HOWARD HUGHES, A R.K.O. E A SÉRIE B[1]
Dois assuntos monopolizaram a atenção em 1947. O primeiro foi o início do assustador inquérito sobre as infiltrações comunistas em Hollywood pelo Comitê de Atividades Antiamericanas (H.U.A.C.). O segundo foi Howard Hughes.
Cinco anos antes, em 16 de novembro de 1942, a Kaiser-Hughes Corporation inaugura um contrato de 18 milhões de dólares com o governo federal para construir três aviões cargueiros destinados aos esforços de guerra. Eles supostamente seriam, e de longe, os maiores veículos já construídos, e cada um deveria servir para o transporte de 700 passageiros ou 60 toneladas de equipamento. Para economizar o precioso material de guerra, eles seriam construídos inteiramente de madeira compensada.
No momento, a guerra havia terminado, mas o dinheiro tinha sido gasto. Apenas um avião havia sido construído, mas ele ainda não tinha voado. A imprensa o chamou de “Spruce Goose”. O governo, persuadido que ele nunca voaria, o chamava por sua vez de “o dodô”. Em 28 de julho de 1947 um comitê especial do senado, que investigava o programa da Defesa Nacional, começa um inquérito. O contraste entre esse inquérito e a obscenidade daquilo que realizava o Comitê de Atividades Antiamericanas não poderia ser maior. De um lado havia escritores, atores, produtores desprezados e humilhados; do outro havia um herói multimilionário, belo e audacioso, um homem de cinema extravagante, um piloto de testes que detinha o recorde de velocidade sobre a terra, o recorde de velocidade transcontinental, o recorde de velocidade da volta ao mundo, que havia sobrevivido a três acidentes de avião espetaculares e amplamente midiatizados, que arrasava, que tornava ridículas as pessoas que o interrogavam. Isso aquecia os corações e encantava o público.
Por mais que todos torcessem por Hughes, um ceticismo básico permanecia sobre se o “Spruce Goose” voaria um dia. Em toda parte discutia-se e debatia-se o assunto. Como essa coisa com uma cauda da altura de um imóvel de oito andares, com asas de uma envergadura maior que um campo de futebol, com um casco de uma altura de 30 pés e largura de 218 pés, pesando 400.000 libras, poderia voar? Eram muitos os que balançavam a cabeça com ceticismo.
Tanto as sacudidas de cabeça quanto o inquérito do senado terminaram de maneira abrupta quando, em 2 de novembro do mesmo ano, com Hughes no comando, o “Spruce Goose” alçou voo. Ele não voou nem muito alto nem por muito tempo, mas, meu Deus, ele voou. Deveria ser apenas um táxi de demonstração destinado à imprensa, mas com toda aquela evidência Hughes não pôde resistir à tentação. Ele o levantou a 70 pés sobre o mar e o fez voar por uma distância de uma milha.
Mal completados seis meses após o comitê especial do senado pôr um fim constrangedor às suas audiências, Robert Wise e eu estávamos no escritório de Sid Rogell, na R.K.O. Era cedo na manhã do dia 10 de maio de 1948; sentados confortavelmente, nós bebericávamos um uísque de fim de jornada antes de voltarmos, quando o telefone tocou. Sid atendeu e continuou sentado, sem expressão. Não parecia ter muita conversa pois, alguns segundos mais tarde, ele disse: “Ok, obrigado”, e desligou.
“Bem, senhores”, ele nos disse, ajeitando-se em sua cadeira de balanço, “Howard Hughes acabou de comprar o estúdio”.
Bob e eu ficamos parados por um bom tempo, incrédulos. Apenas uma coisa me vinha à mente. A primeira coisa que vinha à mente de qualquer um cada vez que o nome de Hughes era citado:
“Ele não decolará jamais”.
Infelizmente, eu tinha razão.
