REBELDES NA AMÉRICA – SOBRE OS FILMES DO NEW AMERICAN CINEMA
por Werner Herzog



O local de exibição era Munique, ou melhor dizendo: que todo mérito seja dado à sala do Filmkunststudio, localizada na região central de Schwabing. A ocasião era uma apresentação de cerca de 30 filmes do Novo Cinema Americano, que passou por Munique a convite do Instituto Alemão de Cinema e Televisão (Deutsches Institut für Film und Fernsehen/DIFF). (Ver também: “O Novo Cinema Americano”, de Hans Fischer, publicado na Filmstudio n.º 36).

Os embates eram intensos: aprovação e rejeição causavam barulho, em seus constantes choques. Quando o trickfilm vertiginoso Blazes (Robert Breer, 1961) – com sua continuidade completamente esfacelada e sua agressividade visual beirando o inaceitável – era exibido, por engano, uma segunda vez, parte do público, em protesto, bloqueou a janela de projeção; assim como às quase 2h15 de exibição do filme The Flaming City (Dick Higgins, 1961-1963) – com suas circunvoluções à exaustão – sobreviveram apenas uns poucos espectadores em uma sala totalmente esvaziada: os outros já haviam, há muito, buscado o alento da saída.

É bastante significativo que, até agora, a crítica alemã não tenha dado quase nenhuma nota relevante acerca dessa maratona intensiva de filmes (muito provavelmente devido à imponência do escopo de tal evento ou mesmo porque nada mais os desperta de seu estado de fósseis), isso num momento em que a vanguarda americana já vinha desenvolvendo suas aspirações há quase uma década: dentre elas, o trabalho sistemático com os resultados dos experimentos surrealistas.

É questionável até que ponto é possível falar em um grupo coeso. Porém, apesar das enormes diferenças artísticas entre os indivíduos que o compõem, com uma certa boa vontade, inúmeras semelhanças podem emergir – mesmo que tal percurso careça de total legitimidade. Remonta-se ao outono de 1960, quando, em Nova York, uma precária união de 23 cineastas ficaria conhecida como o nascedouro do Novo Cinema Americano – mesmo que já se pudesse notar um estado embrionário anterior. A primeira declaração conjunta publicada pelo grupo não continha nenhuma diretriz artística programática, mas limitava-se a uma declaração de guerra à censura e à indústria cinematográfica, encerrando com um radical – em termos de teoria da arte – mas vago “Não queremos filmes cor-de-rosa, queremos filmes da cor do sangue”.

No entanto, em seguida a essa união, o que ficou como algo realmente inovador foi a fundação de uma cooperativa que permitiu – com o emprego de uma porcentagem dos magros lucros obtidos – um bem-sucedido método de subvenção de alguns projetos individuais, até então desamparados. Essa medida era, nesse momento, muito importante, uma vez que a posição social marginal (seria um erro usar o termo beatnik) dos autores anulava qualquer perspectiva de exploração comercial de suas obras.

Dessa situação precária de financiamento resultou, como consequência mais notável, a quase total redução do aparato de produção, o que permitiu uma vasta liberdade em relação às coerções dos produtores e do capital. O longa-metragem As armas das árvores (Guns of the Trees, 1961), de Jonas Mekas – principal ideólogo e editor-chefe da Film Culture –, custou apenas a fantástica soma de $ 9.000,00. Os filmes da “Escola de Nova York” tratam-se, em grande parte, de “projetos de um homem só”, o que garante uma notável homogeneidade às obras. Exemplar desse método de trabalho é Brakhage, que realizou seus filmes como um ermitão completamente isolado.

Um outro traço em comum, mais notável, é a média de idade impressionantemente jovem dos realizadores. P. Adams Sitney, redator da Film Culture e organizador das exibições pela Europa, tem 19 anos; Gregory Markopoulos começou a fazer filmes aos 12; e Brakhage – provavelmente a aparição mais importante entre eles – tinha rodado quatro ou cinco curtas-metragens antes de completar 20 anos, com o dinheiro que juntou trabalhando, esporadicamente, como especialista em microfotografia. Taxar eles ou seus filmes de frutos da puberdade seria, contudo, uma blasfêmia. Mesmo que as circunstâncias externas possam sugerir tal conclusão, elas são contraditas pela ausência substancial – em tais casos – de protestos sistemáticos contra as convenções estabelecidas.

