, os corpos, precisamente.
Eu, você, ela, ele, realizado logo antes de Jeanne Dielman, é um filme onde Akerman leva ao paroxismo o seu interesse pelo corpo e pela sua fisicalidade, pela sua nudez (e obviamente não me refiro somente às cenas de sexo). Trata-se de uma obra em três partes distintas que são no entanto inseparáveis na sua lógica interna e orgânica. Começamos com uma mulher sozinha num quarto (Julie, a própria Akerman), uma voz off em que ela diz que teve de partir, e daí por diante vamos ter um desfilar de planos/quadros sensuais onde, por escrita de cartas e mudança do aspecto e organização desse espaço único e concentracionário, assistiremos a uma enfatização da pose, a uma utilização/exploração do corpo que se diria à beira da pantomima ou do lúdico, mas que a meu ver corresponde mais a esse desejo de constatação do primado do corpo e da carne, do íntimo, algo que já era importante em alguns momentos das suas obras anteriores. E veja-se que, se formalmente a câmera se liberta um pouco – já temos ligeiríssimas panorâmicas que seguem um pouco a personagem pelo quarto –, a frontalidade e a fixidez continuam a ser o credo da cineasta belga e o dispositivo essencial para a sua empreitada, continuando a não existir qualquer rastro de “assinatura” ostensiva de linguagem, mesmo que aqui a luz adquira uma expressividade e uns contrastes que na obra anteriormente analisada eram completamente apagados por um esbatimento da luz e do “logos” da técnica. O que não oblitera soluções e caminhos surpreendentes, como logo no plano inicial, com o prolongado fondu a negro e a voz off a imiscuir-se nessa escuridão – coisa próxima de alguns experimentos de Duras ou Godard, ou de Branca de Neve (João César Monteiro, 2000).
Saímos para fora e para o segundo grande bloco do filme, espécie de road movie atípico, e o filme mudará. Ou seja, se por um lado as personagens possuem um nível de psicologia diferente dos filmes anteriores – já se notava no que Julie dizia em off no bloco anterior – e surgem mais expostas, porventura mais frágeis e em busca de algo, de um qualquer sentido, Akerman vai nos pôr no centro de estímulos ópticos e sonoros puros (à maneira de Deleuze), num hieratismo permeável que se por um lado rasgam o filme e a sua lógica até então, surgem vigorosamente como mise en scène propulsora do estado de passagem, do sentimento de viagem que esse bloco transmite. E o tempo entra nos planos, literalmente, como na inadjetivável e incaracterizável cena em que Julie e o caminhoneiro comem num restaurante e uma televisão explode de sons e rasgos de luz, em fora-de-campo, cúmulo então dos ditos estímulos visuais/auditivos – personagens defronte a todo um mundo de imagens e ruídos ao qual não sabem bem como reagir, e aí surge uma espécie de espanto contido. Algo também próximo do sensorial que, no entanto, nunca ousa descolar-se num enlevo qualquer: tudo permanece magnificamente sólido e centrado.
Vamos ter uma cena de masturbação, toda insinuada e em off visual, e a certeza de que o pudor e a inteligência da sugestão e da distância continuam centrais na ética e na estética da belga.
Por último, o bloco final, em que Julie chega a uma casa e uma mulher a espera. Elas saúdam-se, comem, fazem sexo. O filme acaba. Nos gestos de saudação temos uma serenidade e alegria sincera e leve. Sentadas à mesa e a comerem sente-se a pura mecânica de algo vital. É nas cenas de cama e de sexo que todo um prazer em bruto explode e o “cinema do corpo” praticado por Akerman atinge alturas únicas e raramente igualadas. São corpos e desejos em movimentos viscerais, pulsantes, circulares, devoradores, animalescos, em que toda uma materialidade é posta em cena e sentida – o peso, as dimensões, as amplitudes de cada circulação, a pressão da libertação. São apenas três planos, que duram bastante, e ali vemos todas as potencialidades de um corpo, da ânsia e da carne, pressentindo-se também toda uma relação e passado. Elegante e justa volúpia porque enquadrada e derivada de tudo o que o filme tem para trás. Portentosa ode ao humano.
Do Leste, de 1993, viria trazer outro tipo de questões e de formas ao seu cinema, embora todas as questões de fundo, nomeadamente a inteireza ética, continuassem a ser invioláveis. Acusado à altura por Jean-Luc Godard de fazer uma “estetização da pobreza”, penso no entanto que nada poderia estar mais longe da verdade. Aqui, como em todos os filmes dela, curtas-metragens incluídas, o que temos é um sistema formal fortíssimo, de aço, “languiano” à sua maneira, que permite dar conta da matéria da cena e do mundo constantemente castrado pelo varrimento e pela escrita do enquadramento, sem deslumbramentos ou falsidades. Escrita – mas sóbria, lúcida, nada ostensiva e jamais dispersiva – que aqui surge várias vezes pela forma do travelling e que faculta percorrer e ver limpidamente uma grande e imensamente rica paleta humana que constitui as gentes do Leste, mais propriamente da Rússia pós-comunista. Travellings combinados com a dureza dos estáticos planos dos interiores, em que o olhar para no intimismo do dentro.
Repare-se como a leveza dos movimentos de câmera parece por vezes fazer nascer um ascetismo que não faz parte nem de Akerman, nem das famílias do cinema em que ela se insere. Mas é então preciso dizer que não se trata de algo da pura ascese, não há ali nenhuma metafísica ou Deus a pairar, sim uma delicadeza – sempre – e uma distância e ritmo interno ao plano que nos permite deter o olhar e percorrer o todo das pessoas e dos lugares, quase numa tridimensionalidade que fará corar todos estes novos filmes que se veem com óculos.
Ato de revelação. A medida e o ser do travelling em Akerman, tal como o plano fixo, é o do redescobrimento do homem e da sua grandeza, por inteiro, esse gesto de dar claramente a ver o que já pensávamos não interessar, o que já tantas vezes olhamos que já nada distinguimos – um simples passeio descomprometido, uma espera na paragem do ônibus, uma criança leve e inocente, alguém a gerar música – e aqui sim, muito próximo da importância que tanto os Straub como Costa dão à maneira como se enquadra e engrandece o homem e a sua colossalidade. O Homem, o que remete para o fundo, o contexto, o espaço, as datas. A câmera de Akerman só nos cura dessa patologia dos temas e dos debates, de “um tempo” marcado, entregando-nos uma espécie de eternidade, de suspensão cósmica, de força e de fragilidade. Uma questão de integridade, de planos (que permanecem como espaço de resistência, de ontologia, de técnica e de respeito por uma matéria que está no mundo antes de a ela se apontar a câmera e vilipendiá-la, que é o que acontece a quem não pensa o plano como algo do cinema, com a profundidade, o enquadramento, o fora-de-campo etc.) e não de imagens (os tais simulacros, os derivativos da publicidade, os híbridos da multimídia etc.). O resto é saber filmar, estar à altura de. Sempre foram estes os fundamentos do cinema de Chantal Akerman.
(21 de junho de 2010) |
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