BARRABÁS
(Barabbas). 1961. Columbia Pictures (137 minutos). Produção: Dino De Laurentiis para a Dino De Laurentiis Cinematografica. Produtor associado: Luigi Luraschi. Assistente do gerente de produção: Bud Spencer (não creditado). Roteiro: Christopher Fry, Nigel Balchin (não creditado), Diego Fabbri (não creditado), Ivo Perilli (não creditado), Salvatore Quasimodo (dialoguista da versão italiana – não creditado), baseado na novela homônima de Pär Lagerkvist. Fotografia: Aldo Tonti (Super Technirama 70 mm., Technicolor). Música: Mario Nascimbene. Cenografia: Mario Chiari (a.d.), Maurizio Chiari (s.d.). Montagem: Raymond Poulton, Alberto Gallitti (não creditado). Elenco: Anthony Quinn (Barrabás), Silvana Mangano (Raquel), Arthur Kennedy (Pôncio Pilatos), Katy Jurado (Sara), Harry Andrews (Pedro), Vittorio Gassman (Sahak), Norman Wooland (Rufio), Valentina Cortese (Julia), Jack Palance (Torvald), Ernest Borgnine (Lucius), Arnoldo Foà (José de Arimatéia), Michael Gwynn (Lazarus), Laurence Payne (discípulo), Douglas Fowley (Vasasio), Guido Celano (Scorpio), Enrico Glori (homem importante na flagelação), Carlo Giustini (oficial), Gianni Di Benedetto (oficial), Robert Hall (comandante dos gladiadores), Rina Braido (foliã na taverna), Nando Angelini (folião na taverna), Tullio Tomadoni (cego), Joe Robinson (gladiador), Frederich Ledebur (oficial), Marcello Di Martire (homem na mina), Spartaco Nale (supervisor), Maria Zanoli (mendiga), Gustavo De Nardo (segundo homem na rua dos oleiros), Vladimiro Picciafuochi (superintendente na mina), Sharon Tate (patrícia na arena – não creditada).
E logo em amanhecendo tiveram conselho os Sumos Pontífices com os Anciãos, e com os Escribas,
e com todo o Concílio; e amarrando a Jesus, (o) levaram, e entregaram a Pilatos.
[...] E na (data da) festa lhes soltava um preso, qualquer que lhes pedissem.
E havia um chamado Barrabás, preso com (outros) amotinadores,
que em um motim uma morte haviam cometido.
E a companhia, dando gritos, começou a pedir, (que fizesse) como sempre lhes tinha feito.
E Pilatos lhes respondeu, dizendo: Quereis que vos solte ao Rei dos Judeus?
(Porque bem sabia ele, que por inveja o entregaram os Príncipes dos Sacerdotes).
Mas os Príncipes dos Sacerdotes incitaram à companhia, que lhes soltasse a Barrabás.
E respondendo Pilatos, disse-lhes outra vez: Que pois quereis que faça do que chamais Rei dos Judeus?
E eles tornaram a clamar: Crucifica-o.
— Marcos, XV: 1-13
I’m not used to the light. It plays tricks.
— Anthony Quinn, no filme
O Barrabás de Richard Fleischer é de 1961, altura em que “Hollywood perdeu a sua centralidade, em que perdeu o direito a ocupar a posição central no cinema e tem que reconhecer que há outro centro, o de Roma”, como disse Chris Fujiwara em Locarno, na mesa-redonda dedicada à produtora e distribuidora Titanus, da família Lombardo. João Bénard da Costa (quem mais?) resumiu muito bem esse forçado reconhecimento e esse forçado êxodo norte-americano no seu enorme texto sobre a vida e obra de Nicholas Ray (Da vida e obra de Nicholas Ray), mesmo a abrir o catálogo de 1981 dedicado ao cineasta: “foi por esses anos que a United Artists se tornou ‘propriedade pública’; que a Paramount abriu os seus estúdios às produções independentes, diversificando a ação com a criação da Paramount Sunset Corp.; que mais de 235.000 ações da M.G.M. e de 322.000 da Fox foram adquiridas por companhias não-cinematográficas e que as grandes companhias de seguros (nomeadamente a Prudential) passaram a controlar alguns dos majors. Em 1961, o déficit da Fox atinge a quantia astronômica de 22 milhões de dólares.
