RICHARD FLEISCHER: UM GRANDE HOLLYWOODIANO
Não conte com Richard Fleischer – nascido no Brooklyn em 1916, filho de Max Fleischer, um dos mestres da animação em Hollywood, criador de Betty Boop e de Popeye, rival de Walt Disney etc. – para lamentar de maneira romântica, hipócrita ou imatura os obstáculos intransponíveis que se deve encarar quando se tem um nome célebre ou se nasceu em um harém. Fleischer inicia com estas palavras o livro que escreveu sobre o seu pai (Out of the Inkwell: Max Fleischer and the Animation Revolution, 2005), livro que nos ensina muito sobre a sua família e suas origens, e que completa as suas memórias (Just Tell Me When to Cry, publicado em 1993): “Diz-se que é difícil ser o filho de um homem célebre, que você vive na sua sombra, que as comparações com ele são insuportáveis. Pois bem, eu fui o filho de um homem célebre e não achei isso de forma alguma difícil. Na verdade, foi formidável. (...) Longe de viver dolorosamente na sua sombra, eu aproveitei imensamente a chance de poder me aquecer na luz de sua glória. Quando eu era garoto, bastava dizer para o gerente do cinema que eu era o filho de Max Fleischer para ganhar um ingresso de graça...” E Fleischer continua no mesmo tom jocoso, grato e pacífico a evocação da carreira de seu pai – e, indiretamente, da sua também. Poder-se-ia dizer que o fato de ter nascido em um harém lhe acentuou qualidades sem dúvida inatas: a serenidade ao lidar com o seu próprio ego, a discrição, a modéstia, uma espécie de equilíbrio íntimo na maneira de trabalhar, abordar e aprofundar um tema, quer se trate do mais anódino ou do mais atroz.
Antes mesmo de abordar aquilo que na sua obra se enquadra no conceito de autoria, no sentido estético-filosófico que esse termo assumiu no interior da expressão “política dos autores”, convém defini-lo como o autor de uma série de proezas, o superdotado da mise en scène que, em cada um dos gêneros em que se distinguiu (e Deus sabe que foram muitos!), procurou, consciente ou inconscientemente, mas sempre com a mesma humildade paradoxal, inscrever o filme mais sofisticado, mais desconcertante, mais inventivo, mais definitivo. A tal ponto que muitos espectadores que mal conhecem o seu nome mantêm em suas memórias cinematográficas mais profundas um lugar para uma ou outra de suas obras-primas. Citemos na desordem algumas de suas façanhas: devemos a ele o melhor filme, entre outros, de aventura histórica (Vikings, os conquistadores, documental e lírico, e no seu domínio nunca superado); a melhor adaptação de Jules Verne (20.000 léguas submarinas, obra que é também um dos melhores filmes infantis na dupla acepção do gênero, a saber: filme que deve agradar às crianças e aos adultos); acrescentemos um dos melhores filmes de guerra já feitos (Entre o Céu e o Inferno), com suas personagens conturbadas e ambíguas, descritas com uma audácia insólita para a sua época, qualidade que reencontramos em O escândalo do século, evocação fervilhante de um fait divers policial e mundano. Não nos esqueçamos de No mundo de 2020, fábula de ficção científica ecológica, intrigante e eficaz, nem tampouco de Barrabás, talvez o melhor filme bíblico dos anos 1960, filme ao mesmo tempo muito subestimado e muito imitado; em todo caso, aqueles que assistiram-no na sua versão original em 70 mm. jamais o esqueceram.
O virtuosismo de Fleischer atua por toda parte, tanto em profundidade quanto na superfície. Às vezes esse virtuosismo esgota definitivamente certa tendência de um gênero consagrado (a claustrofobia do noir tem sua ilustração limite em Rumo ao Inferno, cujos três quartos da sua duração se passam em um vagão de trem), às vezes abre pistas que servirão para Fleischer e para outros. Em 1949, com O estrangulador misterioso, Fleischer inaugura, no interior do film noir, a narrativa baseada na busca por um assassino psicopata (ou serial killer), fundando um gênero à parte que retomará em O homem que odiava as mulheres e O estrangulador de Rillington Place, obra-prima absoluta na reconstituição documental de um fait divers atroz que questiona a própria noção de humanismo. Além disso, em Viagem fantástica, Fleischer lança o filme de miniaturização que se desenrola no interior do corpo humano, tentativa que Joe Dante concretizará de maneira mais brilhante vinte anos mais tarde em Viagem insólita (Innerspace, 1987).
Por muito tempo acreditei que Fleischer havia trabalhado e aperfeiçoado seu virtuosismo nos seus filmes de ação de pequeno orçamento dos anos 1940, realizados na R.K.O. ou na Eagle-Lion. Na realidade era uma impressão falsa. Esse virtuosismo surge imediatamente e já a partir de Filhos do divórcio (1946), seu primeiro filme, o qual permaneceu invisível durante anos (e que eu vi somente em 1980, ou seja, quase um quarto de século após a descoberta de Fleischer, o brilhante autor de Sábado violento e O escândalo do século). O melhor e mais original de Fleischer já está presente em Filhos do divórcio. (Deve-se sempre examinar com atenção os primeiros filmes dos grandes cineastas: frequentemente são os que dizem mais coisas sobre eles).
Filhos do divórcio não é de forma alguma um filme de ação, mas sim uma espécie de poema sociológico, ao mesmo tempo muito perspicaz e comovente, que mostra as consequências do divórcio dos pais sobre as crianças, que são largadas pouco a pouco, não sem certa hipocrisia, em um abandono afetivo quase total. Filhos do divórcio se antecipa aos filmes posteriores de Fleischer ao revelar nitidamente suas intenções ocultas, a saber: a utilização e a valorização das características do filme de ação (ritmo vivaz e envolvente, acuidade e riqueza narrativas, crueldade insidiosa, violência) são apenas um meio eficaz para penetrar profundamente em uma realidade social e moral que o interessa acima de tudo. E todo progresso técnico que pode servir a essa ambição, como o CinemaScope, será para ele bem-vindo. Como Preminger, Fleischer vê imediatamente como o novo formato pode ser utilizado para enriquecer sua proposta pessoal. Ele permite, por exemplo, em Sábado violento, exteriorizar os diferentes aspectos de um tecido social particular, conectando mais intimamente e mais naturalmente as evoluções das personagens umas em relação às outras no interior do plano e permitindo que inúmeros planos, aparentemente simples de se visualizar, tenham na realidade a mesma densidade, a mesma complexidade que certos planos-sequência ultrassofisticados realizados no antigo formato (1,33/1). Nos melhores filmes de Fleischer a descrição do tecido social em que as personagens evoluem (ou seja, a descoberta de um conjunto de segredos, de hierarquias, de lutas de poder mais ou menos dissimuladas, a revelação das relações que cada um, de uma extremidade à outra da escala social, mantém com o tema onipresente da violência) efetivamente não é apenas um quadro, um pano de fundo, um décor, mas sim o próprio assunto da obra.
Nessa perspectiva, Fleischer se interessa tanto pelo devir dos indivíduos quanto pelo devir das sociedades. Poeticamente sua imaginação dramática às vezes se inclina a um esquema ao mesmo tempo descritivo e explicativo que fascinou gerações de historiadores e de artistas: o esquema, ou o ciclo, que encadeia e une irremediavelmente ascensão e decadência. Em Vikings, os conquistadores esse esquema culmina em um incremento de esplendor e de beleza, pois aqui a decadência (e a morte) do viking confere ao tema uma segunda beleza, uma segunda grandeza que vem se somar à primeira. Ao contrário, em Os novos centuriões, o olhar documental do autor se concentra na decadência da noção de civilização que desemboca na desordem trágica de uma sociedade urbana que pretende viver sem interdições e sem regras (“The donts are dying” é o leitmotiv da narrativa). E o filme aparece como o limite dessa “sociologia dilacerante” de Fleischer, inspiração à qual devemos algumas de suas obras-primas.
Durante quatro décadas, contando com a diversidade de gêneros, de tons e de orçamentos que a “cidade do cinema” lhe dispunha e que faziam a sua força, a obra de Fleischer forneceu um dos exemplos mais brilhantes e mais criativos do milagre hollywoodiano. O que menos surpreende nesse caso não é que Fleischer tenha podido participar desse milagre até meados dos anos 1970, ou seja, até a época em que esse milagre se encerraria definitivamente, obedecendo ele também ao esquema “ascensão e decadência” que Fleischer utilizou tantas vezes em seus filmes.
(“Homenagem a Richard Fleischer”, Cinemateca Francesa, 31 de maio a 23 de julho de 2006. Traduzido por Bruno Andrade)
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