O PRESENTE PROVISÓRIO DO CINEMA ou METÁFORA, MEU BELO ANSEIO
por Bruno Andrade
The human race needed cinema. Now we have it, and I’m worried about it.
— James Gray
I’m sorry but there are no Beckett in cinema. Or Joyce, or Pessoa.
— Pedro Costa
É preciso terminar o que se começou.
— Fritz Lang em O desprezo
Numa conversa com Pauline Kael, em 1981, Jean-Luc Godard disse:
Você não é livre, por exemplo, para escrever regularmente sobre um filme desconhecido. Você seria demitida pelo seu editor. Deixe-me colocar da seguinte forma: você não é livre. Quando verifiquei os artigos que você escreveu nos últimos dois anos para o The New Yorker (não quero atacá-la pessoalmente), você tentou ser diferente dos outros até certo ponto. Você me contou sobre Kagemusha, a sombra de um samurai (Kagemusha, Akira Kurosawa, 1980), por exemplo, que você tentou resenhá-lo depois que todos os outros já o tinham feito. Mas por que não dois anos depois, por que não dois anos antes? Por que você não fala de um filme antes dele ser concluído? Você é uma crítica de cinema. Um crítico de cinema não é apenas um resenhista. Você escreve sobre um filme da Paramount quando a Paramount decidiu lançá-lo. E, então, onde está a liberdade?
25 anos antes, em um texto sobre O homem errado (The Wrong Man, Alfred Hitchcock, 1956), Godard, autor de uma célebre “Defesa e ilustração da decupagem clássica” publicada nos primórdios dos Cahiers du cinéma, escreveu o seguinte sobre a famosa cena em que a personagem de Henry Fonda é filmada por uma câmera giratória em uma cela apertada[1]:
Balestrero, cansado, encosta-se à parede, quase embriagado de vergonha. Ele fecha os olhos com força, tentando por um segundo se recompor. A câmera, enquadrando-o em plano médio, desenha círculos cada vez mais rápidos em torno dele, em um eixo perpendicular contra o qual Fonda está encostado. [...] Com esse movimento de câmera, [Hitchcock] consegue tornar sensível um traço puramente físico, o estremecimento das pálpebras, as quais Fonda abaixa. A força com a qual elas envolvem, por um terço de segundo, a órbita de seus olhos permite a transmissão pela imaginação sensorial de um caleidoscópio vertiginoso de abstrações que só um movimento tão extravagante da câmera poderia reproduzir com sucesso. Um filme contendo apenas essas notações não seria nada, mas aquele em que elas são incluídas para coroar o todo – esse filme é tudo.
O crítico que em 1952 descreveu os principais traços dos filmes que consolidaram a era clássica do cinema (isto quer dizer 20, 30 anos após as suas realizações) à luz das obras de alguns dos principais cineastas dos anos 1940 e 1950 (isto quer dizer no momento em que estes lhe eram contemporâneos) foi o mesmo que em 1957 antecipou em 10, 20, 40 anos a crítica dos filmes que impulsionarão a etapa moderna do cinema. Griffith, Murnau, Stroheim, Dreyer, Gance, Eisenstein, Sennett, Lubitsch e Renoir são convocados não para explicar, mas para serem explicados por Welles, Lupino, Hawks, Preminger e Mankiewicz, assim como Rossellini, Welles e Hitchcock, a partir de uma análise assaz formalista de O homem errado, explicaram aquele que será o projeto de um cinema que “multiplica conscientemente esse tipo de efeitos ‘epidérmicos’” enquanto “relega o enredo da trama para segundo plano”, um cinema cujas “notações neorrealistas [...] precipitam um corpo cuja natureza, para parafrasear La Bruyère, revela-se uma vez que se lança na batalha do mundo”[2]. Esse projeto teve inúmeros desdobramentos, passando por inúmeras transições e transformações, as quais encontramos nos filmes de Jean Rouch, Yuliya Solntseva, John Cassavetes, Pierre Perrault, Shirley Clarke, Jacques Rozier, Gilles Groulx, Marco Bellocchio, Peter Emmanuel Goldman, Matjaž Klopčič, Jackie Raynal, Fernando Solanas, Jerzy Skolimowski, Bernardo Bertolucci, Glauber Rocha, Straub-Huillet, Paolo e Vittorio Taviani... Jean Eustache, Francis Reusser, Chantal Akerman, Marguerite Duras, Maurice Pialat, Jean-Claude Biette, Rainer Werner Fassbinder, Anne-Marie Miéville, Paul Vecchiali... Leos Carax, Manoel de Oliveira, Abbas Kiarostami, Jean-Claude Guiguet, Darejan Omirbaev, Vincent Gallo e Alain Guiraudie.
