SOBRE A MORTE DO CHEFÃO e OS TRÊS DISCÍPULOS DA MORTE
por André Barcellos
A MORTE DO CHEFÃO (The Don Is Dead). 1973. Universal Pictures (113 minutos). Produção: Hal B. Wallis para a Hal Wallis Productions. Produtor associado: Paul Nathan. Roteiro: Marvin H. Albert, a partir de adaptação de Christopher Trumbo e Michael Philip Butler, baseada na novela de Marvin H. Albert. Fotografia: Richard H. Kline (Technicolor). Música: Jerry Goldsmith. Cenografia: Preston Ames (a.d.), Don Sullivan (s.d.). Montagem: Edward A. Biery. Elenco: Anthony Quinn (Don Angelo DiMorra), Frederic Forrest (Tony Fargo), Robert Forster (Frank Regalbuto), Al Lettieri (Vince Fargo), Angel Tompkins (Ruby Dunne), Charles Cioffi (Luigi Orlando), Jo Anne Meredith (Marie), J. Duke Russo (Don Aggimio Bernardo), Louis Zorich (Mitch DiMorra), Anthony Charnota (Johnny Tresca), Ina Balin (Nella), Joe Santos (Joe Lucci), Frank de Kova (Giunta), Abe Vigoda (Don Talusso), Victor Argo (Augie), Val Bisoglio (Pete Lazatti), Robert Carricart (Mike Spada), Frank Christi (Harold Early), Sid Haig (“o árabe”), Maurice Sherbanee (“o córsico”), George Skaff (Vito), Vic Tayback (Ralph Negri).
OS TRÊS DISCÍPULOS DA MORTE (The Spikes Gang). 1974. United Artists (96 minutos). Produção: Walter Mirisch e Richard Fleischer para a Mirisch Corporation/Duo Productions/Sanford Productions. Produtor associado: Irving Ravetch. Roteiro: Irving Ravetch e Harriet Frank Jr., baseado na novela The Bank Robber, de Giles Tippette. Fotografia: Brian West (Fotofilm S.A./DeLuxe). Música: Fred Karlin. Cenografia: Julio Molina (a.d.), Antonio Mateos (s.d.). Montagem: Ralph E. Winters, Frank J. Urioste. Elenco: Lee Marvin (Harry Spikes), Gary Grimes (Will), Ron Howard (Les), Charles Martin Smith (Tod), Arthur Hunnicutt (Kid White), Noah Beery (Basset), Marc Smith (Abel Young), Don Fellows (Cowboy), Elliott Sullivan (Billy), Ralph Brown (líder do grupo armado), Bill Curran (Gillis), Ricardo Palacios (doutor), David Thomson (xerife de Carrizo Springs), Bert Conway (caixa do banco), Adolfo Thous (penhorista), Allen E. Russell (Morton), Frances O’Flynn (Sra. Young).
A morte do chefão acompanha dois processos de decomposição-recomposição de uma organização que regula a atividade dos membros da máfia italiana em uma cidade dos Estados Unidos. Inicialmente uma pequena comissão nacional se reúne no território neutro de Las Vegas para definir como serão redistribuídos os homens e os negócios de Don Paolo Regalbuto, morto por um ataque cardíaco fulminante. Frank Regalbuto aceita a proposta de Don Angelo DiMorra: herdar, futuramente, quando possuir a experiência necessária, toda a organização, renunciando, em contrapartida, a assumir imediatamente o lugar do seu pai. Com o consentimento dos presentes, chega-se então ao acordo de que os empreendimentos de Don Paolo passarão a ser controlados em parte por Don Angelo e em parte por Don Aggimio Bernardo, este momentaneamente preso e representado por Luigi Orlando, seu consigliere. Por sua vez, os irmãos Fargo, que aparentemente até então trabalhavam para a família Regalbuto, ganham certa liberdade para administrar seus próprios negócios, comprometendo-se, por outro lado, a atender aos chamados da família de Don Aggimio e da família de Don Angelo. Desta forma a organização, cuja estrutura havia sido abalada, se recompõe. Logo em seguida, porém, o espectador saberá que Luigi Orlando ambiciona todo o poder que tais famílias detêm na cidade. Será encenado, então, o novo processo de decomposição-recomposição dessa organização, desencadeado, desta vez, por uma intriga amorosa urdida sorrateiramente por Luigi e sua mulher, Marie.