Trata-se exatamente do oposto: a maioria de seus filmes – assumindo que eles são, de alguma forma, representativos de um todo – mostrou tamanha segurança em sua concepção que já não correspondem a um estágio de pura experimentação. Não se trata, contudo, de uma negação do experimental. As buscas levaram, por exemplo, a tamanhos resultados que agora os mesmos requerem uma análise mais detida e aprofundada. Seja o minuto inicial de uma tela cinza como prólogo de um filme ancorado numa antiga mitologia – Twice a Man (Gregory J. Markopoulos, 1963-1964) – que mais irrita do que evoca um aumento de expectativas; ou Brakhage, que na tentativa de libertação da recepção meramente fotográfica dos objetos – para colocá-los diretamente em ação – colou asas transparentes de borboletas ou pétalas de flor diretamente na película, e em seguida as projetou.

O que faz, porém, com que o trabalho do grupo seja tão significativo já ultrapassou, em muito, a mera experimentação. É a tendência dos filmes à autorreflexão acerca dos seus próprios meios, isto é, a tendência de consolidar uma estética cinematográfica que não tem mais nada a ver com categorias como literatura ou teatro. O que se está praticando é um processo de destilação dos meios expressivos puramente cinematográficos, no qual se elimina qualquer resíduo das tradicionais formas de adaptação literária e teatral. Aqui nem mesmo um olhar virgem é mais suficiente, a maioria dos filmes tem um estofo visionário mais profundo. Desse olhar visionário resultam duas consequências:

1. As visões realmente acontecem, elas não são literárias e, assim, através de um script previamente forjado, resulta, por assim dizer, um jogo marcado pela espontaneidade, que reside na gênese de vários dos filmes. O exemplo mais conhecido, nesse caso, é o filme – em grande parte improvisado – Sombras (Shadows, John Cassavetes, 1957-1959), que posteriormente foi renegado pelo círculo da Film Culture, uma vez que, para o seu lançamento comercial, várias cenas foram cortadas. Em Chumlum (Ron Rice, 1963-1964), o mais notável é o elemento do jogo. O abundante colorido bombástico traz, através de seus arabescos rítmicos e suas sobreposições, sempre novas variações de uma atmosfera supersaturada, fantástica e que exala sensualidade. Nele, a sexualidade é uma expressão central do jogo.

2. O olhar visionário exige uma nova relação para com a realidade. Para uns, isso diz respeito não apenas ao aspecto documental das filmagens, mas também à consciência que se explicita nos movimentos de câmera, na montagem ou em certos processos técnicos que permitem a manipulação durante a copiagem; para que, assim, um anacrônico naturalismo possa ser superado. Para outros, isso consiste num novo estilo de representação. São notáveis alguns esforços empenhados nesse sentido. Blonde Cobra (1962-1963), de e com Jack Smith[1], é o principal expoente desse caminho, mesmo que o filme cause uma impressão de pouca articulação. Foi completamente assombroso: provavelmente o filme mais inusitado da apresentação dentre tudo o que foi exibido. Em partes homogeneamente fragmentadas – entre as quais sempre vemos alguns minutos de uma tela cinza – nos é ofertado um atormentado pandemônio homossexual, encabeçado por um protagonista exageradamente exibicionista.

Um exemplo concreto de como o cinema pode se libertar da narrativa encontra-se no filme acima mencionado, As armas das árvores, de Jonas Mekas, que é baseado não em uma peça literária, mas sim em uma crítica de cunho puramente filosófico. Cinco jovens encontram-se em meio a uma crise existencial, para a qual não veem saída. No entanto, eles não se rebelam contra os perigos que emanam do ambiente quase apocalíptico que os envolve: eles se refugiam na apatia; na vaga esperança que Ben, um vendedor de seguros, e Argus, sua esposa negra, depositam em seu filho, que ainda está por nascer (as cenas com esse casal de atores são, talvez, as de maior densidade artística). Diz o próprio Mekas: “Meu filme registra apenas o domínio do medo. Não há solução. Em meu filme, apenas se acendem luzes vermelhas. A bem da verdade, As armas das árvores é a minha meditação sobre a vida e a morte num momento de grande perigo.” No aspecto formal, a interrupção rítmica e agitada através de espaçamentos brancos, tal como a interpelação constante de dois tolos, assume a função de comentário, como um coro numa tragédia antiga.

