MANEQUINS SEM ROSTO – Richard Fleischer e o filme criminal
por Michael Henry Wilson
É o ordinário que está ao alcance de Fleischer. A violência ordinária ou a coragem ordinária. Don Angelo mais do que Don Corleone. Barrabás mais do que Cristo. Nem os seres excepcionais (Che Guevara, Sarah Bernhardt) nem os super-heróis (Conan, Red Sonja). Ele precisa ancorar suas ficções em uma realidade familiar – documental, se possível. Seu naturalismo inato não é nunca tão eficaz como quando ele aborda personagens comuns no contexto de seu meio específico. Temos o exemplo desde o seu primeiro filme, Filhos do divórcio, onde a mise en scène repousa sobre uma decupagem analítica, um exame minucioso dos comportamentos e uma maestria da composição espacial que sabe fazer surgir, aqui e ali, a inquietante estranheza do cotidiano.
A observação clínica é o seu método de predileção. Ele nos relata os fatos e os deixa falar por si mesmos. A progressão metódica dos seus relatórios nos lembra o que ele deve à psiquiatria, que ele havia escolhido como profissão inicial. Ele prefere insinuar a sublinhar. Sugerir a comentar. Simular a neutralidade para que o espectador permaneça livre para elaborar a sua opinião. Dando-lhe a oportunidade de mergulhar em um relativismo desconfortável. Pois é a nós que ele incumbe, em última análise, de interpretar o objeto da investigação, que se trate de um desastre nacional, de crimes em série ou de vias misteriosas da graça (Barrabás). Essa retenção, essa recusa do espetacular, Fleischer se esforçou em aplicar-lhes a todos os gêneros, do western ao fantástico, do americana ao filme de guerra.
Tal abordagem pode ser singularmente subversiva. Veja Tora! Tora! Tora! onde a contribuição do cineasta contrasta em todos os pontos com aquela dos seus correalizadores japoneses. Enquanto seus colegas fazem de tudo para magnificar os seus pilotos, envoltos em um patriotismo messiânico, Fleischer se mantém deliberadamente com os pés no chão, dissecando com uma implacável meticulosidade a catástrofe de Pearl Harbor. À epopeia marcial dos japoneses, ele opõe o catálogo de erros cometidos a todos os níveis do comando americano, Casa Branca inclusa: imprevisibilidade, inércia, incompetência, imbecilidade... O que nos diz essa acusação cautelosa, mas devastadora? Que seria necessário dirigentes excepcionais para dominar a situação. Ora, esses se encontravam do outro lado, e o filme os dota de uma lucidez, de uma consciência histórica que os americanos não têm. Naturalmente, o casting apela aos veteranos da Hollywood dos anos 1940 para encarnar fantoches ultrapassados pelos eventos. Cavalheiros talvez, mas muito frouxos, muito cansados para deter samurais!
A margem estreita
Esse prosaísmo nunca é tão estimulante como no filme de crime, que implica sempre um jogo sobre as aparências enganosas. Nosso homem começou sua carreira com os filmes B, como Crime da estrada, no qual o “herói” (Lawrence Tierney) é um policial tão aferrado que acaba reprovado pela polícia oficial e deve enfrentar sozinho o bandido. O cerco não possui a força de Moeda falsa (T-Men, Anthony Mann, 1947), mas coloca uma questão que vai assombrar Fleischer por muito tempo: como distinguir o criminoso do cidadão comum, e mesmo do policial? O filme embaralha de antemão as cartas através de um casting paradoxal: o papel do bandido inveterado é interpretado pelo jovial Lloyd Bridges; o do agente do tesouro a John Hoyt, especialista em papéis de gângster. Como o policial age como “infiltrado”, ele deve se comportar como o seu adversário. A demarcação se desfaz ainda mais rapidamente, pois uma avalanche de tiros não cessa de inverter as máscaras. O submundo e a polícia já são o reflexo um do outro.
O estilo pseudo-documental, em voga depois da guerra, favorece essa ambiguidade. Quanto mais forte é o efeito do real, mais complexa é a decriptação. É o que evidenciam Crime da estrada e Alma em sombras, que só ganham vida nos exteriores naturais, a saber, respectivamente, um matadouro de Pasadena e o labirinto de Chinatown. Um degrau acima, Império do terror vê o “cérebro” da gangue (William Talman) se esforçar para abolir qualquer “demarcação”. Ele construiu sua existência sob o anonimato mais restrito: ele quer ser “sem rosto”; se move sem parar; não deixa nenhum traço; não tem antecedentes criminais; extirpa até a marca de suas camisas. Ele será traído por um número de telefone rabiscado em uma caixa de fósforos. E por uma stripper, parceira inapropriada pois muito... vistosa. O final antecipa o de O grande golpe (The Killing, Stanley Kubrick, 1956).
O talento de Fleischer atinge a maturidade com O estrangulador misterioso, uma joia da série B. (Anthony Mann, coautor da história original, é um dos motivos para isso.) Um psicopata, um dos primeiros assassinos seriais da tela, aterroriza uma cidade anônima. Nenhuma de suas vítimas havia sobrevivido, não existiam descrições. Único traço distintivo: o fundamentalismo puritano que revelam suas notas, assinadas “o Juiz”. O inspetor Grant (William Lundigan) é tão obcecado pelo desconhecido que ele confecciona um manequim, “Deadpan” (“sem expressão”), destinado a ser completado à medida que a investigação avança. A descrição quase fetichista da tecnologia policial, típica do filme noir nos seus anos macartistas, assume aqui uma dimensão totalmente simbólica. O subterfúgio é um espelho. Ou uma placa sensível. Sobre “Deadpan”, pode-se projetar qualquer face, qualquer monstro. Quando Grant exclama: “Eu daria um ano de salário para ver o seu rosto”, ele fixa a câmera em um close perturbador. Ele nos olha!
Outro tema muito moderno: a empatia obsessiva do caçador pela sua presa. Ao se identificar com ele, o detetive pressente quando o assassino vai atacar. Ele chega até mesmo a se dirigir a “Deadpan”, que lhe vira as costas na penumbra crepuscular. Um de seus colegas diz: “Você se parece cada vez mais com o Juiz!” Ora, assim que os dois policiais saem da sala, a câmera permanece no “manequim”, que começa então a mexer e a se levantar. O “Juiz” foi introduzido na delegacia! Por quê? Como? Esse incidente surreal permanecerá inexplicado. Ele revela um humor “apático” (outro sentido de “deadpan”)? Ou é necessário invocar a vibração de um universo paralelo? De um outro espaço-tempo? (Não veremos, dez anos mais tarde, o gladiador Barrabás exercitar-se contra um manequim articulado?) Quando o psicopata é enfim desmascarado, ele nos aparece como um maltrapilho qualquer. Seu rosto amassado é apenas um pouco mais expressivo que o de “Deadpan”.
O estrangulador misterioso denuncia também a maleficência da imprensa sensacionalista. Com uma virulência surpreendente. Da jornalista (Dorothy Patrick) nós inicialmente vemos apenas suas pernas andando pela calçada. O enquadramento sugere uma prostituta. O inspetor a trata como tal, mesmo após sua identidade já ter sido estabelecida. Não se deve confiar nas aparências, nos diz Fleischer. Mas é para melhor argumentar que, ao explorar o voyeurismo de seus leitores, a heroína prostitui sua pluma ao mínimo. Ele parece definir, ao contrário, sua própria deontologia, senão sua própria estética: a sobriedade do processo verbal será sempre preferível às complacências do pulp fiction.
Isso é confirmado por Rumo ao Inferno, onde ele retoma o tema dos duplos como o leitmotiv visual dos reflexos. Desta vez, “Deadpan” é uma mulher, a viúva de um gângster que deve testemunhar contra a sua gangue. O policial que deveria escoltá-la (Charles McGraw) e os assassinos encarregados de liquidá-la utilizam os mesmos métodos. A ausência de demarcação, de “margem”, entre os dois campos suscita uma intensa paranoia e equívocos trágicos. Todos presumem que uma mulher vulgar (Marie Windsor) é a mulher a abater. Ora, a realidade refuta esse clichê: a vadia é uma agente “infiltrada” que desempenha muito bem o seu papel de isca e morre sacrificada pelos seus colegas. Era o “manequim” ruim. A viúva é, na verdade, uma distinta loira que parecia acima de qualquer suspeita (Jacqueline White). Quanto ao combate do policial, ele está propriamente desesperado face a uma organização tentacular, dotada de meios ilimitados. Enquanto o mal é invencível, a lei se torna um sacerdócio. Os “novos centuriões” não estão longe.
Em Fleischer, os criminosos correm pelas ruas. Literalmente, como em Sábado violento, onde o trio de gângsteres se mistura a uma comunidade provincial antes de se dirigir ao banco. Seus preparativos permitem uma análise sociológica da aldeia. Observamos essas “pessoas boas” que têm algo a censurar umas às outras. Sob os exteriores plácidos aflora um entrelaçamento de frustrações, de neuroses, de segredos vergonhosos, que o formato CinemaScope põe adequadamente às claras. Os “outsiders” agem como catalisadores; eles nos dão um espelho onde nós nos arriscamos a nos reconhecermos. A “margem” é tão estreita que os violentos são neutralizados pelos dois cidadãos que manifestam publicamente o pacifismo: o engenheiro (Victor Mature), que foi um atirador durante a guerra, e o fazendeiro Amish (Ernest Borgnine) que acerta o chefe da gangue com um golpe de forcado nas costas. (Em A morte do chefão o mafioso menos disposto à violência se revelará, à prova de fogo, o mais feroz.)
O escândalo do século e Estranha compulsão, que se inspiram em casos célebres, são mais convencionais porque o psicopata é imediatamente designado pelas suas explosões histéricas ou seu riso demoníaco. Ao invés de se misturar com a massa, ele reivindica a sua diferença, até mesmo sua super-humanidade. O escândalo do século, um melodrama barroco que teria sido mais conveniente a Douglas Sirk, permanece aquém de seu tema, uma vez que as transgressões do milionário Harry Thaw (Farley Granger) foram edulcoradas. Em Estranha compulsão dois moços de família, modelados a partir de Leopold e Loeb (Dean Stockwell, Bradford Dillman), estrangulam um colega, atribuindo-se um direito de vida ou de morte sobre os indivíduos “comuns”. Suas justificativas intelectuais camuflam a desordem mental – paranoia em um, esquizofrenia no outro. O traço é um tanto acentuado demais, mas a súplica contra a pena de morte tem a audácia de se basear em culpados que não saberiam suscitar a simpatia. A execução legal inspira em Fleischer o mesmo desgosto que a morte premeditada: “A crueldade só gera crueldade”.
Deadpan está entre nós
Com Barrabás, ele aborda a criminalidade sob um plano totalmente novo: espiritual, até mesmo místico. A partir de um roteiro magnífico – a adaptação de Christopher Fry da novela de Pär Lagerkvist – ele nos oferece, sob as aparências de um grande espetáculo, uma meditação poética e filosófica de um nível altíssimo. O escândalo, desta vez, toca nos propósitos incompreensíveis da Providência: como pode o lobo ser poupado enquanto o cordeiro é crucificado? Como o pecador mais distante de Cristo é também aquele que lhe é mais próximo? O rei dos bandidos é o primeiro abalado por ser preferido ao rei dos judeus, o profeta que prega o amor ao próximo. Barrabás (Anthony Quinn) representa o homem sem fé, condenado a tatear na escuridão das masmorras, das catacumbas, das minas de sulfeto, sem compreender o destino que lhe foi reservado. Cego em Jerusalém, onde o seu olhar não consegue suportar a luz que emana de Cristo, como nas minas da Sicília, onde ele usa uma bandana para proteger sua vista, ele acabará abrindo os olhos em Roma, onde a sua odisseia se conclui na cruz, entre milhares de cristãos torturados.
Fleischer retorna ao horror contemporâneo com O homem que odiava as mulheres, um estudo mais profundo da patologia criminal bem servida pelo seu estilo hiper-realista. É um episódio autêntico, que o realizador pôde reconstituir nos mínimos detalhes e onde ele pôde alcançar seu objetivo sem ser barrado pela censura como em outras ocasiões. Ele começa por nos mergulhar durante uma hora pelas periferias de Boston. Vemos passar, antes do estrangulador ser identificado, uma ala de perversos que poderiam ter saído do relatório Kinsey, de tanto que o olhar é clínico. Dito de outra forma: Albert DeSalvo (Tony Curtis) não é um caso único. E quando ele é introduzido na casa dele, em família, ele é mais banal que os ditos suspeitos. Não é nem um louco furioso, nem um emulador de Sade, nem um Otelo em menor escala, mas um encanador que passa despercebido e se aproveita da miséria sexual que parece afligir a citadela do puritanismo.
O uso sistemático do split screen impõe a noção de fragmentação, que se aplica, psicologicamente, à análise de um caso de dupla personalidade (split personality) na segunda parte. “Deadpan” se duplicou! Quando enfim descobrimos o predador tão procurado, ele permanece... diante da sua televisão. Assistindo ao funeral do presidente Kennedy. Deprimido, ele sai em busca de uma nova vítima. Crime que lhe valerá, é claro, as honras do jornal televisivo. Contraponto da celebridade e da infâmia, da neurose individual e do traumatismo coletivo! Os flashbacks se articulam assim sobre os eventos midiáticos: morte de JFK, desfile em honra de John Glenn. E o papel do detetive é atribuído desta vez a um jurista, um intelectual (Henry Fonda), arrancado da sua torre de marfim quando ele deve se imergir no universo do esquizofrênico para sondar seu inconsciente.
