O LOUCO ALOCADO[1]
O HOMEM QUE ODIAVA AS MULHERES (The Boston Strangler). 1968. 20th Century Fox (116 minutos). Produção: Robert Fryer. Produtor associado: James Cresson. Roteiro: Edward Anhalt, baseado no livro de Gerold Frank. Fotografia: Richard H. Kline (Panavision, DeLuxe). Música: Lionel Newman. Cenografia: Jack Martin Smith, Richard Day (a.d.), Walter M. Scott, Stuart A. Reiss, Raphael Bretton (não creditado) (s.d.). Montagem: Marion Rothman. Elenco: Tony Curtis (Albert DeSalvo), Henry Fonda (John S. Bottomly), George Kennedy (detetive Phil DiNatale), Mike Kellin (Julian Soshnick), Hurd Hatfield (Terence Huntley), Murray Hamilton (detetive Frank McAfee), Jeff Corey (John Asgeirsson), Sally Kellerman (Dianne Cluny), William Marshall (procurador-geral Edward W. Brooke), George Voskovec (Peter Hurkos), Leora Dana (Mary Bottomly), Carolyn Conwell (Irmgard DeSalvo), Jeanne Cooper (Cloe), Austin Willis (Dr. Nagy), Lara Lindsay (Bobbie Eden), George Furth (Lyonel Brumley), Richard X. Slattery (detetive capitão Ed Willis), William Hickey (Eugene T. O’Rourke), Eve Collyer (Ellen Ridgeway), Gwyda Donhowe (Alice Oakville), William Traylor (Arnie Carr), Alex Dreier (comentarista televisivo), Shelley Burton (David Parker), Elizabeth Baur (Harriet Fordin), James Brolin (detetive sargento Phil Lisi), George Tyne (Dr. Kramer), Dana Elcar (Luis Schubert), Carole Shelley (Dana Banks), Karen Huston (Pat Bruner), John Cameron Swayze (narrador televisivo), Enid Markey (Edna), Dorothy Blackburn (Minnie), Almira Sessions (Emma Hodak), Isabella Hoopes (Bertha Blum), Richard Krisher (Tom), Arthur Hanson (comissário), Walter Klavun (chefe da polícia), Tim Herbert (Cedric), Matt Bennett (Harold), Penny Williams (Mae), Janis Young (Louise Parker), George Fisher (Sr. Taylor), David Lewis (juiz Schroeder), Pam McMyler (Grace), Greg Benedict (Dick Matheson).
Sem dúvida não é abusivo considerar O homem que odiava as mulheres como um dos melhores filmes da produção americana de 1968. A partir de um caso real, que foi igualmente utilizado por Jack Smight para Uma face para cada crime (No Way to Treat a Lady, 1968 – e a diferença de tratamento entre os dois filmes acentua as qualidades do primeiro), Richard Fleischer, com a cumplicidade do seu roteirista, Edward Anhalt, atualmente um dos melhores de Hollywood – autor de, entre outros, A hora da pistola (Hour of the Gun, John Sturges, 1967) e A louca de Chaillot (The Madwoman of Chaillot, Bryan Forbes, 1969) –, transpõe o desafio de lidar simultaneamente com um filme policial na grande tradição do film noir, uma análise psicológica e um estudo de costumes que desagua num retrato sem enfeites da sociedade americana.
No plano do interesse dramático, O homem que odiava as mulheres não tem motivos para invejar o recente e um pouco superestimado Crime sem perdão (The Detective, Gordon Douglas, 1968). A longa série de assassinatos da primeira parte do filme é um modelo de suspense; a angústia nasce da impotência em conter uma onda de crimes diante da qual a polícia, totalmente sem recursos, chega a perseguir todos os loucos e a chamar videntes capazes apenas de lhe apontar um pobre neurótico completamente inocente. A desintegração e a dispersão da investigação encontram um eco formal bem-sucedido na utilização de telas múltiplas. A imagem em CinemaScope divide-se inúmeras vezes para apresentar aspectos diferentes de uma mesma sequência, seja um close que não passa de um detalhe da imagem vizinha, sejam dois planos registrados de ambos os lados de uma divisória, as pessoas agitadas no corredor e o quarto escuro em que a vítima se encontra, por exemplo. Se às vezes essa tentativa de fragmentação da imagem – já experimentada em Crown, o magnífico (The Thomas Crown Affair, Norman Jewison, 1968), mas de modo infinitamente menos feliz – adquire o aspecto de um procedimento constrangedor, ela também oferece atalhos singulares e consegue até mesmo comunicar a sensação estranha de uma realidade multiforme e, portanto, inacessível.
Quase sem transição, a segunda parte do filme desenvolve-se numa longa confrontação entre o assassino que sofre de dupla personalidade e o policial encarregado de trazê-lo de volta a uma consciência clara dos seus atos criminosos. Longos planos-sequência entre quatro paredes brancas, que contrastam com os múltiplos pontos de vista da primeira parte, opõem o investigador ao assassino, que acaba transformado em vítima: o drama que está em jogo é o de uma consciência que sente florescer em si, pouco a pouco, todo um passado de horror e que se destrói irremediavelmente sob o peso dessa revelação; o drama é também o de um policial que realiza um assassinato moral ao conduzir seu prisioneiro a uma tomada de consciência destrutiva. Assim, num final admirável, já não se sabe muito bem quem é o verdadeiro culpado e a loucura do assassino torna insuportáveis os processos de uma sociedade que procura se proteger a todo custo.
Em filigrana, O homem que odiava as mulheres condena uma sociedade ao denunciar os seus defeitos. Com um estilo infinitamente menos didático ou espetacular que o que é usado por outras produções recentes, o filme de Fleischer realça os sobressaltos de uma cidade amedrontada que não recua de forma alguma para assegurar a sua tranquilidade. Raramente foram tão bem desconstruídas as engrenagens e as contradições de um sistema policial que depende das autoridades municipais, retratado entre o rancor de uma opinião pública constantemente alimentada pela imprensa e pela televisão e a baixeza dos meios políticos, que só veem nos assuntos da criminalidade uma oportunidade para falar sobre si próprios. O pano de fundo do filme permite que se revele, assim, uma cidade onipresente – no caso, a puritana Boston – que se serve de toda a sua hipocrisia para fazer triunfar a ordem moral apesar dos loucos, dos pervertidos, dos corrompidos e dos assassinos.
Portanto, embora os defeitos não estejam completamente ausentes, o filme de Fleischer pertence à categoria privilegiada das obras que denunciam a violência e as contradições da sociedade americana. Fleischer, autor subestimado por ser desigual, consegue nada menos do que uma das realizações mais corajosas destes últimos tempos e, com O homem que odiava as mulheres, continua uma análise iniciada já há alguns anos com O escândalo do século, Fama a qualquer preço, Sábado violento, Entre o Céu e o Inferno. O melhor da sua obra é atravessado por um realismo crítico baseado numa acuidade do olhar a que será preciso dar o devido valor no futuro. Para terminar, que dizer das suas qualidades de diretor de atores, dando nomeadamente a Henry Fonda e sobretudo a Tony Curtis a oportunidade de encontrarem nas suas personagens dois dos mais belos papéis de suas carreiras. É preciso sublinhar particularmente a interpretação de Tony Curtis: nós já não vemos o ator no papel do estrangulador, é o estrangulador que fica por algumas horas com os traços do intérprete.
Nota:
[1] Tentativa de manter o trocadilho original: “détraqué traqué”. [N.T.]
(Cinéma n.º 135, abril de 1969, pp. 127-131. Traduzido por João Palhares) |
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