O trabalho estrutural em relação a esse processo consiste, em linhas gerais, na seleção de numerosos elementos e, a partir destes, na elaboração de uma ampla visão de conjunto: em vez de se concentrar em uma personagem dentre outras, o olhar se desloca por entre várias delas. Resulta desse deslocamento uma ligação entre o comum e o privado, entre o desenvolvimento das interações e os momentos de privacidade. Cada lado interessado planeja os golpes desferidos sobre o seu inimigo, ou alguma personagem revela seus desejos e desilusões, suas inclinações morais ou imorais, as paixões em meio a um jogo sangrento que desestabiliza o sistema de que faz parte.
Em síntese, pode-se dizer que uma arte da comunicação orienta a princípio a montagem das várias situações abordadas, costurando os diferentes fatores de um mesmo movimento progressivo, os diversos agentes de um mesmo desenvolvimento dramatúrgico. Mas essa arte, a meu ver, ora é bem executada, ora, porém, se desfaz – e, de fato, parece-me que este é o caso mais frequente, ou seja, que prevalece no filme uma distensão, como se alguns de seus elementos não se comunicassem, como se não penetrassem intimamente em seu desenvolvimento.
Em um primeiro momento, para dar um exemplo, portanto, de ligação bem resolvida entre o comum e o privado, analisemos a transição entre a sequência na mansão em Las Vegas – onde são apresentadas quase todas as personagens principais e suas interações – e a entrada de Luigi Orlando na penumbra de um apartamento de hotel – espaço fechado, exíguo e abafado por cortinas pesadas, no qual ele informa Marie a respeito da divisão do poder após a morte de Don Paolo. Personagem um tanto apagada na sequência anterior, Luigi agora ganha relevo na intimidade dessa pequena cena, na qual os amantes agridem-se verbal e fisicamente, a partir da demonstração de insatisfação de Marie com a tomada de apenas metade do poder que Luigi lhe prometera...
Em um segundo momento, interessa perceber que, se de fato uma arte da comunicação precisa orientar as ligações entre os vários blocos de situações que compõem o filme, o mesmo vale para os movimentos interiores de cada cena em particular, como no caso exemplar desta que se passa no quarto de hotel. Vale aqui fazer um pequeno desvio e destacar a consistência do trabalho de Fleischer, notando que esta cena de A morte do chefão lembra uma outra, dirigida por ele mais de vinte anos antes em um dos vários filmes noir de série B que fez para a R.K.O. entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950. Refiro-me à cena de Império do terror, de 1950, que apresenta, também em um quarto de hotel, um par de amantes criminosos, Yvonne e Dave, embora estes, em vez de irromperem em ameaças, tapas e sangue como o fazem Luigi e Marie, ao fim da cena se despedem com a promessa de mais tarde se reencontrarem e satisfazerem o desejo que, dizem, está a deixá-los impacientes. Mas a semelhança que importa notar entre as duas cenas está para além do interesse temático e dramatúrgico que compartilham por amantes criminosos e por quartos de hotel em que o mal se manifesta livremente, em que a ganância e os planos traiçoeiros não são motivos de vergonha, mas, ao contrário, manifestam-se como as motivações mais fortes dessas personagens propensas a destruições. O que importa notar é que nelas, interiormente, o que está sendo chamado aqui de arte da comunicação manifesta um vigor da encenação vinculado a uma simplicidade do modo de olhar e como que quase tocar estes corpos devotados à busca pelo máximo possível de poder.
Talvez esse vigor e essa simplicidade correspondam ao método de filmagem que, em 1990, Richard Fleischer descreveu na entrevista para o programa Cinéma cinémas[1]: ensaiar a cena do início ao fim sem se preocupar com câmera, decupagem e montagem, como se os atores estivessem sobre o palco e diante da plateia, ensaiá-la até que eles estejam completamente à vontade com ela e creiam, assim como ele, haver encontrado a única maneira de interpretá-la. Somente então Fleischer passaria a escolher os ângulos e os cortes dos planos com os quais abordá-la.
