ESTRANHA COMPULSÃO
(Compulsion). 1959. 20th Century Fox (103 minutos). Produção: Richard D. Zanuck para a Darryl F. Zanuck Productions. Roteiro: Richard Murphy, baseado na novela de Meyer Levin. Fotografia: William C. Mellor (CinemaScope, P/B). Música: Lionel Newman. Cenografia: Lyle R. Wheeler, Mark-Lee Kirk (a.d.), Walter M. Scott, Eli Benneche (s.d.). Montagem: William Reynolds. Elenco: Orson Welles (Jonathan Wilk), Diane Varsi (Ruth Evans), Dean Stockwell (Judd Steiner), Bradford Dillman (Arthur A. Straus), E. G. Marshall (promotor Harold Horn), Martin Milner (Sid Brooks), Richard Anderson (Max Steiner), Robert Simon (tenente Johnson), Edward Binns (Tom Daly), Robert Burton (Charles Straus), Wilton Graff (Sr. Steiner), Louise Lorimer (Sra. Straus), Gavin MacLeod (Padua, assistente de Horn).
A sangue-frio
A filmagem de Estranha compulsão para Darryl F. Zanuck permitiu a Richard Fleischer pôr em prática os conhecimentos adquiridos na Escola de Artes Dramáticas de Yale no terreno das composições dramáticas: “Em filmes como Estranha compulsão ou O homem que odiava as mulheres, para dar alguns exemplos”, disse Fleischer, “utilizei uma coisa de que gosto muito: descentralizar a câmera, ou seja, desestabilizar visualmente uma cena; é algo que pode não chamar a atenção de você como espectador, e isso é uma vantagem: você só percebe que há um efeito de instabilidade, um desequilíbrio, e isso funciona muito bem em histórias de criminosos psicopatas.” É precisamente disso que trata Estranha compulsão: dois jovens da alta sociedade de Chicago, obcecados pela teoria nietzscheana do super-homem, decidem cometer um crime perfeito baseando-se também na crença de que ambos possuem uma inteligência extraordinária que lhes permitiria sair impunes e, de quebra, demonstrar sua superioridade. A história foi baseada em um fato real ocorrido em 1924, que inspirou a peça de teatro Rope de Patrick Hamilton, levada ao cinema por Alfred Hitchcock (Festim diabólico [Rope, 1948]), mas o roteiro do filme, baseado em um livro de Meyer Levin e escrito por Richard Murphy, foca, ou tenta concentrar-se, nos fatos em si, naquilo que poderia denominar-se a crônica quase documental do acontecimento. Primeiro, tentando descrever a psicologia dos criminosos, Judd Steiner (Dean Stockwell) e Artie Straus (Bradford Dillman). Segundo, mostrando friamente os fatos correspondentes à investigação criminal através da conduta do delegado Horn (E. G. Marshall). E, em terceiro, através do funcionamento da máquina judicial, retomando as três personagens anteriores e acrescentando uma quarta: o advogado de defesa Jonathan Wilk (Orson Welles).
Como ocorre em alguns dos melhores filmes realizados por Fleischer, Estranha compulsão não pode ser entendido sem que se observe os efeitos de planificação e mise en scène: não se trata de uma narração, mas de um comentário (psicológico, psiquiátrico) dos fatos. Fleischer planifica as sequências centradas na personagem de Dean Stockwell seguindo a estratégia da tensão; e aquelas centradas na personagem de Bradford Dillman se distinguem pela frieza do tratamento e pelo modo de se preencher espaços vazios. Não é estranho que seja assim, quando se trata de um diretor (Fleischer) interessado pela psiquiatria e pela crônica dos acontecimentos: Judd Steiner é um jovem emocionalmente instável, dependente de Artie, a quem admira, e cuja instabilidade é a causa de tensões e desequilíbrios que Fleischer mostra sempre por meio de enquadramentos descentralizados (que se veja as sequências exemplares da tentativa de estupro de Ruth/Diane Varsi no parque, ou a primeira conversa que ele tem em casa com seu irmão mais velho, Max/Richard Anderson); Artie Straus é mais inteligente que seu amigo, mas também mais frio (o momento difícil, quando ele explode em risos se revela muito mais efetivo que outras gargalhadas histéricas cinematográficas, como as finais de O tesouro de Sierra Madre [The Treasure of the Sierra Madre, John Huston, 1948] ou de Cinco dedos [Five Fingers, Joseph L. Mankiewicz, 1952]), e Fleischer o filma procurando ressaltar o vazio ao seu redor (um vazio que parece atrair o frenesi, a violência: quando Artie quebra o copo no bar e se afasta do quadro, este parece incompleto, o vazio pesa dramaticamente, até ser preenchido por casais dançando um frenético charleston). É lógico que seja assim: Artie Straus é o líder espiritual da dupla e é quem proclama com mais convicção a necessidade de viver uma vida desprovida de emoções humanas: sua frieza é o eixo dramático de cada plano em que aparece e sua ausência clama, ou parece clamar a gritos, a violência que subjaz a sua personalidade. Nessa mesma sequência do charleston há outro bom exemplo do trabalho consciente de mise en scène de Fleischer: quando Judd conversa com Ruth, os planos que mostram Diane Varsi frontalmente têm como fundo o espaço em que os demais dançam (trata-se de uma moça integrada ao ambiente do local), ao passo que os planos que mostram Dean Stockwell frontalmente têm como fundo a parede (trata-se de um jovem alheio ao ambiente, ensimesmado, como a interpretação do ator também ressalta).
A aparição cênica do advogado Jonathan Wilk, que, a princípio, pode incomodar pelo quanto tem de servilismo à endeusada aparição de Orson Welles (há algazarra no local; Welles entra e todos se calam e voltam o olhar para ele), introduz no filme outro elemento em que Fleischer sempre se mostrou muito interessado: a religiosidade, considerada como intervenção do destino, como uma predestinação, que daria lugar a um longo comentário à parte. Basta dizer que, com exceção do discurso contra a pena de morte (denunciando o ódio ao culpado, ao castigo bárbaro; ressaltando que a crueldade só engendra crueldade, que não se destrói o ódio com ódio, mas com caridade e compreensão) e também da breve, mas eficaz, aparição da Ku Klux Klan, o advogado Wilk, porta-voz do diretor Fleischer, põe a ênfase no encontro providencial dos óculos de Judd ao lado do menino assassinado pelos dois amigos. “Deus não tem nada a ver com isso”, disse Judd. “Nos próximos meses, você ficará se perguntando se não foi Deus quem fez seus óculos caírem do seu bolso”, é a resposta de Wilk. “Acho que a moral de tudo isso é que, faça o que fizer, ninguém pode escapar desse elemento do destino que sempre nos apanha em algum momento. E é muito estranho em Estranha compulsão, porque essa história dos óculos era um incidente real. Era a mão de Deus. Porque, como se diz no final, se não foi Deus quem fez isso, então quem o fez?”, foi o comentário de Richard Fleischer.
(Dirigido por... n.º 225, junho de 1994, pp. 16-17. Traduzido por Rafael Zambonelli) |
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