PARA ACABAR DE VEZ COM A MISE EN SCÈNE
por Bruno Andrade


– Jerry Lewis. Eu vi o último filme dele, Um trapalhão mandando brasa (Hardly Working, 1979-1980), que acho que ainda não foi lançado aqui. E para mim os grandes diretores... Ele é mais um pintor do que um diretor. Ele provavelmente nem tem ideia disso, mas para mim ele é um grande continuador da tradição de Harry Langdon, Buster Keaton e Chaplin. Ele trabalha com o espaço, ele não faz movimentos de câmera aleatórios como esses supostos cineastas modernos, que fazem firulas com as suas câmeras. Ele só está interessado em enquadrar; ele é um ótimo enquadrador, como todos os grandes pintores. Ele tem um excelente senso de geometria. Para ser um cômico você precisa ser muito hábil com geometria. E hoje, quero dizer, seu último filme, até o título é muito honesto: é difícil fazer um bom filme, e ele sabe disso. E acho que ele deve ser apoiado, e sou um dos seus apoiadores.
– Mas a maioria das pessoas não vai ao cinema para ver enquadramentos e outros detalhes técnicos, elas querem rir ou se entreter...
– Sim, mas é através desses elementos que elas recebem o filme.
– Sim...

— Jean-Luc Godard,
The Dick Cavett Show

A crítica, antes de ter seus beneficiários, tem suas vítimas. Espectadores infelizes, rapidamente transformados em especialistas, que folhearam demais e observaram demais, sensíveis apenas à espuma das palavras! Que aprenderam a decompor (o filme em seus elementos) e não sabem mais o que fazer deste último elemento, completamente só, irredutível, isolado e, portanto, inutilizável: a mise en scène. Que aprenderam a decompor no momento em que – não por acidente – todo o cinema moderno (1963: O cardeal [The Cardinal, Otto Preminger, 1963] – Lawrence da Arábia [Lawrence of Arabia, David Lean, 1961-1962] – Deu a louca no mundo [It’s a Mad Mad Mad Mad World, Stanley Kramer, 1962-1963]) tende a se tornar mais sintético, mais unitário, mais completo; a mise en scène a não ser, se é que já foi outra coisa, mais que a síntese de seus elementos ou, para empregar uma palavra mais bonita, sua fusão, ou uma outra ainda mais bonita, sua comunhão (livre, aliás, para daí aceitar aparentes contradições, mas essa é uma outra história).

— Jacques Lourcelles,
Tema do traidor e do herói – Notas muito livremente inspiradas na obra de Samuel Fuller

Uma outra história


Passados os primeiros anos do cinematógrafo, nos anos 1920 se estabelece, de forma bastante espontânea, uma relação crucial entre o surgimento da cultura cineclubista e a prática da crítica jornalística. Esse elo, que se torna mais sistemático com o passar dos anos, sai fortalecido dos anos 1930 com a aparição das primeiras cinematecas, as quais garantem a consolidação de uma atividade cinéfila voltada à proposição de valores emergentes. No contexto desses primeiros anos de uma atividade crítica pioneira que se vê respaldada pelas iniciativas dos cineclubes, os embates com o cinema popular levam nomes como Ricciotto Canudo e Louis Delluc a desenvolver algumas das primeiras reflexões teóricas substanciais sobre o cinema. Com o prestígio que as cinematecas adquirem com a formação de um público assíduo e fiel às suas programações, a crítica aprofunda um degrau e nomes como Henri Langlois, Jean Mitry e Plínio Sussekind (anos 1930), André Bazin, Georges Sadoul e Paulo Emílio Sales Gomes (anos 1940) protagonizam ações e reflexões cujo impacto repercute até os dias de hoje.

É nesse cenário que afloram duas tendências antagônicas: de um lado, aqueles que favorecem uma posição “no calor do momento”, que privilegiam as flutuações do gosto e suas reações vivas em detrimento do distanciamento analítico e da reflexão; do outro, aqueles que resistem ao posicionamento momentâneo, que favorecem o distanciamento e incluem na atividade crítica a necessidade de um equilíbrio que não avilta a visão e não idealiza posturas. Ainda que seja possível observar nuances e assimilações mútuas entre as duas tendências, o atrito entre esses diferentes núcleos da crítica aumenta consideravelmente, e com isso fica mais evidente a necessidade de interpenetração das questões abordadas por essas correntes distintas da crítica, que idealmente coexistiriam mantendo cada uma a sua autonomia. O predomínio da crítica jornalística, no entanto, fez com que as polêmicas, geralmente pautadas pelas estreias mais recentes, se dessem sempre “no presente”, e assim os debates críticos nessa chave foram frequentemente historicizantes. É na virada dos anos 1940 para os 1950 que um grupo de críticos reunidos em torno da figura de André Bazin, dentre os quais Alexandre Astruc e Jacques Rivette, interrogam a práxis cinematográfica de então, produzindo exposições essencialistas do problema em textos como “Nós não somos mais inocentes” e “Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo”. O conceito de mise en scène, decorrente tanto dos ensaios de Bazin sobre o realismo quanto do interesse de Astruc por uma coreografia do real que desde muito cedo foi, na falta de um termo mais preciso, batizada de abstração, passa a ocupar um lugar central no debate teórico do país que viu, do surgimento dos cineclubes à fundação da sua Cinemateca, a precipitação e a intensificação de uma produção crítica cada vez mais ligada às conquistas de uma efervescente erudição cinéfila.

Essa concepção da mise en scène cinematográfica – encarada de formas distintas, mas não excludentes – visa um ideal que pode ser definido da seguinte forma: há uma linguagem, à qual o cineasta recorre e pela qual o espectador recebe a obra, mas não é ela nem tampouco seus elementos constitutivos o que o espectador deve perceber enquanto assiste a um filme, não é ela que deve importar ao realizador enquanto produto do seu trabalho. O que importa, o que deveria importar, é aquilo que é evocado por essa linguagem, seu resultado, seu fim: uma narrativa que finalmente dá lugar à própria realidade. Uma arte, portanto, que oculta os seus próprios traços, que não deve ser perceptível[1]. A mise en scène clássica, à qual só se pode atribuir uma definição metafísica, seja nos termos da transparência mac-mahoniana[2] ou da síntese hawksiana[3], seria aquilo que permanece quando todo o resto – a técnica, a linguagem, a retórica, os meios empregados para a sua composição, os instrumentos que garantem a sua expressividade – já se apagou, já sumiu para dar lugar àquilo que não podemos sequer chamar de expressão, nem de representação: uma alquimia que se obtém ou não; a presença dos atores que surge como uma forma de magia ao ser inscrita na película; um segredo; um mistério. Abstração e realismo foram os termos utilizados por Rivette e Astruc para descrever os dois polos entre os quais oscilam, em graus os mais diversos, filmes como Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans, F. W. Murnau, 1927), Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), Sob o signo de capricórnio (Under Capricorn, Alfred Hitchcock, 1949), Diário de um pároco de aldeia (Journal d’un curé de campagne, Robert Bresson, 1951), O inventor da mocidade (Monkey Business, Howard Hawks, 1952), A carruagem de ouro (The Golden Coach/Le carrosse d’or, Jean Renoir, 1952) e Viagem à Itália (Journey to Italy/Viaggio in Italia, Roberto Rossellini, 1953-1954). Não coincidentemente, foram esses filmes que nortearam a teorização da mise en scène e a subsequente proposição de uma modernidade cinematográfica associada a essa concepção.

Mas não foi um cineasta europeu ou americano que conciliou as diferentes capelas, que fez cessar os pequenos complôs em função daquele maior, inextricável, que se formou em torno do seu nome, não foi um cineasta europeu ou americano que fez com que todos os núcleos da crítica cinematográfica atuantes a partir do pós-guerra na França convergissem e se conciliassem pela primeira vez. O cinema de Kenji Mizoguchi forneceu a evidência mais sensível desse segredo que nasce da fusão entre o realismo e uma musicalização do concreto, a qual define, talvez melhor do que a noção de abstração, a passagem da presença bruta à exuberância da realidade sobre a qual se funda aquilo que veio a ser chamado de mise en scène. A apoteose dessa articulação modulatória do realismo foi esboçada nos trabalhos que a obra do cineasta japonês suscitou entre os principais expoentes da crítica, da realização e da teoria cinematográfica da França dos anos 1950 e 1960, de Gérard Legrand a Alain Resnais, de Georges Sadoul a Luc Moullet, de Jean Douchet a Jacques Demy, de Henri Agel a Philippe Demonsablon. Foi este último quem, em 1954[4], na ocasião do lançamento parisiense de A vida de O’Haru (Saikaku ichidai onna, 1952), definiu antecipadamente a arte de Mizoguchi naquilo que ela compartilha com a escola realista do pós-guerra:

A proliferação do imediato redunda numa observação múltipla e precisa que possui a faculdade do atalho e o dom da síntese: a profusão não cessa de ser clara. Nenhuma dispersão, malgrado as numerosas personagens que O’Haru engendra em torno de si, as quais cada uma se encontra, em curtas cenas, levada ao máximo de expressão; o detalhe não pretende resumir, simbolizar, mas reúne, concentra e, finalmente, arrebata. A economia de meios caracteriza-se pelo emprego sistemático do plano longo, que integra a duração, aumenta o relevo temporal das cenas e dá sua importância aos movimentos de câmera: movimentos sem mistério, mas cujo dinamismo prolonga o movimento interno da ação, o movimento das personagens provocando o movimento da câmera, que os transmite. Numa notável adequação, cada episódio encontra assim seu ritmo sem se confundir num mecanismo arbitrário; o realizador soube descobrir o ritmo tanto da pressa como da calma, da privação como do afã, da obstinação como da delicadeza; é, a cada vez, uma invenção na exploração do cenário ou sua utilização, no povoamento do campo, que não detém nenhuma convenção de composição, nenhuma preocupação de enquadramento (assim os quadros estiram-se em largura à mercê do movimento, ou estreitam-se, ao contrário, numa porção restrita do campo).

Da mesma forma, Demonsablon soube, muito antes dos textos de Rivette[5] e Astruc[6], descrever a dimensão transcendente da gestão do realismo em Mizoguchi:

Se admitimos chamar realista a arte que se abstém de toda solicitação exterior a seu objeto, que deixa as coisas se apresentarem por si mesmas, sem que o pensamento intervenha de outro modo senão o de elidir sua impressão e dar mais eficácia aos objetos que esta propõe, a mise en scène de A vida de O’Haru parece, logo, decididamente realista. Mas a simplicidade exige mais da arte, e esta obra logra o paradoxo de ser despojada sob a acumulação de matéria, refinada sob a abundância, e de importar-se pouco com que tal despojamento, tal refinamento sejam percebidos. Como os enquadramentos submetem-se, de partida, às leis do movimento, e não da plástica, cujo rigor entretanto permanece surpreendente, assim a beleza das imagens passa despercebida. Nenhum inchaço barroco, nenhuma intenção vêm se introduzir na imagem, que não quer nos tocar senão através de sua substância mesma: nem cômica, nem fantástica, nem poética, mas participando, muito amiúde, destas categorias, recusando-se a qualquer classificação unívoca.

Essa dança singular da precisão e do acaso, essa “arte da modulação” que encontrou a sua justa interlocução nas obras de algumas das mentes mais perspicazes da crítica e da realização cinematográfica do século XX pôde, após ascender aos seus pontos mais altos (Contos da lua vaga [Ugetsu monogatari, Kenji Mizoguchi, 1953], O intendente Sansho [Sanshō Dayū, Kenji Mizoguchi, 1954]), aterrizar extramuros, no decorrer dos anos 1950, em alguns filmes que souberam incorporar o acréscimo da cor e do CinemaScope para ampliar, e em alguns casos acentuar, essa vacilação entre o realismo de Bazin e o horizonte mítico de uma realidade que poderia ser em um único movimento abstraída e reforçada em sua concretude pela arte da mise en scène. Com seus travellings laterais, suas reangulações consecutivas, seus empregos sistemáticos do plano longo no qual o menor movimento da câmera parece agir diretamente no ritmo e consequentemente na evolução temporal do filme, saturados pela dialética entre o realismo e a sublimação das suas formas, à qual se somam aquela entre a violência dos meios (a cor, o CinemaScope, o som estéreo em quatro faixas) e a meditação dos fins (um cinema marcado pelas longas pausas, pela inadaptação do herói ao mundo moderno, pelas fendas que se abrem para o vazio, de onde as personagens contemplam os seus destinos e os cineastas contemplam as personagens), entre a eficácia do espetáculo e a contemplação do mundo, filmes como O rio das almas perdidas (River of No Return, Otto Preminger, 1954), A lenda dos beijos perdidos (Brigadoon, Vincente Minnelli, 1954), Nasce uma estrela (A Star Is Born, George Cukor, 1954), Terra dos faraós (Land of the Pharaohs, Howard Hawks, 1955), O tesouro do Barba Rubra (Moonfleet, Fritz Lang, 1955), Casa de bambu (House of Bamboo, Samuel Fuller, 1955), Dançando nas nuvens (It’s Always Fair Weather, Stanley Donen e Gene Kelly, 1955), Juventude transviada (Rebel Without a Cause, Nicholas Ray, 1955), Eles e elas (Guys and Dolls, Joseph L. Mankiewicz, 1955), O tirano da fronteira (The Last Frontier, Anthony Mann, 1955), Lola Montes (Lola Montès, Max Ophüls, 1955), Arroz maldito (La risaia, Raffaello Matarazzo, 1955-1956), Amor, prelúdio de morte (A Kiss Before Dying, Gerd Oswald, 1956), A descarada (The Revolt of Mamie Stover, Raoul Walsh, 1956) e Beatrice Cenci (Riccardo Freda, 1956) representam o marco limiar daquilo que Jacques Rivette celebrou, a justo título, como a era dos metteurs en scène[7].

Os profetas da revolução anunciada por Rivette em 1955[8] chamavam-se Nicholas Ray, Richard Brooks, Anthony Mann e Robert Aldrich. Vindos após uma primeira leva de cineastas (composta por Joseph L. Mankiewicz, Jules Dassin e Otto Preminger) que deu continuidade ao “golpe de estado wellesiano”, esses quatro serviram de porta-bandeira a uma geração explosiva, à qual Rivette acrescentou os nomes de Edgar G. Ulmer, Joseph Losey, Richard Fleischer, Samuel Fuller, Joshua Logan, Gerd Oswald e Daniel Taradash. Capaz de “reatar abertamente com a tradição de 1915, a de Griffith e da Triangle”, de “reencontrar uma certa largueza dos gestos, uma exteriorização mais rústica e mais espontânea dos sentimentos”, essa geração fez críticos como Rivette, Astruc e Godard vislumbrarem um retorno “aos sentimentos fortes, ao melodrama”, um retorno que permitiu ao cinema dos anos 1950 recuperar a inventividade dos pioneiros (Griffith, Stroheim, Stiller) através da mise en scène mais moderna. Já no célebre ensaio “Sobre uma arte ignorada”, publicado em 1959, no qual o crítico mac-mahoniano Michel Mourlet sintetiza as questões levantadas por inúmeros teóricos e ensaístas franceses em torno da questão da mise en scène ao longo dos anos 1950, são mencionados Cecil B. DeMille, Vittorio Cottafavi, Don Weis, Fritz Lang, Raoul Walsh, Edward Ludwig, Kenji Mizoguchi, Ida Lupino, Franz Eichhorn, Allan Dwan e Douglas Sirk além dos já citados Joseph Losey, Otto Preminger, Samuel Fuller, Edgar G. Ulmer e Richard Fleischer.


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É nesse contexto que se deve destacar o nome de Richard Fleischer, e discuti-lo.

O “superdotado da mise en scène”, segundo a definição de Jacques Lourcelles, é curiosamente o cineasta cuja obra mais parece expor os limites e os paradoxos de todo o arcabouço teórico e artístico que se cristalizou em torno do conceito de mise en scène. Dentre os inúmeros realizadores prestigiosos que trabalharam no período “clássico” do cinema hollywoodiano, Fleischer foi aquele que evidenciou de maneira profunda, num nível que poderíamos chamar de ontológico, as diferenças técnicas e expressivas entre o emprego do formato tradicional dos primeiros anos do cinema (1,33/1) e o quadro CinemaScope, chamando nossa atenção à medida que acentuava os contrastes entre as duas janelas (preto e branco/cores, tela retangular/tela larga), dando-nos a impressão de que nos tornávamos conscientes à mesma medida que ele próprio das possibilidades do novo formato, de que nos extasiávamos junto com ele diante dos benefícios da tela panorâmica. Quando víamos, em filmes realizados entre os anos 1946 e 1953, um detetive no encalço do assassino em uma viela estreita e úmida (O estrangulador misterioso), o policial percorrendo o vagão de trem em busca do capanga de um chefe do crime (Rumo ao Inferno), tudo estava filmado de modo a enfatizar a moldura, o tamanho da moldura, pois tratava-se de um recorte do mundo em que as personagens e as tramas permaneceriam contidas no seu interior. Quando vemos o professor Aronnax e seu assistente testemunhando de dentro de uma cabine do Nautilus um cortejo fúnebre (20.000 léguas submarinas), Eric e Morgana acompanhando de longe ao navio em chamas que adentra o mar com o corpo de Einar (Vikings, os conquistadores), a enfermeira Linda Sherman observando o gerente supervisor Boyd Fairchild, que contempla de um despenhadeiro os inúmeros caminhos que cortam as encostas da mina da qual é o gestor, talvez concluindo que todas essas vias levam a lugar nenhum (Sábado violento), contemplamos não só as personagens que contemplam os seus destinos, não só o olhar do cineasta que contempla essas personagens, mas também o cinema contemplando a si mesmo e, talvez, ao seu destino.




Mais do que em Anthony Mann, Nicholas Ray e Samuel Fuller, o apogeu dessa escrita sinuosa que, através do CinemaScope, percorreu os extremos do realismo e da sua depuração musical e coreográfica (próxima nisso dos resultados que Kenji Mizoguchi obteve nos seus últimos 15 filmes) está no estilo ao mesmo tempo distante e envolvente, sóbrio e deslumbrante que Richard Fleischer pôde desenvolver com a utilização do formato panorâmico. Apenas o trabalho de Preminger pode, nesse aspecto, competir com o seu; mas, ao contrário do autor de Fama a qualquer preço, o de O cardeal sempre acreditou, até o fim, na mise en scène como um sortilégio no qual cada elemento expressivo, uma vez tendo cumprido o seu papel, acabaria absorvido e consequentemente abstraído na realidade ficcional do filme, a qual se confunde da maneira mais completa possível com a própria realidade. Essa concepção da mise en scène pode bem ter sido a de Fleischer no intervalo da sua obra que vai de 20.000 léguas submarinas a Vikings, os conquistadores, pode inclusive ter sido aquela com a qual realizou um magnífico exemplar tardio do espetáculo hollywoodiano como Barrabás. Mas a partir do ano de 1959, a partir de um western cuja composição plástica foi quase que integralmente inspirada pelo abstracionismo de Mondrian (Fama a qualquer preço), a partir de uma narrativa criminal na qual o cineasta, buscando a desestabilização contínua do espectador, adotou o emprego sistemático da descentralização do ângulo de tomada da câmera (Estranha compulsão), uma inversão é proposta: o interesse é deslocado para o que antes parecia impossível à mise en scène realista, e o cineasta recorre a soluções que explicitam a técnica, que evidenciam no interior do quadro realista aquilo que o realismo possui de composto e fragmentário e valorizam o gesto criativo naquilo que, visto de uma perspectiva clássica, ele apresenta de mais problematicamente subjetivo e intervencionista. A mise en scène, após se tornar “mais sintética, mais unitária, mais completa” em filmes como os que Fleischer realizou entre 1954 e 1958, assume que sua abstração, a qual seria mais correto tratar como um despojamento do realismo, se dá sempre por um motivo (a expressão de uma ideia, a exortação de um sentimento), assume inclusive que esse despojamento não conduz à abstração pura, e assim finalmente se reivindica como o controle assertivo da vontade centralizadora de um autor – como uma retórica, em suma.

Em meio à produção eclética de Fleischer – noir, aventura épica, ficção científica, drama de enquete policial, polar sociológico, filme de guerra – três faces, três tendências se destacam: a mitológica (que se manifesta pelo interesse de Fleischer em filmar o homem em combate), a realista (pela qual esse combate é situado num contexto social preciso) e a analítica (que faz com que tanto o combate quanto o contexto social se dissolvam para revelar a imagem da civilização que deu lugar a essa sociedade e do homem que se reencontra após levar até o fim a sua luta). Na maior parte dos filmes dos anos 1950 o interesse do autor parece se limitar à síntese entre as tendências realista e mitológica (é a essa síntese que se deve o êxito de Vikings, os conquistadores), mas o que chama a atenção em Sábado violento, sua obra-prima, é que essas duas linhas acabam submetidas à tendência analítica. É a partir da fusão entre as três que Fleischer elabora aquilo que podemos chamar, tendo em vista a evolução do seu cinema, de reivindicação retórica do realismo. A síntese das três tendências produz uma estética na qual o realismo é posto em evidência por um movimento que encontra e afirma a ubiquidade da narração não mais pela sucessão dos fatos, como ocorre tradicionalmente, mas pela sua fragmentação temporal e plástica, pela qual se afirma a presença de um narrador que, não podendo mais propor a realidade sob a forma de uma transparência engendrada por uma pura ciência da observação (cf. O cardeal, Lawrence da Arábia, Deu a louca no mundo etc.), busca mostrar (delimitar, isolar, ressaltar) o real pela sua alegoria (mito), pela sua síntese (realismo) ou pela sua dialética (análise).

Sábado violento representa, na obra de Fleischer, o momento em que essa elaboração poética surge em sua plenitude, ainda ligada a uma concepção de cinema que poderíamos chamar de “clássica”, próxima da de Henry King (o cineasta como agrimensor, apto a medir, dividir e demarcar novas terras, apto também a estabelecer os fatos, as informações, os espaços, os humores e os costumes que se ligam a cada novo território coberto), Raoul Walsh (o homem lançado à aventura e descobrindo seus limites e suas virtudes em meio ao jogo do acaso e da fortuna, tendo que sobreviver à marcha aleatória daquilo que chamamos de destino), Fritz Lang (a irrupção da violência na ação e a sua valorização tanto no plano plástico quanto no da análise social) e dentre os seus contemporâneos Gordon Douglas, Robert Wise, Anthony Mann e Samuel Fuller. A primazia da tendência analítica em Estranha compulsão e Tragédia num espelho desequilibra as características que nas obras anteriores de Fleischer se integravam, ao menos aparentemente, de maneira harmoniosa, de modo que era essa aparência de harmonia (fluência descritiva, irrupção da violência em um contexto social minuciosamente retratado, superação de adversidades pela tenacidade do herói) o que fazia com que seu cinema se assemelhasse ao da escola americana clássica. A partir de Estranha compulsão o cinema de Fleischer começa a se afastar desse classicismo, e com isso aproxima-se de obras que, como as de Alfred Hitchcock, Orson Welles e Elia Kazan, acrescentaram à mise en scène clássica um lado deliberadamente intervencionista, conduzindo-a por uma rota já bastante à parte de qualquer aspiração à invisibilidade ou à transparência que ela, a mise en scène, possa ter tido outrora.

A propósito de Barrabás, Fleischer faz uma exposição precisa do trabalho com o método analítico na entrevista que deu a Bertrand Tavernier: “[Contrariamente] aos filmes bíblicos, que são fundados sobre a afirmação, esse é um filme sobre a dúvida. Nenhuma sequência se fecha sobre si mesma, pelo contrário. Todas permanecem abertas. Há uma progressão dramática, mas não intelectual, pois os fatos se contradizem, se neutralizam, são interpretados de dez maneiras diferentes sem que essa liberdade seja vista como um erro.”[9] A história do condenado à morte libertado por Pôncio Pilatos, que vive as agruras da condição de escravo-mineiro e de gladiador atormentado pela lembrança de Jesus, que vislumbra no incêndio de Roma o nascimento de uma era cristã, e que ao fim da sua trajetória terrena entrega enigmaticamente sua vida à escuridão, permite a convergência das tendências mítica, realista e analítica no que só pode ser descrito como a apoteose classicista do estilo de Fleischer, na qual se sobressai admiravelmente a temática social presente em todos os seus longas desde Filhos do divórcio. Barrabás, o filme do dia que se transforma em noite, marca o fim da primeira etapa da maturação artística de Fleischer, concluída sob a sombra de Orson Welles; é, em todos os aspectos, o ponto de inflexão do primeiro período da sua obra.


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Os anos 1960 se iniciam, para Fleischer, com um longo hiato: vários projetos com Dino De Laurentiis, o produtor de Barrabás, são anunciados (todos eventualmente abortados), e um longo período de gestação para uma adaptação de Nightrunners of Bengal, que finalmente não verá a luz do dia, ocupam-no por um período de cinco anos. Essa interrupção da atividade profissional de um cineasta hollywoodiano é extremamente incomum; não por acaso foi nesse intervalo que se instaurou uma relação ambígua da crítica com o cinema de Fleischer, a qual perdura até hoje. Ainda que conte com as exegeses notáveis de José María Palá, João Bénard da Costa e Robin Wood, a valorização de Fleischer, que chega ao seu apogeu na primeira metade dos anos 1960, começa a esbarrar já no final dos anos 1950 em uma série de impasses que se relacionam menos à evolução real de sua obra que à idealização desta pelos devotos do culto ao classicismo da mise en scène. A gramática corriqueira da teorização da mise en scène, excessivamente ligada à noção de realismo, e mais especificamente a uma conexão entre as noções de realismo e classicismo, mostrou-se com o passar dos anos insuficiente na elucidação e devida apreciação da obra de Fleischer.