Cada vez que uma nova direção se instala em uma empresa, qualquer que seja seu domínio, ela causa frisson entre seus empregados. No nosso caso, foi uma onda de choque, de uma magnitude de 6,2 na escala Richter. Os trabalhadores, os maquinistas, os eletricistas, os pedreiros, as secretárias, assim como a administração, estavam inquietos em função, naturalmente, de seus empregos. N. Peter Rathvon, o presidente do estúdio, publica um comunicado dizendo que o Sr. Hughes não previa nenhuma substituição nem demissão em massa. Aqueles que estavam do lado da criação estavam inquietos, contudo, pois Hughes era precedido pela reputação de interferir, de se meter, de intervir como uma dor de garganta precede uma gripe violenta.
Dore Schary estava à frente da produção do estúdio e se virava muito bem. Ele tinha colocado em produção projetos excitantes e audaciosos como Rancor (Crossfire, Edward Dmytryk, 1947), O menino dos cabelos verdes (The Boy with Green Hair, Joseph Losey, 1948) e A vida de um sonho (I Remember Mama, George Stevens, 1948); ele havia introduzido ao repertório de Hollywood os novos talentos mais promissores; e durante sua curta presença ele içou a R.K.O. ao segundo lugar entre os “Big Six” (as seis majors). Mas os receios em relação a Hughes não eram infundados, infelizmente.
Em 30 de junho, cerca de seis meses após a chegada de Hughes, Dore Schary pedia demissão. No fim do verão, mais de 700 empregados tinham sido demitidos.
No momento em que Hughes assumiu o controle, eu trabalhava com Carl Foreman em Alma em sombras, um pequeno filme para a unidade de Rogell. Nós estávamos indo ao estúdio de carro uma manhã quando Carl me disse: “Você viu a declaração de Hughes à imprensa no jornal de hoje?” Não. “Bem”, continua Carl, “ele disse que irá dedicar toda a produção do estúdio ao sexo e à violência”.
“Eu tenho um excelente título para o primeiro filme dele”, eu disse.
“Qual?”.
“Bang Bang”[2].
Enquanto o estúdio caía em ruínas à nossa volta, nada parecia afetar a unidade de produção da série B. Nós seguíamos tranquilamente em frente, produzindo nossos pequenos filmes sem que ninguém interferisse. Outros não tiveram essa sorte: as intervenções de Hughes tornavam-se intoleráveis. Ele parecia obcecado pela ideia de mudar o fim dos filmes, o que lhe valeu uma reputação de sodomita. Ele via cada filme realizado no estúdio em uma sala de projeção privada, sozinho. Era tanto seu privilégio como seu dever. Como ele não tinha nenhuma noção do tempo, os filmes se acumulavam na cabine de projeção durante meses antes que ele os visse. Os produtores independentes começaram a ficar cansados e largaram o estúdio em um ritmo inquietante. Quarenta e nove filmes estavam previstos para 1949. Só fizemos doze, dos quais três eram meus. Sozinho realizei 25% de toda a produção.
Então, em 1950, um milagre ocorreu: eu fiz um filme bom. Mais que um filme bom, era realmente sensacional. Rumo ao Inferno foi rodado em 13 dias, e todos aqueles que no estúdio o viram pensaram que seria o meu golpe de sorte. Quando ele finalmente foi distribuído, Time Magazine dedicou a ele toda a sua rubrica de cinema: uma crítica ditirâmbica, um longo artigo em detalhes sobre Stanley Rubin, o produtor, e eu mesmo, batizando-nos como as brilhantes esperanças do futuro de Hollywood.
O filme era tão bom, na verdade, que ele acabou por chamar a atenção de Howard Hughes; ele o colocou na cabine de projeção, onde Rumo ao Inferno ficou na fila por mais de um ano.
Notas:
[1] Trecho da autobiografia de Richard Fleischer, Just Tell Me When to Cry (Carroll & Graf, 1993). Traduzido do inglês por Christian Viviani (o título foi escolhido pela redação).
[2] Jogo de palavras com o termo “bang!”, onomatopeia para disparos de bala, e “to bang”, que significa “trepar”.
(Positif n.º 544, junho de 2006, pp. 90-91. Traduzido por Cauby Monteiro) |
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