“A tentativa de resposta é a coprodução com países europeus ou filmagens no estrangeiro, em estúdios edificados na Itália, na Grécia, no Norte da África, na Espanha. A grande vantagem estava em que dois terços das receitas obtidas por esses filmes eram isentas de imposto. O que permitiu (só no período de 1957-1960) que as receitas anuais dos majors fossem no estrangeiro de 300 milhões de dólares por ano. A partir de 1956, as grandes superproduções são praticamente todas filmadas na Europa, com aposta crescente em novos e mais gigantescos formatos: os 70 mm., o Super Technirama.
“Se assim iam as coisas para a indústria, para a arte não iam melhor. Entre 1957 e 1962 terminaram as carreiras da maior parte dos grandes veteranos de Hollywood (Berkeley, Borzage, Clarence Brown, Capra, Cromwell, Curtiz, DeMille, Dwan, Henry King, Mamoulian, Leo McCarey, Milestone, Sternberg, Charles Vidor, King Vidor, Walsh, Wellman etc. – e só estou a citar os principais) e morreram Bogart (1957), Ronald Colman (1958), Tyrone Power (1958), Errol Flynn (1959), Clark Gable (1960), Gary Cooper (1961), Marilyn (1962).
“À Europa regressaram Fritz Lang, Dieterle, Siodmak, Douglas Sirk, Edgar Ulmer – os mais famosos imigrantes de 20 anos atrás –, e nenhum deles voltaria a filmar em Hollywood. E, da geração de Ray, uns, como Anthony Mann ou Robert Aldrich, fixavam-se na Europa; outros, como Boetticher ou Fuller, ficariam à margem cerca de 20 anos; outros ainda, como Welles ou Odets, nunca mais voltariam a filmar em Hollywood. Em todos os sentidos, era o fim de uma era”.
A citação foi muito longa, mas dá uma ideia do que acontecia em Hollywood nesses anos e, particularmente, a Richard Fleischer. Também ele, a partir de 1956, passa a filmar mais no estrangeiro. No México (O bandido, com Robert Mitchum), nas Filipinas (Entre o Céu e o Inferno, com Robert Wagner), na Noruega (Vikings, os conquistadores, com Kirk Douglas, Tony Curtis e Janet Leigh), na Irlanda e na Costa do Marfim (A grande cartada, com Stephen Boyd e Juliette Gréco). Não era de estranhar que se seguissem a Itália e Dino De Laurentiis. Mas se não bastou a citação, o grande (enorme, extraordinário, maravilhoso) A cidade dos desiludidos (Two Weeks in Another Town, Vincente Minnelli, 1962), não fala doutra coisa (e em Locarno, Chris Fujiwara também dele não pôde deixar de falar): egos feridos, contratos irreversíveis, facadas nas costas, estrelas mimadas, cadentes e decadentes, talentos desperdiçados, oportunidades perdidas, tudo nessa (e por causa dessa) Itália transformada em savana, pintada a luzes vermelhas e verdes e animada a movimentos desesperados e desenfreados pela noite e pelas estradas de Roma, escadas acima para onde está a fatalíssima Cyd Charisse, melhor com uns copos em cima para ganhar coragem e voltar a encarar esse muro que há três anos não se conseguiu transpor e também não se conseguiu tirar da cabeça. Esse muro intransponível que pode levar tantos outros nomes. Assim é o Kirk Douglas de cicatriz na cara neste Minnelli de 1962.
Mas é de Richard Fleischer, esse “grand Hollywoodien”, como lhe chamou Jacques Lourcelles, que se tem de falar. Por essa altura, tinha já feito Filhos do divórcio e Banjo, com a adorável e sincera Sharyn Moffett, que aprendeu tanto com os adultos como os adultos com ela, nesses dois filmes feitos com grande ternura. Banjo toca particularmente; pelo menos cinco grandes noirs para a R.K.O. (Crime da estrada, O estrangulador misterioso, O cerco, Império do terror e Rumo ao Inferno), executados cientificamente, o que quer dizer filmados mostrando personagens e os seus mundos e a maquinação desses mundos sem que jamais questionemos o seu encadeamento, cúmulo da arte da descrição. Claro, racional e didático, não só em relação ao que mostra como também a como o mostra (e ainda estou para ver e estudar como foi possível tê-lo conseguido em filmes de apenas uma hora); dois divertimentos muito adultos e muito cínicos produzidos por Stanley Kramer (Era uma vez uma herança e O amor, sempre o amor); e quatro filmes colossais: O escândalo do século, Entre o Céu e o Inferno, Vikings, os conquistadores e Fama a qualquer preço... O Scope que tudo engloba, da montanha mais alta ao mar mais distante, na aventura de gente que se larga por esse mundo afora, podendo perder quase tudo mas encontrando-se a si mesma pelo caminho. Para “learn to live and learn to love”, como diz a canção de Fama a qualquer preço. E mais não posso escrever, senão já me perdia lá para os lados de O homem que odiava as mulheres, Causa perdida, Tora! Tora! Tora!, A última fuga, Os novos centuriões, No mundo de 2020 e Mandingo – O fruto da vingança.