A iniciativa de Godard, como a de Rivette quando escreveu sobre Viagem à Itália (Journey to Italy/Viaggio in Italia, Roberto Rossellini, 1953-1954) e Monsieur Verdoux (Charles Chaplin, 1947), é análoga ao “salto do tigre em direção ao passado” de Benjamin, aquele que “sob o céu livre da história” desencadeará “o salto dialético da Revolução”[3]. Nesse sentido, a objeção de Godard ao trabalho de Pauline Kael nada mais é que uma reivindicação do papel especulativo, científico e potencialmente dialético da crítica, papel que Godard desempenhou notoriamente à época em que escreveu seus textos, papel que se distancia daquele mais anedótico, pautado pela sucessão de estreias ou pela tutela das programações oficiais, realizado na maior parte dos casos por jornalistas e resenhistas.
Com isso posto, é possível começar uma discussão sobre a crítica e sobre o trabalho cinematográfico de Godard.
À época do lançamento de Adeus à linguagem (Adieu au langage, 2011-2014) alguns comentaristas projetaram suas próprias impotências na obra e escreveram, com um misto de ironia e autodepreciação, que “não há o que dizer sobre esse filme”, que “o mérito desse filme é que não há o que dizer sobre ele”, que “mesmo Godard ficaria perplexo diante dos sentidos que os textos buscam dar ao seu filme”. É verdade: esses textos não dizem nada sobre o filme, e não é difícil imaginar Godard reagindo a eles com a mesma sinceridade que manifestou com Pauline Kael. O grau de subserviência que faz com que se preste um medíocre tributo ao mais recente filme de um célebre autor cinematográfico, qualquer que seja, mesmo sob o risco de se abordar de maneira precária uma obra que investe a maior parte dos seus procedimentos contra a própria condição espectatorial, faz com que a liberdade crítica suscitada por Godard na sua resposta a Kael permaneça não mais que um belo anseio. Essa liberdade, no entanto, deveria ser bem real, pois é a contraparte da liberdade criativa de um filme com uma estrutura formal voltada ao paradoxo, construído através de metáforas cujas conotações acabam sucessivamente deslocadas pela introdução, a todo instante, de um novo princípio mediador na imagem e na montagem.