Com The Dead (1960), Stan Brakhage mostrou mais claramente do que todos que um pensamento filosófico é vivenciado não através de palavras, mas sim com um substrato puramente visual. Retomando uma linha de raciocínio deixada por Wittgenstein, segundo a qual nessa vida a morte se dispõe nas sombras, várias imagens intensas vêm à tona. Para isso, ele sobrepôs imagens coloridas e em preto e branco – simbólicas de algumas formas básicas que remetem à morte – em sequências inquietantes uma seguida da outra. Tal inquietude é um sintoma notável entre os cineastas do Novo Cinema Americano.

É interessante notar também como grande parte dos filmes vai lidar – de formas diferentes – diretamente com o problema da morte. Como, por exemplo, Thanatopsis (Ed Emshwiller, 1962), Anticipation of the Night (Stan Brakhage, 1958) e Sirius Remembered (Stan Brakhage, 1959), apenas para mencionar alguns. Enno Patalas zombou de Brakhage na Filmkritik: o objeto que ele identificou como “pele de cachorro”, trata-se, na verdade, de um cadáver de cachorro, encontrado morto atrás de um arbusto. Brakhage usa a descoberta para um estudo de tirar o fôlego – de cerca de dez minutos de duração – sobre a morte e a transitoriedade, com sua câmera realizando uma dança selvagem ao redor do corpo em decomposição. Através do movimento, o processo cósmico de transformação da vida em reles matéria torna-se um acontecimento de extrema atualidade, acompanhado pelo ciclo das estações. A displicência formal é, portanto, apenas aparente: logo depois da primeira panorâmica, se estabelece uma perfeição extremamente artificial.

Provavelmente uma das contribuições mais estimulantes da exibição foi o filme de meia hora Scorpio Rising (Kenneth Anger, 1962-1963), que também passou em Knokke e fora de competição em uma sessão noturna em Oberhausen. (Acerca do louvável 3º Festival Internacional do Cinema Experimental – organizado de 25/12/1963 a 2/01/1964 em Knokke – nada, até agora, foi noticiado na Filmstudio. Os filmes lá exibidos chamaram a atenção novamente para o fato de que se tornou necessária uma análise detida do experimental e/ou da vanguarda. Na forma de um relato de festival isso se daria, naturalmente, apenas de forma incompleta, uma vez que outras tentativas surgidas nos últimos anos – mesmo que tenham sido menos reconhecidas – têm de ser levadas em conta. Por isso, iremos publicar, numa das próximas edições, um longo ensaio acerca desse tema, o qual também abordará o assim denominado “happening”, que até então permanece quase não discutido na Alemanha.) A falta de coragem por parte da curadoria do festival não poderia estar melhor documentada, uma vez que o filme excluído tratava-se, de longe, do melhor do festival. Aqui, algumas linhas devem ser dedicadas a ele. Scorpio Rising permite-se ser dividido externamente em quatro partes, as quais o próprio Kenneth Anger denominou da seguinte forma (Film Culture n.º 31): “Uma visão em sobrevoo do mito do motociclista americano. A máquina como um totem tribal, do brinquedo ao terror. Thanatos em cromo e couro preto. Parte 1: jovens na faixa dos vinte e cilindros de pistão (a fascinação masculina e a coisa pela qual ela se move). Parte 2: forjando a imagem (instigado pelos heróis). Parte 3: festa do Dia das Bruxas (o sabá dos motociclistas). Parte 4: rebelde (uma mensagem de nosso responsável).” É, porém, relativamente fácil de se compreender que o filme não é nem um “trabalho documental fenomenológico” nem que o autor “objetivou criticamente suas inclinações pessoais” – tal como Enno Patalas especulou apressadamente e acriticamente – já que falta ao próprio Anger, tão intimamente envolvido, a distância e a ironia necessárias. Não é de se estranhar que o autor tenha tido escrúpulos com o lançamento de seus filmes, o que ele considera um ato de autodestruição beirando a confissão.