Se DeSalvo termina por perder sua visão e se dissolve na brancura da incomunicabilidade, o Christie (Richard Attenborough) de O estrangulador de Rillington Place sobrevive em um purgatório esvaecido, descolorido, que parece não ter mudado desde a Blitz. Mais uma vez o assunto ultrapassa o entendimento, e a realização deve implantá-lo solidamente no seu meio para lhe tornar crível. O horror emana da observação entomológica de uma pequena burguesia londrina acometida por pulsões imensuráveis, e onde o próprio crime é devidamente ritualizado. As piores atrocidades não poderiam ser cometidas sem que se tenha primeiramente servido uma xícara de chá. O monstruoso e o familiar andam de mãos dadas. A banalidade do mal nunca tinha sido tão insidiosa.
De Crime da estrada, onde distúrbios e ilusões óticas desempenham um papel notável, a Barrabás, cuja dramaturgia repousa sobre a metáfora da cegueira (o herói não viu nada em Jerusalém!), a cegueira sempre fascinou Fleischer. Seja afetando indivíduos ou instituições, ela sempre faz a cama dos perversos. Aqui, ela é universal. Ninguém, nem mesmo sua esposa, reconhece em Christie o “manequim”. Ele é o único a fazê-lo quando ele apanha o reflexo do seu próprio rosto em um vidro. Fleischer retoma aqui um jogo de cena de O homem que odiava as mulheres; mas se DeSalvo, chocado, permanecia petrificado diante do seu duplo, Christie, exaltado, se prontifica a passar ao ato. A jovem Beryl (Judy Geeson) compreende muito tarde. No momento em que seu “aborteiro” se inclina sobre ela em um contre-plongée aterrorizante.
Como DeSalvo, Christie é um hábil manipulador. Ele não tem problemas em enganar Evans, o marido (John Hurt), um caminhoneiro iletrado. Após haver estrangulado a mulher e o filho do infeliz, ele consegue fazê-lo se condenar pela morte dos dois. Os magistrados não cessam até executarem o inocente. A negação da justiça se revela tão repugnante quanto o crime. A montagem acentua o caráter escandaloso ao abreviar a sequência do enforcamento com uma brevidade inesperada. Fleischer chega a cortar do patíbulo que se abre sob os pés de Evans para o gemido de Christie, queixando-se de sua ciática. E ele ousa, em seguida, nos negar toda catarse. O filme termina com a prisão quase acidental de Christie: um anticlímax que nos frustra da punição. (Como já ocorria em O homem que odiava as mulheres, onde “o irresponsável” DeSalvo acabava internado sem ter sido julgado.)
Em Os novos centuriões, a sociedade inteira parece disfuncional. Ela nos é apresentada do ponto de vista dos patrulheiros que vivem o crime no dia a dia: disputas familiares, pequenas trapaças, delinquência juvenil etc. A profissão inclui tarefas como a escavação de latas de lixo, a caça aos homossexuais, a prisão ritual de prostitutas. A violência possui tantas faces que apenas um manequim não será mais suficiente. Na selva urbana, as normas se tornaram inoperantes e as demarcações ilusórias. “Deadpan” está por todos os lados. Seu colega pode ser mais perigoso que um gângster; uma prostituta melhor companhia que sua esposa. E aqueles a que as leis que se obstinam a criminalizar – prostituídos, drogados, imigrantes clandestinos – são frequentemente apenas vítimas que merecem simpatia ou compaixão.
Os centuriões de Los Angeles formam o último limite. A última barragem contra a maré sempre renovada do crime. Se eles fazem as mesmas constatações que o inspetor Callahan de Perseguidor implacável (Dirty Harry, Don Siegel, 1971), eles tiram a conclusão inversa: “Você não deve se tornar o anjo da vingança.” Eles resistem à tentação de fazer justiça com as próprias mãos. Sem poder mudar as leis, eles devem se contentar com pequenos gestos. Como o de salvar um bebê de uma viciada ou de corrigir o proprietário que explora os imigrantes clandestinos. Por vezes, eles sucumbem ao desespero. O veterano (George C. Scott) atira em sua boca, enquanto o seu parceiro (Stacy Keach) é abatido estupidamente, não por um delinquente, mas por um velhinho surpreso que batia na sua esposa. Um maltrapilho tão insignificante quanto o “Juiz” de O estrangulador misterioso. Belo paradoxo: a sucessão será assegurada por um jovem policial hispânico, que outrora fazia parte de uma gangue. É ele que profere a oração fúnebre – em espanhol! Essa crônica elegíaca atesta mais uma vez que o ordinário, em Fleischer, não deve nada ao extraordinário.
(Positif n.º 544, junho de 2006, pp. 92-95. Revisado e republicado em À la porte du paradis – Cent ans de cinéma américain. Paris: Armand Colin, 2014. Traduzido por Linara Siqueira e Bruno Andrade) |
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