A principal questão que um filme como Adeus à linguagem deveria suscitar, no entanto, passou ao largo de todos esses textos, e pode ser formulada da seguinte maneira: o quanto uma apreciação dos últimos três filmes de Godard depende da liberdade do espectador, e o quanto essa liberdade, uma liberdade que só pode existir em relação aos filmes e não a despeito deles, se relaciona a uma abordagem crítica que exige desse espectador mais tempo para assimilar esses filmes, intuir seus potenciais desdobramentos, situá-los devidamente no contexto histórico em que foram produzidos, compreender como são construídas suas articulações, fascinar-se com seus paradoxos e pôr em questão a desenvoltura com a qual um cineasta aos 80 anos lança mão de suas habilidades. Mais tempo para, em suma, interiorizar esses objetos fragmentários e totais, materialistas e holísticos, que ora tentam figurar o universo nas clareiras de um bosque cortado por um riacho, ora mimetizam a mente humana pelos diferentes modos de processamento das formas visuais e sonoras que os atravessam. Perceber as formas (como se constituem, como se apagam) antes de buscar um sentido para o filme, deixar que este se revele por aquelas, quando e onde se revelar, ou permaneça oculto quando e onde se perder, até se esquecer – nos seus vazios ou nos seus lampejos, nos trânsitos ou nas elipses das suas estruturas, nas dilatações ou nas condensações da sua matéria. O sentido do filme, sim, pode se perder, e porventura ser encontrado dentro de alguns meses, ou mesmo depois de um ano ou dois, como um impulso nervoso ativado por um estímulo capaz de desencadeá-lo repentinamente. Esse estímulo pode ser provocado por uma revisão de Made in U.S.A. (Jean-Luc Godard, 1966), Mediterrâneo (Méditerranée, Jean-Daniel Pollet, 1961-1963), O autêntico processo de Carl-Emmanuel Jung (L’authentique procès de Carl-Emmanuel Jung, Marcel Hanoun, 1966-1967), Entusiasmo: a sinfonia de Donbass (Entuziazm (Simfoniya Donbassa), Dziga Vertov, 1930), Brève traversée (Catherine Breillat, 2001) ou Bandeirantes da fronteira (Frontier Rangers, Jacques Tourneur, 1958-1959); pode vir da leitura de um livro que entrelaça as figuras de Kurt Gödel, Maurits Cornelis Escher e Johann Sebastian Bach ou da definição que Ricardo Miranda, cineasta, montador de A idade da Terra (Glauber Rocha, 1978-1980), deu da montagem ao “toque do tamborim” do filme; pode estar insinuado na “história da amizade fracassada” de Schönberg e Stravinski ou, finalmente, na conclusão de que Goethe, mergulhado no classicismo e no romantismo nas suas obras poéticas, prefigurou o modernismo com as suas obras científicas (foi dele o insight que permitiu a Webern escrever O caminho para a música nova). Se há um sentido em Filme socialismo (Film socialisme, 2008-2010) este é dado por, é de fato Adeus à linguagem, assim como o sentido deste é dado por Imagem e palavra (Le livre d’image, 2014-2018) e está nele, mas o mais importante é que esses filmes nos permitem compreender melhor alguns aspectos, algumas possibilidades do cinema, da composição e da ciência, que por sua vez indicam por quais vias um sentido se completa e se dá a nós através deles.
a ideia é simples
uma mulher casada conhece um homem solteiro
eles amam, eles conversam, punhos ao vento
um cachorro vaga entre a cidade e o campo
as estações passam
o homem e a mulher se encontram novamente
o cachorro se encontra no meio dos dois
um está no outro
o outro está em um
e eles são três
o ex-marido quebra tudo
um segundo filme começa
igual ao primeiro
e ainda não
da raça humana, passamos à metáfora
termina em latidos
e o choro de um bebê
— Jean-Luc Godard, sinopse de Adeus à linguagem
“Um está no outro, o outro está em um, e eles são três.” É o que vem depois que nos permite perceber o que veio antes, e a consciência que nasce dessa assimilação se dá sob a forma de um realizar-se contínuo, um devir. Mas esse devir se dá no agora, no “um”, e portanto o recurso ao paradoxo ou ao oxímoro na própria argumentação crítica acaba sendo, principalmente com os filmes posteriores às História(s) do cinema (Histoire(s) du cinéma, 1988-1998), um convite à deserção de um propósito crítico, o qual só pode levar à renúncia da busca do sentido, e mais especificamente a uma fuga assaz cômoda do confronto analítico com os filmes – como se, frente a um filme impossivelmente complexo, só restasse afirmar que é impossível afirmar, ou então, o que é ainda mais absurdo, que “o filme afirma tudo”. E ainda que a obra de Godard pós-História(s) do cinema nos passe a impressão de um único filme separado em partes, só é possível comentar o “todo” desse grande filme abordando cada um dos seus fragmentos – isto é, abordando cada filme desse filme maior.