As palavras do cineasta ressoam nas duas cenas em vista, nas quais a profunda concordância entre os movimentos dos atores e os da máquina cinematográfica chama a atenção. Percebe-se, em ambas, que, ao dirigir o olhar aos encontros dessas personagens, a câmera participa com elas de um mesmo compasso, inventa e cria os seus próprios gestos a partir das ações das personagens, e das relações criadas no espaço cênico. Tudo nessas duas cenas parece mergulhado em uma paciente arte que comunica a interpretação e a observação da interpretação.
No caso da cena de A morte do chefão, cada plano começa e termina impulsionado por determinados movimentos das personagens, mantendo-se viva a tensão dramática que o constitui e o atravessa. Além disso, também para conservar essa tensão inclusive nos momentos em que se estabelece a dinâmica de campo e contracampo, tem-se a impressão de que, originalmente, quando foram rodados, cada um dos dois planos se estendera durante todo o respectivo trecho da cena, de modo que se preservaram, apesar dos cortes, tanto as correspondências que os dois atores estabeleceram para a composição de um movimento dramático contínuo quanto o ânimo de cada um deles no fluxo de uma mesma tomada.
Em um terceiro momento, para além desta cena em particular, alguns outros procedimentos que atuam no sentido de comunicar elementos dispersos devem ser sublinhados. E novamente vale notar a semelhança com Império do terror. Neste se destacam, por exemplo, a montagem da ação policial ordenada à distância através de sistemas de rádio enquadrados em close; a atenção dada a essas várias portas que aparecem antes de serem abertas e que em seguida são atravessadas pelas personagens; a repetição da mesma angulação ao final de um plano, no qual vemos os atores saindo, e no início do seguinte, no qual eles entram; e também a longa duração de um plano em que, entre outras mutações, vemos a notícia da morte do seu parceiro gerar um quase imperceptível abalo no rosto do robusto e pesado tenente Jim Cordell (interpretado por Charles McGraw).
No caso de A morte do chefão, atuando no sentido de comunicar seus diferentes ambientes e diferentes núcleos ativos, integram-se automóveis, aeroportos e aviões, telefonemas, recados anônimos, mensageiros, agentes infiltrados... até o ponto de Tony Fargo comandar um último golpe contra a aliança em torno de Don Angelo. Vê-se, então, o prédio da DiMorra Importing ser posto em chamas, tombando sob o efeito de explosivos instalados em seus fundamentos e acionados por detonadores a partir do outro lado da rua, alcançado via túneis subterrâneos. Durante esse ataque, Mitch, irmão de Don Angelo, é assassinado, e a violência que o levara à morte, comunicada em um telefonema, reverbera logo em seguida no irmão na forma de um ataque cardíaco que o neutraliza e o condena a vegetar sobre uma cadeira de rodas – acontecimento que, aliás, ecoa a morte de Don Paolo ao início do filme.
Ainda no início, na cena em que a notícia da morte de Don Paolo chega ao seu filho Frank, as primeiras palavras vindas do empregado-mensageiro vêm da profundidade de campo sonora e de fora do campo visual, enquanto vemos Frank e os irmãos Fargo chegando de carro na garagem dos dois últimos. A notícia, tendo penetrado na cena dessa maneira, articula em seguida o deslocamento do filme para a reunião da comissão mafiosa em Las Vegas por ocasião dessa morte. No mesmo sentido, dois momentos em que a profundidade de campo visual é utilizada como meio de penetração daquilo que a extrapola podem ser destacados, como meio, portanto, de comunicação e articulação de diferentes elementos que compõem o filme. Os dois momentos envolvem Ruby Dunne, a personagem manipulada, sem o saber, por Luigi Orlando, como motivo inicial da oposição entre Frank e Don Angelo. Seja quando Ruby está com aquele, seja quando está com este, um aliado mafioso chega pela profundidade de campo visual com uma demanda, ora para um, ora para outro, igualmente retirando-os de cena, de modo que ela é deixada sozinha ambas as vezes devido a algum problema a ser resolvido por Frank ou por Don Angelo.