Scorpio Rising é um relato (mas não um relato documental) sobre uma gangue de motociclistas americanos, de seus ritos e excessos homossexuais. Ele começa igualmente de forma ritualística, com uma lentidão e precisão inacreditáveis, que chegam a ser quase insuportáveis. Com uma fascinação exasperante, a câmera detém-se em motocicletas e em seguida mostra o piloto, que logo em seguida surge com exaltação e vestimenta propositalmente quase demoníacas. Sua roupa inclui jaqueta e botas de couro e uma corrente de ferro no lugar do cinto. Então eles festejam numa orgia homoerótica, organizam uma corrida e agem como neonazistas debaixo de uma bandeira com o símbolo da SS e um crânio. Tudo acompanhado por uma invasiva e sagaz canção pop, que por si só, penetrando cada ação, tornará possível a motivação pelos “heróis”. Assim, surgem imagens de James Dean nas paredes e do Super-Homem em quadrinhos, como também mesclam-se cenas de Cristo em Rei dos reis (The King of Kings, Cecil B. DeMille, 1927) e Marlon Brando em O selvagem (The Wild One, Laslo Benedek, 1953).

Essas inserções não devem ser compreendidas como uma motivação psicológica que, em tal universo, provocaria o comportamento dos motociclistas; menos ainda são as tomadas com Cristo pensadas como contraste. Elas são componentes integrantes dos eventos, que abrem – como já indicado no título – aspectos astrológicos. Através delas, o filme adquire uma outra dimensão: motociclistas, Marlon Brando, Hitler e Cristo são representantes de figuras que nasceram sob o signo de escorpião. Elas combinam – para Anger – a proximidade entre queda e ressurreição, entre a potência carismática de sua aparição e o messianismo violento de sua egocêntrica e controlada rebelião; de tal forma que o paralelismo flui para uma identificação total. Essa unificação de Hitler, Cristo e Marlon Brando ainda encontra na figura do motociclista os emblemas da morte cinicamente contemplados. O resultado é um filme cheio de selvageria, de uma beleza cruel: uma obra-prima.

Um dos problemas que já se mostrou com a exclusão de Scorpio Rising da seleção oficial de Oberhausen é a distância entre realizador e público. Aqui, devem ser encontrados caminhos totalmente novos para que não se caia num louvor exotérico. Na verdade, novas abordagens para alguns gêneros novos de filmes, que sejam de alguma forma análogos às formas literárias da carta e do diário. Marie Menken originalmente rodou o trickfilm de cerca de três minutos Dwightiana (1959) para uma única pessoa, mais especificamente, um amigo doente de quem ela queria levantar o astral. Ela já vem também trabalhando num filme concebido em um processo de constante complementação, Notebook (1940-1963), que provavelmente só virá a alcançar um circuito muito íntimo. Como a difusão comercial através de distribuidores esteve desde o início completamente fora de questão, resta aberto apenas o caminho do home-cinema, ou seja, necessita-se de uma difusão das cópias em 8 mm. dos filmes, que possam ser exibidas quantas vezes possíveis no circuito privado. Está claro, porém, que essa solução pode ser apenas provisória.

Resta a esperança de que o Novo Cinema Americano seja capaz de manter a fé tal como os vanguardistas na faixa dos 20 anos. Apesar de todos os sinais indicarem, até agora, que tal esperança deva ser relegada ao reino da utopia.


Nota:


[1] Aqui o autor comete um equívoco, uma vez que Blonde Cobra (1963) é protagonizado por Jack Smith e dirigido por Ken Jacobs. [N.T.]


(Filmstudio n.º 43, maio-agosto de 1964, pp. 55-60. Traduzido por Guilherme Savioli. Revisado por Catarina Cavallari e Nina Giácomo)

 

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