Não havia então não-existência nem existência;
não havia o reino do ar nem o firmamento por trás dele.
O que protegia e onde? E o que dava abrigo?
Estava ali a água, a desmedida profundidade da água?
Não havia morte então, nem havia algo imortal;
não havia sinal ali, o divisor do dia e da noite.
A Massa Unitária, sem vida, vivia por sua própria natureza;
além dela nada mais havia.
As trevas lá estavam; a princípio escondido nas trevas
Tudo era um caos indiscriminado.
Tudo que existia então era vazio e informe.
Mas pelo grande poder do Calor nasceu aquela Unidade.
A seguir, surgiu o Desejo no começo, o Desejo,
a semente e o germe primordial do Espírito.
Os sábios que buscavam com o pensamento de seus corações
descobriram o parentesco do existente no não-existente.
Transversalmente estava estendida uma linha de separação:
o que, então, havia acima e abaixo dela?
Havia progenitores, havia forças poderosas,
ali havia ação livre e energia mais além.
Quem verdadeiramente conhece e quem pode aqui
declarar de onde nasceu e de onde veio essa criação?
Os deuses são posteriores a essa produção do mundo.
Quem sabe então como se originou?
Ele, a primeira origem da criação,
formou tudo ou não formou.
Na verdade, Ele, cujo olho vela pelo mundo nos altos céus,
sabe, ou talvez não saiba...
— R. T. H. Griffith, The Hymns of the Rigveda
“Da raça humana, passamos à metáfora.” Métaphore, mon beau souci: a tecnologia estereoscópica, utilizada por Godard em Adeus à linguagem, baseia-se na composição de um modelo visual tridimensional com características análogas à da visão binocular real. Ela é possibilitada pela paralaxe, fenômeno que determina a maneira como os objetos surgem em relação à visão do espectador através da distância horizontal entre a imagem formada em cada um dos olhos. São quatro os tipos de paralaxe: na paralaxe zero não há intervalo entre as imagens separadas, o que faz com que as duas imagens repousem no mesmo plano, tendo a mesma projeção para os dois olhos; a positiva ocorre quando a distância entre as imagens é maior do que zero e menor ou igual ao nosso espaçamento interocular, o que produz a sensação de profundidade, dando-nos a sensação de que o objeto está atrás da tela de projeção; na negativa, por sua vez, o cruzamento dos raios de projeção para cada olho encontra-se entre os olhos e a tela de projeção, dando a sensação de que o objeto está saindo da tela; e há ainda a paralaxe divergente, não utilizada na maior parte dos filmes rodados em 3D, que ocorre quando o valor da paralaxe é maior do que o valor de espaçamento interocular de nossos olhos.
Após renunciar à tentação, compartilhada por tantos colegas seus, de impor ao presente a anatomia do seu passado, após conduzir o cinema à era do presente absoluto, Godard pôde seguir, a partir dos anos 1980, com um projeto ambicioso de genealogia crítica do cinema, pôde produzir a sua metahistória no decorrer dos anos 1990 e agora chega, nos anos 2010, à sua metáfora, propondo uma tropologia do pensamento cinematográfico sob a forma de ensaios visuais. A fusão do ensaio com a ficção e a arte do esboço permite que Godard não mais oponha, como fazia em 1958 a propósito de Uma vida (Une vie, Alexandre Astruc, 1957-1958), o trabalho do pintor ao do romancista, o ímpeto poético à mão do arquiteto: como no filme de Astruc, os dons do romancista suscitam os do pintor, a irrupção lírica faz com que percebamos melhor o relevo arquitetônico, e no que têm de mais bem-sucedidas as soluções formais que Godard encontra surgem da narrativa e não para ela. Em Adeus à linguagem esse processo se dá de modo que o próprio fluxo imaginativo parece se manifestar como uma resposta direta ao fluxo de consciência do autor, pois a todo o momento o mundo externo aparece transfigurado pelo interno, enquanto o mundo interno se vê objetificado pelo externo. A imagem numérica é tratada com diferentes tipos de definição; a mixagem enfatiza a separação do som em direções distintas; os dois casais aparecem refletidos por um jogo de espelhos que os torna, afinal, em quatro (o zero, o negativo, o positivo e o divergente); a interpolação de sentidos, a heterogeneidade dos materiais encontram na estereoscopia um catalisador das suas potências mais recônditas. Vemos na própria imagem a coordenação das coisas, das matérias, em metáforas que assumem a forma de revelações. Uma brecha se abre no centro da imagem estereoscópica e logo vemos, através dessa fenda, um terceiro (a chuva, o rio, um canavial, um cachorro, o sangue) que faz a sua entrada, levando os eixos visuais da imagem e o próprio princípio da paralaxe aos extremos da divergência. É através desse recurso estritamente visual que, antes de quaisquer comparações e associações estabelecidas pela montagem, a consciência é um rio que corre; o amor uma faca que se empunha; a chuva o trânsito de uma rodovia que se estende na noite sem fim. Se em Bataille “o ato sexual é no tempo o que o tigre é no espaço”, em Adeus à linguagem a metáfora é no espaço o que a construção de sentido é na natureza. Não há nada que a montagem faça que não tenha um correlato na composição do relevo espacial do 3D, e é por isso que a proposta de Godard nesse filme se assemelha tanto à de um inventor como Stan Brakhage quanto à de um crítico-cineasta como Alexandre Astruc. Se a maioria dos filmes “são construídos sobre os poucos metros quadrados de cenário visível na lente”, “[p]ois não é mostrar a floresta que é difícil, é mostrar uma sala de visitas da qual se sabe que a floresta está a 10 passos”[4], Adeus à linguagem, como Anticipation of the Night (Stan Brakhage, 1958) e Comingled Containers (Stan Brakhage, 1996), constrói-se verdadeiramente através do mundo interior criado e revelado a partir da realidade fotografada em 3D. É desse modo que os últimos filmes de Godard correspondem cada vez mais à descrição que Serge Daney fez deles no fim dos anos 1980[5]: “Criticar, na verdade, deveria ser a arte de descrever objetos singulares encontrando boas metáforas (o que Godard chama obstinadamente de montagem)”.
Percebo hoje que, junto a vários dos meus camaradas que têm a mesma idade que eu e que não fizeram tantos filmes como eu, e em relação a alguns de nossos anciões (penso sempre em Dreyer, que tem duas ou três vezes a minha idade e fez quatro vezes menos filmes do que eu em toda a sua vida, portanto são coisas que conduzem um tanto à reflexão), percebo hoje o seguinte: ao passo que no meu primeiro filme eu tinha muitas ideias sobre cinema – quando fiz Acossado (À bout de souffle, 1959-1960), porque eu tinha 10 anos de crítica e na minha opinião enquanto fazia cinema continuava a fazê-la –, a partir do meu segundo filme percebi que pouco a pouco essas ideias, confrontadas à realidade da filmagem e da montagem, desapareciam cada vez mais, e hoje, após cerca de 20 filmes, sei cada vez menos o que é o cinema e no que ele consiste. Ao menos, o mínimo para mim é recomeçar cada vez, tentar recomeçar do zero ou ainda mais longe do zero, para encontrar o sentimento que as pessoas tiveram, os grandes autores do cinema (Griffith, Méliès, Dreyer, Chaplin e inúmeros outros que são ignorados hoje) que inventaram, que estavam sincronizados, se você quiser, com o seu meio de expressão. Hoje, de qualquer forma, uma coisa é certa: não somos, independente de sermos bons ou maus (e falo tanto do público e da crítica quanto das pessoas que fazem os filmes), não somos absolutamente sincronizados com o que nós fazemos: para sermos sincronizados temos que recomeçar os problemas completamente do zero, e dessa forma retomar problemas muito gerais que necessariamente levam a problemas políticos.
