ORGON E TARTUFO
O ESTRANGULADOR DE RILLINGTON PLACE (10 Rillington Place). 1970-1971. Columbia Pictures (111 minutos). Produção: Leslie Linder e Martin Ransohoff para a Filmways e a Genesis Productions. Produtor associado: Basil Appleby. Roteiro: Clive Exton, baseado no livro Ten Rillington Place de Ludovic Kennedy. Fotografia: Denys Coop (Eastmancolor). Música: John Dankworth. Cenografia: Maurice Carter (a.d.), Andrew Campbell (s.d.). Montagem: Ernest Walter. Elenco: Richard Attenborough (John Christie), Judy Geeson (Beryl Evans), John Hurt (Timothy Evans), Pat Heywood (Ethel Christie), Isobel Black (Alice), Robert Hardy (Malcolm Morris), Geoffrey Chater (Christmas Humphreys), André Morell (juiz Lewis), Sam Kydd (negociante de móveis), Gabrielle Daye (Sra. Lynch), Miss Riley (Geraldine, filha de Timothy e Beryl), Phyllis Macmahon (Muriel Eady), Ray Barron (operário Willis), Douglas Blackwell (operário Jones), Jimmy Gardner (Sr. Lynch), Edward Evans (inspetor detetive), Tenniel Evans (sargento detetive), David Jackson (policial), Jack Carr (policial), George Lee (policial), Richard Coleman (policial), Basil Dignam (conselho médico), Norman Henry (conselho médico), Edward Burnham (conselho médico), Edwin Brown (carrasco), Norma Shebbeare (mulher no café), Rudolph Walker (West Indian), Tommy Ansah (West Indian), Reg Lye (mendigo).
A firma distribuidora, a Columbia, não acreditava neste filme. Fez uma única cópia em versão original legendada, que estreou sem publicidade numa sala situada na periferia do Quartier Latin. O público intelectual podia ir ou não ir, à sua escolha. Ele não veio. O filme saiu de cartaz ao fim de quinze dias. As leis do mercado foram respeitadas... pelo menos tanto quanto as leis da democracia nas eleições stalinistas.
Para os que não o foram ver, este filme é uma história criminal como muitas que Fleischer fez. Os mais atentos inclusive farão a comparação com O homem que odiava as mulheres e notarão que o pendor do cineasta para o homicídio por estrangulamento (aqui imparcialmente atribuído ao verdadeiro culpado, ao falso culpado e às vítimas) vai ficando mais forte de ano a ano e acaba se voltando para a obsessão pura e simples. Alguns perguntar-se-ão se Boston e Rillington Place não seriam duas etapas sucessivas de uma mesma viagem ao fim da noite, e de certo modo não estarão longe da verdade.
Mas os que viram o filme não estão perto de se recuperar da sua surpresa[1]. O estrangulador de Rillington Place é um desafio a todas as ideias pré-concebidas, um dos filmes mais radicalmente novos que nos foi dado a ver desde a invenção do cinema. Para vos dar uma ideia da originalidade do cocktail, imaginem Fin de partie levado ao ecrã por Rossellini, com uma pitada de Cervantes e três colheres de sopa de Bouvard et Pécuchet. Imaginem isso tudo e corram a ver o filme, se ainda for possível na França, o que duvido. Se for possível, vão perceber que a minha descrição está muito abaixo da realidade.
O estrangulador de Rillington Place não é um filme sobre a estrangulação. Esquematizando um pouco, encontro nele três centros de interesse principais: a estupidez, a realidade e a fabulação.
A estupidez é o tema mais aparente do filme. Uma estupidez tão piramidal que impõe as referências a Beckett e Flaubert; também é esse o tema básico de toda a literatura moderna, que faz aqui uma entrada em força no cinema, finalmente promovido à dignidade de arte maior (fala-se, fala-se, mas acabou-se por lá chegar). Não quero dizer que o cinema nunca tenha abordado a idiotice; pelo contrário, tem falado dela cada vez mais desde alguns anos atrás, em Armadilha do destino (Cul-de-sac, Roman Polanski, 1966), Os pecados de todos nós (Reflections in a Golden Eye, John Huston, 1967) e bastantes outros filmes. Mas falava por portas travessas, como se um tema destes pudesse ser secundário. O estrangulador de Rillington Place é a primeira epopeia cinematográfica da brutalização, e impõe-se como tal de forma tão evidente que o espectador fica atônito.