Barrabás, então. Sem créditos e depois do logo da Columbia Pictures, a música de Mario Nascimbene (colaborador de Rossellini e Zurlini e que para Fleischer fez também a belíssima banda sonora de Vikings, os conquistadores) apresenta Arthur Kennedy no seu percurso pelo topo das escadas para encenar o que na Bíblia Sagrada se conta do amotinador Barrabás. Os versículos em epígrafe e que vêm do Evangelho segundo Marcos. A seguir, os créditos e o Barrabás de Anthony Quinn na sua cela, na escuridão, a antever esse outro aprisionamento, não-físico, mas que também no corpo se acaba por sentir. O Pilatos de Arthur Kennedy ordena a condenação e a crucificação por vontade da massa de gente reunida na praça nesse dia e seguem-se imagens das mais inquietantes e desoladoras construídas por Fleischer (com a ajuda de Aldo Tonti), as da fustigação de Jesus Cristo, escuras e densas, vermelhos terríveis, breus espinhosos, mãos sem cor atadas a esse poste dos mil castigos a que o Cristo de quem nunca vemos a cara depois se encosta. E Barrabás é libertado. E hão-de o lembrar sempre, ao longo de longos anos, que em vez Dele foi Barrabás libertado...
A crucificação e as dores do Caminho do Calvário, sempre em segundo plano, a face de Jesus ofuscada pela luz brilhante que tanto confunde Barrabás (“When the light shone, you wouldn’t accept it”, dizem-lhe mais tarde) e vemos e sentimos tudo isso pelo caminho e descidas muito semelhantes de Barrabás e pelos olhos que denunciam o que lhe vai na consciência. A luz e a escuridão. É comum falar-se disso a respeito de filmes e do cinema, mas difícil é fazê-lo força viva e dínamo que potencializa a ação, indissociável dela tanto em coisas simples, como as brechas de luz em cavernas, celas e minas (quais abutres, a sondar Barrabás, o assassino), como o milagre absoluto desse raro eclipse captado pela câmera de Fleischer e Aldo Tonti, que faz Katy Jurado dizer, “I’ve never known dark like this in the middle of the day.” Esse dia que nunca mais ninguém esquecerá e cuja lembrança fará Barrabás ter vida anormalmente longa e ditar inconscientemente o seu destino, tentando decifrar os desígnios e os desejos do Senhor (“Why can’t God make Himself plain?”). Até confundir a Luz com o fogo e louco e iludido tentar incendiar Roma e o velho mundo. (“God. You won’t find me failing this time.”) E vai sobrevivendo, e se a isso sobreviveu já nada o mata e vê morrer um, e dois, e três dos condenados a trabalhos forçados que os romanos lhe vão acorrentando aos pés. E continua a sobreviver, porque se àquilo sobreviveu já nada o mata e vence o gladiador que três vezes tinha sido libertado pelos romanos e só pela espada de Barrabás perece. “I tried to believe”...
Há esse amarelo ou sépia das poeiras de Jerusalém, tom dominante da fotografia do filme, há esse encontro sobrenatural e estrondoso com o Lázaro que como Barrabás foi salvo pelo Senhor. Há a Rachel de Silvana Mangano tocada pela graça divina e apedrejada até a morte, há o Sahak de Vittorio Gassman que forja os sinais verdadeiros nos versos das medalhas romanas que os assinalam a todos como propriedade de Roma. Há esse misteriosíssimo Lucius de Ernest Borgnine que baralha a consciência de Barrabás com enigmas e o faz perder-se na escuridão de túmulos e grutas no submundo. E há o Pedro de Harry Andrews que, nessa cela, perto do fim do filme, passados 20 anos sobre o último encontro deles, adensa o mistério e dá a Barrabás (a nós, também) uma resposta às suas perguntas e inquietações mas sobretudo um vislumbre dessa Luz que poucos veem, pista de que há algo que nos é superior, nos quadros vivos que são esses últimos planos de conjunto. Palavras sobre embates no espírito, para trás e para a frente, o amor do Senhor, de começos e Reinos futuros. “It is the end of the day. We shall trust ourselves to a little pain... and sleep. Saying to the world: Godspeed”.
Diz quem viu o filme em 70 mm. que ficou convertido. Espero um dia ver luz igual... |
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