— Jean-Luc Godard,
Conferência de imprensa de A chinesa (La chinoise, 1967),
Festival de Veneza de 1967
Dissemos acima que Goethe, mergulhado no classicismo e no romantismo nas suas obras poéticas, prefigurou o modernismo com as suas obras científicas. Podemos dizer que o desenvolvimento artístico de Godard é, nesse aspecto, semelhante ao do autor alemão, mas no sentido inverso. “Filho da liberação e da Cinemateca”, encarnando a autoconsciência de uma geração marcada por uma enorme erudição cinéfila e pela nostalgia de um impulso revolucionário, Godard acaba reivindicando não tanto o cinema dos pioneiros, dos precursores, mas sim o seu gesto inicial, o seu entusiasmo criador. A introdução de uma consciência retórica das formas cinematográficas, formulada por Godard enquanto ainda era um jovem crítico, é em seguida substancializada pela sua obra de cineasta. Longe de ser um horizonte, essa reivindicação de uma retórica das formas, e especificamente da articulação dessas formas seja pela mise en scène, seja pela montagem, é apenas um meio pelo qual Godard eventualmente alcança o sentido primitivo da expressão cinematográfica. Após incorporar todo tipo de jogo significante (a panóplia de citações, gêneros, convenções do cinema se entrelaçando, encadeando o próprio filme), após multiplicar os sentidos através desses jogos e extrapolar sucessivamente essa profusão de sentidos, o filme atinge o paroxismo e torna-se possível falar, então, de “uma saturação de signos magníficos que se banham na luz da sua ausência de explicação”. A originalidade de Godard cineasta, desde o seu início, consistiu em evidenciar o nível cinematográfico da reflexão sobre a narrativa que lhe ocupava, muitas vezes em detrimento dos formatos narrativos ou das tendências narrativas às quais recorria. Isso fez com que nos seus filmes acabassem destacadas as figuras de estilo, as formas que revelavam a consciência pela qual se efetuava essa operação. Acompanhando as programações da Cinemateca de Langlois, vendo os filmes mudos, comparando-os aos filmes contemporâneos, Godard entendeu muito rapidamente – antes mesmo de escrever seus primeiros textos críticos, e muito antes de começar a filmar – que as articulações da estrutura fílmica, a forma, o estilo, seja lá qual for o nome que se queira dar, são o que os filmes têm de mais duradouro, muito mais que as formatações das intrigas, as deliberações dramáticas e os tipos de narração. Onde a maioria dos filmes tem como imperativo a fusão do que se mostra com o que se narra, do registro com a construção, Godard deseja apartá-los e ver quais desvios, quais deslocamentos são produzidos para em seguida analisá-los, refleti-los e utilizá-los numa nova perspectiva. Se “fazer cinema, no sentido mais nobre da palavra, é poder transformar o maior número possível de imagens em raccords”[6], então a diferença de Godard para os outros cineastas é que ele colocou o registro e a construção, o realismo e a abstração, a mise en scène (Bazin) e a montagem (Eisenstein) sempre no mesmo pé de igualdade, mas nunca para nivelá-los: se é possível falar em integração, são os atritos e as tensões entre os dois pólos que Godard busca incorporar, sempre em modo de contraponto (e nunca, como na maior parte dos filmes, apenas ressaltando um em detrimento do outro) e nunca da mesma forma de um filme para o outro. É a partir desse ponto que se abre a possibilidade de recomeçar os problemas “completamente do zero”, de seguir em frente com o impulso revolucionário, aquele que inevitavelmente conduzirá a problemas políticos.