Ainda que se considerem todos os meios dos quais Fleischer lança mão para estabelecer uma transição fluida entre os vários elementos articulados no encadeamento do filme, por outro lado, como adiantei ao início, a impressão mais geral que guardo de A morte do chefão é a de uma distensão. Certos elementos que o compõem me parecem talvez dispensáveis e de fato permanecem dispersos. Por exemplo, o filme inicia com uma traição na operação do tráfico de drogas comandada por Frank, vindo depois a direcionar o nosso foco, paralelamente à trama principal, para as consequências desse ato, procedendo a recorrentes desvios que, no entanto, não reverberam efetivamente no movimento dramatúrgico central. Outro exemplo é a pequena cena na casa de Vince Fargo, na qual é apresentada, muito rapidamente, uma possível pretendente para o seu irmão Tony. Este, porém, não a deseja e a deixa sozinha à mesa, e logo em seguida é chamado por Frank para assassinar o traidor antes mencionado. A cena termina, assim, sem arremate, e o que nela ocorreu fica, ao longo do filme, sem desdobramento relevante. Nesse sentido a visão de conjunto proposta pelo filme por vezes se desfaz em decorrência da seleção de um contingente de elementos que não são totalmente absorvidos e articulados. Além desses elementos que permanecem avulsos, colabora também para a impressão de distensão o fato de que inclusive momentos fundamentais, a princípio, para o avanço da narrativa parecem ter sido pouco desenvolvidos e não chegam a integrar o movimento geral. Essa falta de desenvolvimento, seja na elaboração do roteiro, da encenação ou da cinematografia, manifesta-se com a recorrente sensação de arritmia e variação descabida de tom nas interações das personagens. Na já mencionada cena do jantar na casa de Vince a elevação da voz de Tony, por um instante, destoa exageradamente do volume mantido até ali, ou na cena após a morte de Vince, quando Tony e Frank se confrontam e o segundo tende a uma afetação que, aliás, não é rara a este personagem de mafioso playboy, caricaturalmente infantil e incapaz de lidar com qualquer contrariedade que se lhe apresente ao longo do filme. Não tenho essas impressões ao ver Império do terror, ou Barrabás, ou O estrangulador de Rillington Place, ou A última fuga, ou Os novos centuriões, ou Mandingo – O fruto da vingança. Nesses filmes parece-me que tudo o que se pode perceber em cena importa, participa, comunica-se intimamente.
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Concentrando seu foco narrativo nas peripécias da desastrosa aventura de três garotos em busca de liberdade, a qual vislumbram na figura de um criminoso encarnado por Lee Marvin, Os três discípulos da morte, dirigido por Fleischer em seguida a A morte do chefão, escapa já de partida, através dessa concentração, de uma das dificuldades que a lógica estrutural do filme anterior impunha ao cineasta: a dificuldade de orquestração rítmica e de afinação dos numerosos elementos descritos através da análise de um processo.
O primeiro plano e a primeira sequência de Os três discípulos da morte parecem já indicar a mudança, em relação ao filme anterior, da lógica através da qual se desenvolverá, concentrando o olhar em vez de dispersá-lo. A morte do chefão inicia-se com uma cena que se integra à trama secundária de uma traição no interior da máfia, trama esta que, por sua vez, contribui na descrição da organização criminosa em que participam as personagens principais. Ao contrário, Os três discípulos da morte abre com um plano amplo do campo do sul dos Estados Unidos, sucedido por um zoom in que vai gradativamente distinguindo, no vasto espaço, os três garotos cuja aventura é o constante centro de interesse do filme. Tal aventura será impulsionada pelo desconhecido homem ferido que eles encontram caído entre os arbustos, pelos quais os garotos aparecem se embrenhando, movimento este – de entranhamento, descoberta e estabelecimento de contato – muito rapidamente montado com poucos planos. Enquanto A morte do chefão se estrutura como uma complexa trama de numerosas personagens – cujas aparições e ações, porém, nem sempre parecem entrar em relação, de modo que o filme recorrentemente se dispersa –, Os três discípulos da morte coloca menos personagens em jogo desde a primeira sequência, delimitando aquelas nas quais se concentrará, abordando-as mais detidamente – tanto cada uma particularmente quanto suas interações e a íntima relação que mantêm com o espaço.
O filme, por um lado, versa sobre o desejo de superar os limites familiares, os limites da lei e da subordinação, e, por outro, sobre o desejo de, diante da dureza do mundo para além de tais limites, retornar à suposta segurança destes – retorno que, porém, torna-se impossível.