A partir do seu retorno à realização com Viagem fantástica, no ano de 1966, Fleischer assumirá e desenvolverá cada vez mais o lado intervencionista da realização cinematográfica. Num filme de ficção científica ainda mais voltado à fantasia que a sua adaptação de Jules Verne, o cineasta utiliza ostensivamente a ilusão óptica de modo a controlar cada milímetro do quadro CinemaScope de acordo com as necessidades de uma trama que convém perfeitamente à sua vocação de fabulista. Neste segundo momento da sua carreira, Fleischer nos faz perceber que não era tanto uma forma de realismo o que seu cinema contemplava; a minúcia na descrição das obsessões criminais e dos sentimentos tortuosos se abre ao fantástico tanto em um pequeno noir como O estrangulador misterioso (a cena em que na escuridão de um escritório policial o assassino ocupa o lugar do manequim confeccionado para auxiliar os policiais na sua busca sem que o detetive que investiga o caso perceba a diferença) quanto em um policial espetacularmente experimental como O homem que odiava as mulheres (as imagens dentro das imagens dando lugar, na parte final do filme, a uma descrição em que realismo e crueldade se tornam indissociáveis, o que sugere um movimento da forma analítica à forma sintética, uma fragmentação tão indecifrável na sua voracidade quanto a suposta imparcialidade universal do Estado). Entendemos que desde o início da sua obra Fleischer tratou de assimilar e absorver formas e estruturas que a mise en scène clássica rechaçava ou abolia, de modo que mesmo o realismo acaba tendo uma finalidade retórica no seu cinema, pois ele nos remete ao mundo apenas na medida em que se submete ao mundo do filme, num processo em que quanto mais relevo a presença do mundo e os componentes materiais que o constituem adquirem, mais explícita se torna a consciência que se articula no interior da construção do filme. Reiniciando sua obra, agora sob a inspiração de Georges Méliès, é natural que Fleischer tenha se dedicado, a partir dos anos 1960 e 1970, a projetos que estimulassem as suas capacidades de inventor de formas com mais interesse que aqueles em que era convocado pelas suas habilidades de narrador e profissional habituado a transformar produções de difícil gestação e execução em êxitos comerciais.

É, portanto, ao cinema de Jerry Lewis – e Stanley Kubrick, Sam Peckinpah, Mario Bava, Stanley Donen e alguns outros – que o de Fleischer deve ser vinculado na ocasião do seu retorno à realização cinematográfica: as obras desses autores, a partir de meados dos anos 1960, já não pendem mais para um cinema “clássico ao extremo, ou seja, exato, motivado, equilibrado, uma transparência perfeita através da qual a expressão nua encontra sua mais eficaz intensidade”[10], como puderam ser, ou puderam parecer, em outros momentos de suas carreiras. O fofoqueiro (The Big Mouth, 1967), 2001: uma odisseia no espaço (2001: A Space Odyssey, 1965-1968), Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch, 1969), Banho de sangue (Ecologia del delitto/Reazione a catena/A Bay of Blood, 1971) e Um caminho para dois (Two for the Road, 1967) são, como Viagem fantástica e O homem que odiava as mulheres, filmes em que a construção do universo visual já não se subordina primordialmente ao enredo ou às várias tramas de uma narrativa que visa justamente confundir as suas estruturas às do mundo, alquimia indispensável à materialização de uma imagem regulada pelo realismo e a verossimilhança. A transparência da mise en scène clássica não se concretiza nem tampouco é substituída por um sistema formal totalmente voltado à austeridade; contudo, a composição desses filmes já não se reduz mais às exigências do realismo, e isso faz com que todos os elementos – aqueles que, nas palavras de Lourcelles, cabe à mise en scène fundir, sintetizar, harmonizar – acabem adquirindo uma autossuficiência pela qual podem se manifestar como os instrumentos retóricos que são. Vemos o espetáculo, o mundo ou o espetáculo do mundo, mas agora os vemos através de formas (tipos de enquadramentos, conjuntos de cores, geometrias ressaltadas, os cortes e as associações e dissociações que estes possibilitam) cuja autonomia é impulsionada pelos próprios contornos da narrativa do filme, pelos vários episódios da sua trama, e assim reparamos como o filme se articula como um processo sistemático de construção de sentido. Através desses processos somos levados a distinguir os dispositivos pelos quais recebemos esses filmes, algo que podemos estender a outros filmes, a bem dizer a provavelmente todo e qualquer filme.


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A entrada do cinema narrativo e dramático na etapa da sua consciência retórica, que em alguns casos desenvolveu-se sob uma forma alegórica de autoconsciência (é o que ocorre com o trabalho cinematográfico de Jean-Luc Godard, por exemplo, e é de certa forma a isso que ele se refere na entrevista a Dick Cavett), passa por um fracionamento nos anos 1970 cujos efeitos se fazem notar ainda hoje por toda a produção cinematográfica. Fleischer, nesse momento, integra a sua inclinação para a exploração de novas estruturas formais às vertentes mais tradicionais do cinema de espetáculo hollywoodiano, as quais já havia explorado no passado. Uma nova atenção é destinada ao gênero policial, ao filme de serial killer, ao retrato social de uma classe ou uma época, mas estes se caracterizam, paradoxalmente, por um classicismo que tenta encontrar o seu lugar numa década que viu a dissolução tanto do conceito quanto da prática da mise en scène. Se até o início dos anos 1960 a continuidade espaço-temporal, a coreografia da materialidade, o realismo e a construção novelística foram seus principais suportes, nos anos 1970 vemos a consolidação de uma série de elementos introduzidos ainda na década anterior. O estranho que nós amamos (The Beguiled, Don Siegel, 1970-1971), Resgate de uma vida (The Grissom Gang, Robert Aldrich, 1971), Os dois indomáveis (Wild Rovers, Blake Edwards, 1971), Jogos de azar (The Nickel Ride, Robert Mulligan, 1974), Senza parole (Dino Risi, 1977) e A volta do pistoleiro (China 9, Liberty 37/Amore, piombo e furore, Monte Hellman, 1978) adotam uma estilização que depende tanto do realismo, com a sua reconstituição minuciosa de personagens, atmosferas e ambientes, quanto de uma acentuada gravidade crepuscular. O cinema de toda uma época chega à consciência de que o apogeu da mise en scène não passa de uma singularidade na curva do tempo das formas cinematográficas, e com esses filmes a ideia de classicismo passa a consistir das condições destrutivas que se aplicam à sua tomada de consciência. É nesse contexto que, junto com O estrangulador de Rillington Place e Mandingo – O fruto da vingança, Os novos centuriões deve ser visto como um dos mais importantes filmes dos anos 1970.

Ao avançarmos no conhecimento da obra de Fleischer percebemos ainda melhor do que nos filmes mencionados acima o desfecho da transformação pela qual o conceito de mise en scène passou em um período de duas décadas. Se, ainda nos anos 1950, em filmes como Sábado violento, O escândalo do século e Entre o céu e o inferno, Fleischer foi um dos principais precursores de um movimento que operou no filme narrativo a substituição da continuidade novelística (que se concentra na progressão da linha narrativa) pela romanesca (em que proliferam as conexões, as digressões que ressaltam as redes de estruturação da narrativa e levam ao esgarçamento do recorte dramatúrgico inicialmente proposto), ao final dos anos 1960 e no decurso dos 1970 ele termina por integrar tanto a descontinuidade, sob a forma de um trabalho de fragmentação de viés analítico na montagem, quanto uma maneira ainda mais rugosa e bruta de implicar a realidade, com tudo o que esta traz de concreto e material, ao domínio de exploração da mise en scène. Se Fleischer seguiu como um dos grandes praticantes da mise en scène cinematográfica durante todos esses períodos foi porque soube perceber, provavelmente melhor que qualquer outro cineasta hollywoodiano, a plasticidade do conceito, o qual passou, é certo, por uma série de deslocamentos que acabaram assimilados ao próprio desempenho da mise en scène em grande parte dos seus filmes. A redução de interesse pelas obras de cineastas como Fleischer, que se agrava a partir da segunda metade dos anos 1960 justamente entre os críticos que anteriormente as aclamaram, ocorre simultaneamente a uma quebra de paradigma na bibliografia crítica relativa à mise en scène. A curva do tempo das formas cinematográficas hoje nos permite notar como, ao menos da forma como foi narrada e mitificada, essa quebra se deu muito mais no discurso crítico suscitado pelos filmes do que nos próprios filmes. Se nos arriscarmos a acrescentar alguns itens aos “paradoxos” propostos por Daney, é preciso reconhecer que, a partir de Viagem fantástica, Fleischer aspirou, como Kubrick e Godard, como Jerry Lewis e Monte Hellman, a uma nova unidade, distinta daquela da mise en scène clássica por proceder de elementos heterogêneos (Hollywood, Europa, classicismo, vanguarda, cinema mudo, experimentais), os quais terminariam por se integrar em todos os níveis de cada filme de maneira similar à da mise en scène clássica. Na maioria das vezes o que foi visto, em relação aos conceitos de classicismo e mise en scène, como um “passo adiante” da parte de muitos cineastas foi na realidade um recuo, uma tentativa de apreender as inúmeras propriedades do cinema como em um ensaio, com o fim de organizá-las uniformemente em um esquema atualizado (já não era isso o que Ray, Brooks, Mann e Aldrich faziam em 1955 ao tentar, nas palavras de Rivette, “reatar abertamente com a tradição de 1915, a de Griffith e da Triangle” e “reencontrar uma certa largueza dos gestos, uma exteriorização mais rústica e mais espontânea dos sentimentos”?). Aquilo que foi chamado consecutivamente de “crise da mise en scène” (segunda metade dos anos 1960, primeira dos 1970), “maneirismo” (anos 1980), “filme-dispositivo” (segunda metade dos anos 1990, primeira dos 2000) e “cinema de fluxo” (segunda metade dos anos 2000 em diante) corresponde fundamentalmente a uma única ideia, decorrente de um único interesse diante das mesmas inquietações: são as respostas que o cinema narrativo deu às questões insinuadas ou estabelecidas pelas experimentações das décadas anteriores. A própria mise en scène, tal como foi pressentida e formulada nos anos 1950, nada mais foi que um estágio na compreensão e na formulação da escala das propriedades formais do cinema, que a todo momento engloba inúmeros elementos individualizados e frequentemente opostos. Uma vez dogmatizada, tornada um mito, um absoluto, a mise en scène só podia acabar destruída pelas mesmas vozes que a exaltaram nos seus primórdios. Quanto aos seus principais praticantes (Fleischer, Donen, Lewis, Edwards), estes seguiram deslocando o absolutismo do seu mito, incorporando corpos, elementos e procedimentos que no passado puderam parecer alheios à “economia de meios” e aos “movimentos sem mistério” da mise en scène clássica – finalmente livre, após anos de hegemonia, para aceitar as aparentes contradições de que Jacques Lourcelles falava no ano de 1964.