Se Imagem e palavra é talvez na filmografia godardiana o filme em que esse processo se revela com maior nitidez é porque para Godard, e ao contrário da maioria esmagadora dos cineastas, a política não é um domínio do pensamento separado dos outros, segmentado em pequenos nichos. A ideia de que tudo é político encontra uma substância formal condizente porque Godard, tratando a política como o que existe de mais geral, aborda a fragmentação, a parte, a menor unidade menos pelo seu impacto, pela sua brutalidade ou o seu mistério que pela sua plasticidade, a sua interdependência no interior de uma estrutura que repercute justamente a solidariedade entre pensamentos díspares, de origens e destinos heterogêneos. Rainer Maria Rilke, Louis-Ferdinand Céline, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Dziga Vertov, Buster Keaton, Jacques Tourneur, Hollis Frampton e imagens do Google repercutem ideias, intuições e sentimentos numa união que vem de muito longe e segue em perspectivas remotas. A autoconsciência manifesta das possibilidades do cinema e a análise dos seus dispositivos retóricos são as condições imprescindíveis para que a sincronização com o meio de expressão, formalizada no passado com outros artifícios pelos pioneiros, seja admitida e explorada por Godard. Através desses fragmentos massacrados, quase irreconhecíveis, muitas vezes perdidos na noite dos tempos, percebemos que o espírito das formas é uno e que “o que mergulha na luz é a ressonância daquilo que a noite submerge, o que a noite submerge se prolonga no invisível do que mergulha na luz”.
A imagem é uma pura criação do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem distantes e justas, mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá. [...] Uma imagem não é forte porque é brutal ou fantástica, mas porque a associação de ideias é distante e correta.
— Pierre Reverdy, “L’image”, Nord-Sud n.º 13, março de 1918
Nos últimos 15 anos, Godard fez um filme estruturado a partir da Divina comédia (Nossa música [Notre musique, 2003-2004]) e depois outro, também em forma de tríptico (Filme socialismo), fez um chamado Adeus à linguagem e outro chamado “o livro da imagem” (Imagem e palavra). Sua obra, provavelmente desde Paixão (Passion, 1982), existe paradoxalmente fora desse presente absoluto que seus próprios filmes instauraram e deflagraram, e no qual interviram, até aproximadamente primórdios dos anos 1980. A imagem no momento em que a vemos, o filme no momento em que o assistimos já não são mais do que o elo entre a imagem e o filme que vimos anteriormente e aquela e aquele que virão depois. Esse pertencimento elusivo ao presente revela um ponto-chave do pensamento de Godard: o de não se deter em nenhuma crença, o de explorar cada crença em modo de assimilação (como se diz de uma máscara, de uma persona), trocando uma por outra, botando esta ao lado daquela, uma contra a outra, e assim sucessivamente. Essas crenças, essas máscaras, fizeram Godard admitir o valor fascinatório do cinema (O desprezo [Le mépris, 1963]), fizeram-no negar esse valor (A gaia ciência [Le gai savoir, 1968-1969]), fizeram-no liquidar todas as imagens pregressas do cinema no novo continente da não-imagem, o vídeo (Número dois [Numéro deux, Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, 1975]).
Hoje, Godard usa a sua posição singular para avançar uma hipótese sobre um possível presente do cinema, ele próprio também hipotético. Se, como diz Paul Vecchiali, “a verdadeira liberdade é a liberdade em relação a si mesmo”, truísmo que Godard transformou em metodologia e que o permitiu cobrir enquanto cineasta, num período de 70 anos, tanto o território aberto pela montagem eisensteiniana quanto a “janela para o mundo” baziniana, então é apenas natural que o crítico que em 1957 escreveu que “[u]m filme contendo apenas essas notações não seria nada, mas aquele em que elas são incluídas para coroar o todo – esse filme é tudo” venha a realizar mais recentemente um cinema integralmente constituído por caleidoscópios vertiginosos de abstrações, por movimentos extravagantes de câmera que exprimem as invenções de uma imaginação sensorial. O presente como dimensão provisória que liga o cinema precedente àquele que há de ser feito, ou o sentido da história aos próximos passos do homem, é o tempo que transcorre em Adeus à linguagem e Imagem e palavra, um tempo que superou as oposições entre realismo e abstração, representação e presentificação, Bazin e Eisenstein, um tempo que foi prefigurado por Annette Michelson quando, ao comentar a obra crítica de Godard[7], notou que o registro da subjetividade denotado pelo movimento de câmera empregado por Hitchcock na cena da cela em O homem errado, subordinado ao encadeamento dramático de uma narrativa, eventualmente deu lugar a um outro registro de subjetividade que ocupou o centro daquilo que se chamou de Novo Cinema Americano em filmes como os de Stan Brakhage e Michael Snow, compostos quase que integralmente por essas “notações” que ganharam a atenção de Godard no filme hollywoodiano de 1956.