John Christie (Richard Attenborough) só encontra a felicidade ao estrangular mulheres; e como tal violência poderia provocar, da parte da vítima, reações suscetíveis de prejudicar um prazer tranquilo, ele imaginou neutralizá-las com um dispositivo que as permite asfixiar antecipadamente. Tal ideia diz muito sobre a personagem: gasear antes de estrangular, é recuar para saltar melhor; o ser subjugado vai se rebelar de qualquer maneira. Então ele tem a ideia de incitar as pobres mulheres a prestar-se voluntariamente à experiência, e para este fim, serve-as com uma história tão espantosa que é preciso ser perfeitamente estúpido para esperar que cairão na armadilha. Soma-se a isso que ele é porteiro, que ele recruta as suas vítimas macabras entre as mulheres solitárias que vêm visitar apartamentos para alugar, e que finalmente ele as enterra no seu imóvel para facilitar ainda mais a investigação da polícia. Considerando o dispositivo no seu todo, perguntamo-nos se a loucura predomina sobre a inépcia ou vice-versa.
Mas só estamos na primeira etapa de um longo caminho da cruz. Sucede que esse perfeito cretino invariavelmente se depara com sujeitos mais imbecis do que ele e, à distância de uma bofetada, goza sem mais desse conforto no assassinato, que seu cérebro obscuro havia arquitetado nos menores detalhes, e que As oito vítimas (Kind Hearts and Coronets, Robert Hamer, 1949) e O terceiro tiro (The Trouble with Harry, Alfred Hitchcock, 1955) só dão uma pálida ideia. Em outros termos, John Christie, apesar da sua estupidez excepcional, encontra invariavelmente pessoas mais estúpidas do que ele; ao ponto de acabarmos por nos perguntar se por acaso ele não seria o mais inteligente dos homens. Na epopeia da estupidez, há um momento crucial que nem Flaubert vislumbrou: aquele em que Bouvard se revela mais tolo do que Pécuchet ou vice-versa. O mais trabalhador oferece-se tantas vezes que o menos aturdido acaba por perceber a sua sorte e a alienação se estabelece: há um carrasco e uma vítima, um explorador e um explorado, um Tartufo e um Orgon. O espectador abstém-se do seu riso e deixa-se invadir por um primeiro arrepio. Neste universo crepuscular, a noite faz sua entrada.
Daí em diante, o axiomático ocupa o seu lugar, e o filme só tem que se desenrolar como uma corrente de teoremas. Não ficamos surpreendidos em demasia que a polícia não compreenda nada desta história incompreensível, nem que o estrangulador seja apanhado por razões que não têm nada que ver com os seus crimes, e que se chamam velhice, impotência, miséria e solidão. Logicamente, esse animal selvagem não podia encontrar outro limite que não fosse o de toda a vida humana.
Mas o que era preciso para John Christie era uma oportunidade de ir até ao fundo de si mesmo e atirar às urtigas a sabedoria das nações, já abalada fortemente pelas premissas do filme. Em suma, era preciso que o mais inteligente dos homens encontrasse o Nicodemos perfeito, o palhaço absoluto, a personagem que raciocinaria como um piano de cauda. Essa ave rara apresenta-se sob os traços de um certo Tim Evans (John Hurt). É aí que o filme se transforma em poesia pura. Tim não sabe ler nem escrever (estamos na Inglaterra no início dos anos 1950); tem uma mulher jovem e tentadora (parece-se com Judy Geeson, o que diz tudo), uma filha de pouca idade e quase mais nada; tendo problemas em encontrar um emprego nessas condições, procura o mais indigente dos apartamentos de Londres para se mudar; dá naturalmente de caras com o estrangulador, e as coisas mais impressionantes deixam imediatamente de nos surpreender. Tim deixa Christie estrangular a sua mulher, não há problema se ele não precisar lhe dar uma mão, depois acusa-se a si mesmo do homicídio e só se desmente quando descobre que sua filha também foi estrangulada. Em suma, não é possível ir mais longe e essa descida aos infernos só se pode comparar à de um certo Barrabás do mesmo Fleischer.
Nesta fase, o filme pode parecer circunscrito a uma certa ortodoxia do humor negro: sempre sedutor, mas um tanto limitado precisamente por aquilo que nos dá para sorrir. Bouvard e Pécuchet não são sérios. É aí que Fleischer nos aguardava com o argumento mais simples do mundo: esta história de vilões, esta mentira, esta estupidez aconteceu realmente! Os créditos tratam de nos avisar, especificando que os diálogos reproduzem à letra os autos do processo sempre que foi possível. Cinema direto? Não, mas pirandelismo, bem entendido. Fleischer é um grande barroco (filho, não nos esqueçamos, de um imigrante vienense) e impõe-nos a realidade da sua história com a direção de atores: John Hurt é sublime no papel do simplório transfigurado pelo martírio, tão mais lamentável por recusar toda a pena (como ator e como personagem); Richard Attenborough, como fantoche deslocado pela enfermidade, encarna à perfeição o papel do carrasco tornado vítima da sua própria abnegação; Judy Geeson, por fim, imita as narcejas ao se camuflar. Como a receita é tão inédita, não há outra solução senão acreditar. Eis-nos imersos na noite à qual Fleischer queria nos conduzir.
Mas como se a intrusão da realidade não bastasse para nos desconcertar, eis que se acrescenta e atinge o espectador um dilúvio de notações miserabilistas na linha de Desencanto (Brief Encounter, David Lean, 1945) e Umberto D. (Vittorio De Sica, 1951-1952), às quais ele empresta as cores inesquecíveis dos velhos subúrbios de Londres[2]. Assim como existem spaghetti westerns, O estrangulador de Rillington Place é um filme neorrealista cup of tea: trabalho arqueológico admirável no qual a Londres dos anos 1950 finalmente emerge como si própria, mudada pela deterioração. É preciso ter visto o plano de conjunto (autêntico) do lugar de Rillington, ao longo de todo o filme. Trata-se de acrescentar ainda mais à “impressão de realidade”? Não acreditamos, ainda menos quando os detalhes sórdidos têm aqui o mesmo papel que os movimentos de câmara nos outros filmes de Fleischer: ele abusa deles, pelo arabesco – e sobretudo para nos conduzir à etapa seguinte do nosso caminho de cruz: a depressão.
A depressão é uma fase capital para todos os espectadores deste filme, porque ela lhe permite estar ao mesmo nível que as personagens. Não é possível viver tal vida, simplesmente, e a única solução daqueles que a vivem é pensar em outra coisa. A fabulação é a terceira chave do filme: Tim conta à sua mulher que é filho natural de um conde italiano, à sua tia que a mulher pertence a uma família burguesa de Brighton, ao porteiro que será nomeado diretor de uma sucursal importante. Nada o para; é a sua mitomania que torna a maquinação de Christie tão fácil, e o comportamento dele diante dos investigadores é digno de Walter Mitty. Por não ser um poderoso deste mundo, sonha que é um e sobrevive a esse preço.
O caso de Christie tem mais nuances: como bom Tartufo, não deve perder o norte. Mas as suas ideias são de tal forma estranhas que fica bem concluir com a riqueza da sua imaginação: a sua principal diferença em relação a Tim (e em relação à maior parte dos homens) é que ele as concretiza. No auge da sua decadência, no asilo noturno, um movimento de orgulho vai varrer as suas reservas e ele vai se vangloriar, tal como Tim... e com o mesmo resultado: ninguém o leva a sério, justamente quando ele apenas diz a verdade. Há grandeza nessa personagem: é um bocado o De Gaulle do assassinato. Mas lá no fundo é como os outros: precisa dos seus delírios para suportar o resto, e a ideia de concretizar seus delírios é a base da sua grandeza. Através dele, e através de Tim, Fleischer oferece-nos a sua mensagem final: toda a beleza do mundo está no imaginário, e é preciso entregar-se a este de forma intensa para suportar o resto – ou para mudá-lo.
Notas:
[1] A não ser o pobre Gérard Lenne, que desceu bem baixo. Ele acha o filme tão banal que nos chegamos a perguntar se não roubou o manuscrito do Le cinéma fantastique et ses mythologies, cujo desaparecimento prematuro é uma perda, após ter estrangulado o verdadeiro autor pela crítica cinematográfica.
[2] Foram sobretudo o cinza e o cheiro a gás que desconcertaram Gérard Lenne, como se estivessem lá por acaso.
(Positif n.º 133, dezembro de 1971, pp. 97-100. Traduzido por João Palhares) |
2016/2021 – Foco |