ELOGIO DA FUGA
CORRE HOMEM, CORRE (Corri uomo corri). 1968. Mancori-Chrétien (120 minutos). Produção: Alvaro Mancori, Anna Maria Chrétien. Produção executiva: Aldo Pomilia. Roteiro: Sergio Sollima e Pompeo De Angelis, baseado em argumento de Sergio Sollima. Fotografia: Guglielmo Mancori (Cromoscope, Eastmancolor – Tecnostampa). Música: Ennio Morricone (não creditado), Bruno Nicolai. Cenografia: Franco Cuppini (a.d.). Montagem: Tatiana Casini Morigi. Elenco: Tomas Milian (Manuel “Cuchillo” Sanchez), Donal O’Brien (Nathaniel Cassidy), Linda Veras (Penny Bannington), Chelo Alonso (Dolores), John Ireland (Santillana), Marco Guglielmi (coronel Michel Sévigny), José Torres (Ramirez), Edward Ross (Jean-Paul), Nello Pazzafini (Reza), Gianni Rizzo (prefeito Christopher Bannington), Dan May (Mateos Gonzalez), Umberto Di Grazia (José), Noé Murayama (Pablo), Attilio Dottesio (Manuel Etchevaria), Orso Maria Guerrini (Raul), Federico Boido (Steve Wilkins), Calisto Calisti (Fernando Lopez).
Corre homem, corre é o título do terceiro e último western realizado por Sergio Sollima, em 1968. É também uma exclamação que assume um valor programático, podendo assim se aplicar a muitos heróis do metteur en scène romano. Cuchillo, “Beauregard” Bennet, Jeff Heston, o assassino afastado dos trabalhos em Cidade violenta, a dupla improvável de Os raptores em ação, Sandokan e o Corsário Negro, até mesmo os antinazistas de Berlin ’39 – