EDITORIAL



Conta-se que, no final dos anos 1930 na Europa, um homem foi até o palco em que se apresentava regularmente e começou ali a sua performance, até ser interrompido por soldados. Durante a guerra, o lugar permaneceu fechado. Com o fim do conflito, o teatro foi reaberto, o homem voltou ao palco e se dirigiu à plateia: “Como eu ia dizendo...”

Seis anos se passaram desde a última edição da Foco. Nossa interrupção não foi violenta e repentina, mas implicou, como naquela história, a tentativa de dar continuidade a um trabalho após mudanças significativas.

Em 2015, o número dedicado a Jean-Claude Brisseau representou, sem que o soubéssemos naquele momento, uma espécie de saturação do formato que vinha sendo desenvolvido desde 2009. Nesse período, a revista publicou dossiês sobre diversos realizadores e críticos. Havia uma preferência clara por um cinema narrativo baseado em convenções dos gêneros industriais, bem como por tradições críticas que se dedicaram ao seu elogio e à sua interpretação. Em cada uma das pautas, buscava-se defender certos nomes e disponibilizar acerca deles uma bibliografia. Junto a isso, havia uma resistência a algumas noções sobre a contemporaneidade, em especial o tratamento quase exclusivo da produção corrente e os debates que dele resultavam. Essas linhas culminaram na edição mais longa até então, em cujo prefácio declaramos que “não se trata, para nós, de permanecer na superfície, restritos ao cinema que se faz hoje, e sim de prosseguir com uma ação em profundidade, ou seja, lidar com todo o cinema feito até hoje”.

Para uma crítica marcada pela tomada de posição frente ao presente e voltada a um conjunto restrito de filmes, esses termos não poderiam senão levar a contradições. Foi a necessidade de confrontá-las, de avaliar os ganhos da revista de modo a dar continuidade à sua proposta, que nos tomou os anos seguintes. Na edição atual, aquela declaração fez as vezes de um horizonte. Isso exigiu, acima de tudo, uma redefinição de nossa postura e uma ampliação de nossas referências.

Entre as pautas desta edição, a terceira – “As duas vanguardas” – é a que reflete mais diretamente este processo. Inspirada em textos de Annette Michelson e Peter Wollen, ela surge como a moldura de um interesse pelo cânone do cinema experimental, por seus debates e suas diferenças em relação a um cinema mais ligado à narrativa. As vanguardas do título, originadas na Europa e nos Estados Unidos a partir dos anos 1950, alinhadas em grande parte com as revistas Cahiers du cinéma e Film Culture, nos levaram a tradições com premissas radicalmente opostas, em que a criação e o pensamento se deram de maneira intensa, com resultados valiosos e que permaneceram incontornáveis nas décadas seguintes. Essa verdadeira encruzilhada de filmes e textos se tornou, ao longo dos últimos anos, nossa via de acesso a problemas que envolvem justamente a extensão do domínio considerado pela crítica. Serviu, com isso, para expandir o escopo da revista, sem ignorar as tensões decorrentes dessa empreitada. Serviu ainda para dialogar com autores cuja obra admiramos e que exemplificam o caráter produtivo dessas tensões: nomes como Adriano Aprà e Fred Camper, atuantes nas duas frentes e presentes aqui tanto em colaborações originais, traduções de artigos passados ou em entrevista inédita, como no caso de Aprà. A introdução e documentação desse conjunto, novo para a Foco, e sua exploração subsequente, compõem a estrutura da pauta: na primeira seção, trazemos os materiais que nos guiaram neste quadro, e que são representativos de sua história; e na segunda, as incursões que realizamos, desde visões panorâmicas até contrapontos e estudos de caso.

Outro aspecto foi também desenvolvido. Trata-se de uma aproximação com a pesquisa acadêmica, que toma as ligações entre os textos como algo a ser tratado explicitamente, a ser posto no centro das discussões. Se é verdade que a Foco teve, desde o início, um interesse pela coleta e tradução de artigos, por um recorte bibliográfico em torno dos filmes, é igualmente verdade que isso foi acompanhado por uma abordagem indireta desse material. Em decorrência do estudo das vanguardas, e do próprio corpo de redatores, uma tendência à organização mais consciente da fortuna crítica e mais preocupada em tornar visíveis os fios interpretativos permeou vários textos, desde as pautas até o Jornal. Uma consequência foi que, junto de uma apreciação que reflete o entusiasmo cinéfilo e de comentários mais voltados à experiência particular de certos filmes, incluímos agora uma série de leituras mais amplas ou teóricas que podemos chamar de “morfologias históricas”. São textos com uma visão transversal da história, mais atentos ao que das formas cinematográficas parece delinear uma evolução própria, o que atravessa épocas e continentes e permite uma certa amplitude do olhar, para além da cronologia. Consideramos este, cada vez mais, um caminho relevante a ser tomado pela escrita sobre o cinema, e procuramos investigá-lo ao mesmo tempo em que mantivemos as modalidades já exercitadas previamente.