Livre em relação a si mesmo, livre como nunca foi antes, Godard pode agora fazer, ao invés de três filmes por ano (como nos anos 1960) ou três filmes em quatro anos (como nos anos 1990), um filme durante três ou quatro anos. Esse tipo de filme, pela própria natureza de sua produção, exigiria da crítica um tempo e um esforço maiores de assimilação e reflexão, um tempo e um esforço maiores de impressão antes do esboço de qualquer reação, do empenho em qualquer tentativa de exaltação ou valorização do “gênio do autor”. É a partir de Filme socialismo, mas principalmente com Adeus à linguagem e Imagem e palavra, que o cineasta suíço pôde verificar a fundo aquilo que a obra de Vertov prenunciava já nos anos 1920: que a intersecção entre o cinema experimental e o cinema político estaria numa produção de sons e imagens que dá a ver e a ouvir aquilo que foi excluído em um sistema dominante[8]. Como Stanley Kubrick, Philippe Garrel, Michelangelo Antonioni e James Gray, Godard incorpora descobertas inesperadas do cinema experimental no cinema narrativo; como Věra Chytilová, Artavazd Peleshian, Yervant Gianikian-Angela Ricci Lucchi e Pedro Costa, ele encontra o sentido político dessas descobertas na dilatação e na subsequente exploração das suas possibilidades composicionais.
“Tudo é um e um está no outro e essas são as três pessoas” (Léon Brunschvicg citado em Infelizmente para mim [Hélas pour moi, 1992-1993]). Longe do mito do Éden, que consiste na ideia de que o conhecimento mancha a experiência, o cinema de Godard pode agora fazer todas as associações possíveis, pode dar prosseguimento a um método de sincronização com o meio de expressão intimamente ligado à atividade crítica, que une a reflexão e a descoberta não mais como valores autônomos, mas como propriedades relacionais: Robert Rossen e Andy Warhol, Budd Boetticher e Ed Emshwiller, F. W. Murnau e Brian De Palma, Victor Sjöström e Joris Ivens, Max Ophüls e Rob Tregenza, André Malraux e Stan Brakhage, Abel Gance e Hollis Frampton, os filmes da Triangle e os de Jean-Pierre Mocky. Se concordarmos com Jacques Lourcelles[9] que entre A chegada de um trem à estação (L’arrivée d’un train à La Ciotat, Louis e Auguste Lumière, 1896) e Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960) é possível considerar o conjunto do cinema de ficção como se se tratasse de um único filme, podemos avançar a hipótese de que, a partir de Acossado, o filme que o cinema viveu tem por título “A Era de Godard”. Desde então, os filmes são circuitos que descrevem seu vínculo inevitável tanto com o ceticismo (a compreensão de que não há só uma verdade) quanto com a aceitação da força geradora de imaginação (a capacidade de levar essas não-verdades até o fim, de ver até onde cada uma delas conduz), à semelhança do que escreveu o poeta Fernando Pessoa em O livro do desassossego[10], numa antecipação do gênio poético de Godard: “Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representando várias peças”.
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2016/2021 – Foco |