Há um traço no desenvolvimento das personagens de alguns filmes de Fleischer, traço que é relevante aqui e que se observa também em A morte do chefão: elas tomam decisões irrefletidas que as colocam em um caminho contrário ao que desejavam, e recorrentemente passam a adotar uma postura contrária àquela que defendiam com veemência. Assim ocorre com Frank, com Don Angelo, com Vince, com Tony, personagens sempre colocadas diante de um horizonte de possibilidades novas para elas, de modo que se movem não apenas se opondo aos seus adversários, mas opondo-se a si mesmas, perdendo-se de si mesmas com facilidade, ao ponto de Tony, por exemplo, que inicialmente desejava abandonar a máfia, ser finalmente reconhecido como Don Antonio. Um dos motivos dramatúrgicos de Os três discípulos da morte é também este traço que as personagens descrevem, essa errância, essa precipitação, esse ímpeto para o desconhecido que faz de seus corpos um ponto de comunicação entre as personagens e seus desejos conflitantes. Tal traço aparece mais incisivamente com Will – o desejo de fugir de casa e o desejo de estar em casa, o desejo de ser criminoso e o desejo de obedecer à tirania do pai –, mas é possível notá-lo também já ao final da primeira sequência, quando Tod, dos três garotos o mais receoso de se envolver com o homem desconhecido, ajuda a carregar este logo após dizer que não quer tocá-lo. Mais relevante no curso dramatúrgico do que esta breve anedota é o momento em que Les e Tod, após se despedirem de Will, decidem seguir o amigo, surpreendendo-lhe ao aparecerem logo em seguida em outro ponto da estrada. Outras decisões importantes serão tomadas de modo precipitado pelos garotos, como o primeiro assalto a banco, ao fim do qual Tod matará acidentalmente um senador que tenta detê-lo, o que os transformará em procurados pela lei.
Nessa sequência do primeiro assalto, aliás, o filme lança mão de um artifício que colabora na figuração do jogo dos sentimentos contrários, ao qual principalmente a personagem de Will aparece sujeita. Apontando o revólver ao velho funcionário do banco, que se encontra do outro lado do balcão e protegido por grades, o rosto de Will cresce na tela através de um zoom in após seus amigos se distanciarem para trás e saírem de quadro. Em fusão com o plano de seu rosto entra o plano de seu pai em contre-plongée, batendo nele com a cinta após descobrir que ele ajudara Spikes, um fugitivo, um ladrão, um assassino. Justapõem-se assim em Will, simultaneamente, a necessidade do assalto, para satisfazer a fome que abate a ele e a seus amigos, e a figura de seu pai, como autoridade punitiva que o assombra, infunde temor e o alicia. Em outros momentos o filme procederá da mesma maneira em relação a Will, zoom in em direção ao seu rosto, destacando-o de seu entorno, fundindo-se à imagem de seu pai – uma vez afastando o filho pecador, outra recebendo-o de volta de braços abertos para um abraço alegre, afetuoso.
Embora o filme nos convide a penetrar na intimidade de Will apenas – através dessa sobreposição de planos em que se misturam presente e memória ou presente e desejo, presente e expectativa –, quero salientar a recorrente utilização do zoom, desde o seu primeiro plano, para o qual já havia apontado. O zoom não ocorre em Os três discípulos da morte com a força subitamente incisiva ou distanciadora com que é utilizado, por exemplo, em Era uma vez no Oeste (C’era una volta il West/Once Upon a Time in the West, Sergio Leone, 1968), mas como um simples instrumento narrativo através do qual dirige-se o olhar do espectador, ora destacando e fazendo crescer na tela o rosto de uma personagem, ora abrindo o campo visual para colocá-la em perspectiva no espaço – movimentos do olhar, estes, sempre desempenhados sobriamente, valorizando-se a duração da gradual transformação da imagem. Essa modulação do espaço, este vai-e-vem com que o filme aborda a solidão das personagens ou as mostra igualmente lançadas na imensidão do mundo em que se aventuram, funde-se, aliás, ao vai-e-vem das próprias personagens – tanto o vai-e-vem de suas convicções, de seus desejos e suas decisões ativas quanto seus próprios deslocamentos na fronteira entre a terra natal e a terra estrangeira, o sul dos Estados Unidos e o México, recorrentemente atravessando o Rio Bravo, ao lado do qual um dos garotos transborda a última fronteira e penetra no mundo dos mortos.
Nota:
[1] https://www.youtube.com/watch?v=C6WDcXPp96w.
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