Também por isso, foi importante trazer dossiês concentrados em cineastas que poderíamos ter destacado no passado. Sergio Sollima e Richard Fleischer compartilham com pautas anteriores uma série de características, mas inseridos em um novo contexto – reconhecendo a questão das vanguardas e de outros modos de escrita –, devem ser vistos por ângulos distintos. Em ambos, foram as relações entre o impulso criativo e as circunstâncias industriais em que trabalharam, e a reação à passagem do cinema a uma era moderna, que se revelaram os temas recorrentes. Sollima, iniciando a carreira como crítico num período em que o neorrealismo já havia se firmado na Itália, absorveu as convenções narrativas e as adaptou num esforço de aliar a condição de espetáculo do cinema à reflexão sobre a história. Fleischer, por sua vez, estreando como diretor no pós-guerra, esteve no seio da indústria hollywoodiana por mais de quatro décadas, acompanhando as transformações do ambiente a ponto de se tornar um paradigma de adaptação profissional, operando nos mais variados gêneros e elaborando dentro deles a sua visão pessoal. No decorrer da edição, e sobretudo no Jornal, os textos foram dispostos ao redor desses e de outros tópicos, por combinação, por analogia e por outros métodos comparativos. Mais do que a coexistência, buscamos o cruzamento dessas questões.

Seis anos foram, portanto, necessários para consolidar essas mudanças. No mesmo intervalo, outras transformações aconteceram no meio crítico. A mais aparente talvez seja a diminuição das revistas online, senão em número, ao menos em presença nos debates. O modelo que em 2009 parecia ter alguma centralidade, a partir de 2015 já se via acompanhado de outros formatos, em geral menos receptivos a uma escrita de fôlego – para isso, muitos viram na universidade o lugar mais adequado. Paralelamente, o aumento do acesso digital a filmes e textos gerou uma profusão de conteúdos, em sua maioria dispersos e pouco contextualizados. O resultado é um cenário que, por um lado, é instigante em sua heterogeneidade, e por outro, é quase vertiginoso em sua fragmentação.

Diante disso, apresentamos um esboço do que nos parece desejável no presente. Esta edição é uma nova aposta no formato da revista online, na liberdade e no rigor por ele permitidos, no seu aspecto internacional e na sua capacidade de absorver a variedade de objetos disponíveis. É uma tentativa de equilíbrio em meio às possibilidades do quadro atual, de compensar ou atenuar a desorientação frequente nos meios digitais, apresentando ao leitor outras coordenadas que não as jornalísticas e acadêmicas. É, finalmente, a busca por um olhar mais paciente e menos combativo, que possa servir aos entusiastas e estudiosos do cinema para além do momento da publicação. Se há algo como uma postura defendida hoje pela Foco, ela não se caracteriza pela predominância do juízo de valor, mas por um interesse pelo espaço mesmo em que os juízos podem ser confrontados: menos a proposição de um critério, e mais o reconhecimento do valor parcial de critérios às vezes implícitos ou contrastantes. É por esta via que tentamos agora realizar a “ação em profundidade” que declaramos no último número, e que apontaria para “todo o cinema feito até hoje”. Mapear a totalidade do cinema é tão impossível quanto ignorar a amplitude desse campo; por isso, encaramos o papel do crítico como o do metahistoriador definido por Hollis Frampton, alguém cujos itinerários visam a “inseminar coerência ressonante no campo crescente de sua arte”. Não por acaso, retornamos tantas vezes a Jean-Luc Godard, uma das várias pontes entre o cinema clássico e o moderno, que tem afinidades significativas com Frampton, e que hoje é um dos últimos representantes de uma época e de seus projetos de vanguarda.

Este trabalho é também uma homenagem a críticos e cineastas dessa mesma geração que nos deixaram ao longo desses anos: André S. Labarthe, Andrea Tonacci, Annette Michelson, Bertrand Tavernier, Dominique Noguez, Gene Youngblood, Gilberto Perez, Jacques Rivette, Jean-Claude Brisseau, Jean Douchet, Jonas Mekas, Ken Kelman, Michel Delahaye, Monte Hellman, Peter Wollen, Philippe Demonsablon, Pierre Rissient e Vladimir Petrić. Alguns haviam sido tratados pela revista no passado, outros foram cruciais para o desenvolvimento deste número, e outros talvez sejam referências para o futuro. São todos exemplos a serem reconhecidos, cujas obras demandam releituras e revisões, para que a reflexão a partir delas e a comunicação entre elas tenha continuidade. Nesta tarefa, acreditamos dar uma pequena contribuição.

Esta edição foi possível apenas devido aos colaboradores que sustentaram e amplificaram as questões aqui colocadas. Para que elas tenham desenvolvimento, a leitura e discussão constituem etapas igualmente fundamentais. Nosso próximo passo, independente de qual seja, deve surgir neste diálogo.

 

VOLTAR AO ÍNDICE

 

 

2016/2021 – Foco