OS PARADOXOS DE FLEISCHER
por Serge Daney



VIAGEM FANTÁSTICA (Fantastic Voyage). 1966. 20th Century Fox (100 minutos). Produção: Saul David. Roteiro: Harry Kleiner e David Duncan, baseado em argumento de Otto Klement e Jay Lewis Bixby. Fotografia: Ernest Laszlo (CinemaScope, DeLuxe). Música: Leonard Rosenman. Cenografia: Jack Martin Smith, Dale Hennesy (a.d.), Walter M. Scott, Stuart A. Reiss (s.d.). Montagem: William B. Murphy. Elenco: Stephen Boyd (Grant), Raquel Welch (Cora Peterson), Edmond O’Brien (general Carter), Donald Pleasence (Dr. Michaels), Arthur O’Connell (coronel Donald Reid), William Redfield (capitão Bill Owens), Arthur Kennedy (Dr. Duval), Jean Del Val (Jan Benes), Barry Coe (assessor de comunicação), Ken Scott (homem do serviço secreto), Shelby Grant (enfermeira), James Brolin (técnico), Brendan Fitzgerald (operador de rádio).


Um autor sem obra


Os filmes de Richard Fleischer nos interpelam estranhamente. Nós os amamos um por um, mas desprezamos o conjunto. Haveria uma obra, ou até mesmo um autor? Se assim o fosse, como explicar então que ninguém até aqui o percebeu? Devemos concluir que tudo não passou de uma série de acasos, acidentes felizes que tiveram por nome 20.000 léguas submarinas, O escândalo do século, O bandido, Vikings, os conquistadores, Entre o Céu e o Inferno ou Barrabás? É pouco provável. A situação de Fleischer seria, portanto, ambígua: nem artesão, nem autor, descoberto e esquecido em intervalos regulares, finalmente forçado a realizar ele mesmo sua própria apologia (Cahiers n.º 186). Fleischer seria então esse cineasta que tem êxito em todos os seus filmes sem lograr uma obra.


Temas sem autor


Segundo paradoxo: Fleischer não é um autor, mas ele fala sempre da mesma coisa. A saber: os jogos da justiça, a partilha das recompensas e dos castigos, ou ainda os poderes da inteligência. Todos são casos de consciência, de testemunhos contraditórios, de razões escondidas e motivações estranhas. Aprendemos que julgar é temerário, pois, como disse em outro lugar Octave[1], “todo mundo tem suas razões”. O inventário delas basta. Com um pouco de paciência deve ser possível explicar tudo e suspender indefinidamente o julgamento, até esquecê-lo. Os mais belos filmes de Fleischer (O escândalo do século, Entre o Céu e o Inferno) são também aqueles cujas visões são as mais difíceis – para não dizer as mais frustrantes. Somos compelidos a julgar as personagens, decidir quem tem razão e quem está errado, e, à medida que o filme avança, a questão perde a sua urgência, apaga-se e desaparece. Surpreendemo-nos em seguir o movimento (teses e antíteses) de um pensamento impessoal, imparcial e um pouco cínico, preocupado em explicar, em justificar indefinidamente, e tudo isso para nada (ou pelo simples prazer da jubilação intelectual). Eis aqui todos os poderes da inteligência, e seus limites: ela só esclarece a posteriori. Os filmes de Fleischer não possuem conclusão e somente avançam ao se destruírem a si mesmos. Isso significa que eles não levam a lugar algum, não dão razão nem a um, nem ao outro: ao espectador exausto e decepcionado, à garota no balanço e ao cineasta no seu purgatório. As orgias do intelecto deixam apenas (isto é bem conhecido) uma ligeira amargura.


P.S. – O leitor terá notado que pouco se falou aqui sobre Viagem fantástica. É que a arte de Fleischer só se encontra em filigrana ou em estado de rascunho no filme. Notaremos apenas que: 1) A astúcia substitui a inteligência. 2) Um filme feito em função de uma única (e bela) ideia pode apenas limitar Fleischer, que prefere a profusão de ideias, preferencialmente contraditórias. 3) No decorrer de um morceau de bravoure que dura por muito tempo, a rotina se instala rapidamente e resta aqui apenas um vago mal-estar intelectual. 4) Inversamente, tudo o que anuncia a “atração principal” do filme é perfeitamente bem-sucedido. Quanto a isso, vale notar que os primeiros planos do avião que pousa no meio da noite são de longe os mais belos e os mais inquietantes do filme.


Nota:


[1] Referência à fala da personagem interpretada por Jean Renoir em A regra do jogo (La règle du jeu, Jean Renoir, 1939). [N.T.]


(Cahiers du cinéma n.º 188, março de 1967, p. 66. Traduzido por Bruno Andrade)

 

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