Assim, por exemplo, mantendo o distanciamento e a objetividade da continuidade romanesca, Os novos centuriões caracteriza-se por um ritmo fragmentário, sinuoso, relaxado e imprevisível, semelhante ao de um periódico ou um relatório policial, de toda forma absolutamente distinto do laconismo e da clausura do film noir. Permanece a mirada expansiva de Vikings, os conquistadores e Sábado violento, que absorve tudo tanto na profundidade quanto na proximidade, mas os meios narrativos e técnicos de se obtê-la são outros: o cineasta pode agora recorrer às lentes zoom, à foto dessaturada, ao som hipersaturado, às locações realistas longe dos estúdios e às externas noturnas granuladas para fazer com a estrutura romanesca aquilo que Mondrian havia feito com o abstracionismo. Não se trata apenas de uma alteração na abordagem visual do filme: o tempo das cenas e a própria estrutura da construção narrativa parecem derivar da mesma ambição de ressaltar a autonomia das partes em detrimento da organização geral do filme. A invisibilidade dá lugar à abrangência, a transparência à desagregação. Por boa parte de Os novos centuriões tem-se a impressão de que Fleischer demonstra que não consegue ou não pode mais fazer a mise en scène clássica, e deste modo o filme pode ser visto como a verificação obstinada desse revés. Mas numa cena como a do suicídio da personagem interpretada por George C. Scott, Fleischer nos mostra o exato oposto: ele faz mise en scène o quanto quer e quando quer, o que leva a uma articulação completamente retórica do realismo (“isto é um plano-sequência de longa duração, e se alongará até o fim da agonia que vivemos com esta personagem”). Desse modo, submetida a uma forma que deve mais à fragmentação analítica que à fluidez sintética, integrando tudo o que não fazia parte da sua técnica para permanecer factível, a mise en scène deixa de ter poder próprio, deixa de ser um absoluto, uma imanência. Ela pode, enfim, conjugar-se, assimilar e ser assimilada a outros modos de composição, a outras propriedades formais do cinema. Nesse sentido, Richard Fleischer é o cineasta a quem devemos o elo entre Kenji Mizoguchi e Brian De Palma.




Jacques Lourcelles é perspicaz, como de hábito, quando fala de classicismo a respeito de Os novos centuriões. Exceto que esse classicismo já não é mais o de Sábado violento e Barrabás, e sim o de uma verdadeira retórica da mise en scène, um novo classicismo em que a técnica, os meios empregados e os instrumentos que garantem a sua expressividade dissecam, interrogam, refratam o realismo pelo prisma da linguagem. Agora desestabilizado do seu jugo de outrora, relativizado pela consciência da obra, ou em obra, o realismo desponta em filmes nos quais aparece como que rasurado, dotado de questionamentos, perturbando os dados categóricos e intensificando as zonas mais tumultuadas e enigmáticas das narrativas, esbarrando por vezes em alguns fantasmas do seu classicismo de outrora. Ele hoje vive os seus segredos e o seu mistério em meio a essas manifestações erráticas, admitindo ao mesmo tempo as coisas e os ruídos que estas absorvem na passagem da representação para o fílmico, reencontrando a sua magia nesse intervalo entre a imanência e a sua filmagem, esse “outro lado” pelo qual o próprio André Bazin reconhecia, afinal de contas, que “o cinema é uma linguagem”. Em Os novos centuriões encontramos, ainda no seu estado embrionário, o classicismo de Michael Cimino, de James Gray, de Amargo reencontro (Big Wednesday, John Milius, 1978), Shan zhong zhuan qi (King Hu, 1977-1979), A bruma assassina (The Fog, John Carpenter, 1979-1980), Minha estrada, minha vida (Honeysuckle Rose, Jerry Schatzberg, 1980), Impacto fulminante (Sudden Impact, Clint Eastwood, 1983), A marca da corrupção (Best Seller, John Flynn, 1987), A vida e nada mais (E a vida continua...) (Zendegi va digar hich, Abbas Kiarostami, 1991-1992), O pagamento final (Carlito’s Way, Brian De Palma, 1993), Fogo contra fogo (Heat, Michael Mann, 1995), Tropas estelares (Starship Troopers, Paul Verhoeven, 1997), Flores de Xangai (Hai shang hua, Hou Hsiao-hsien, 1998), As coisas simples da vida (Yi yi, Edward Yang, 1999-2000), Corpo fechado (Unbreakable, M. Night Shyamalan, 2000), Prazeres desconhecidos (Ren xiao yao, Jia Zhang-ke, 2002), Voando com uma asa só (Thani Thatuwen Piyambanna, Asoka Handagama, 2002), O sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream, Woody Allen, 2007) e À aventura (À l’aventure, Jean-Claude Brisseau, 2008), entre tantos outros.


Notas:


[1] A French Roman. A Story About the Influence of Soviet Avant-Garde on Cahiers du Cinéma and the Later Rediscovery of Nicholas Ray. An Interview with Bernard Eisenschitz” – entrevista com Bernard Eisenschitz, por Fernando Ganzo, Comparative Cinema vol. 1, n.º 2 (Forms in Revolution), 2013.

[2] Michel Mourlet, “Sur un art ignoré”, Cahiers du cinéma n.º 98, agosto de 1959, pp. 23-37.

[3] Jacques Rivette, “Génie de Howard Hawks”, Cahiers du cinéma n.º 23, maio de 1953, pp. 16-23.

[4] Qui naquit à Newgate...”, Cahiers du cinéma n.º 33, março de 1954, pp. 57-60.

[5] Mizoguchi vu d’ici”, Cahiers du cinéma n.º 81, março de 1958, pp. 28-30.

[6] Qu’est-ce-que la mise en scène?”, Cahiers du cinéma n.º 100, outubro de 1959, pp. 13-16.

[7] “L’âge des metteurs en scène”, Cahiers du cinéma n.º 31, janeiro de 1954, pp. 45-48.

[8] “Notes sur une révolution”, Cahiers du cinéma n.º 54, Natal de 1955, pp. 17-21.

[9] Rencontre avec Richard Fleischer”, Cahiers du cinéma n.º 186, janeiro de 1967, p. 16.

[10] Michel Mourlet, op. cit.

 

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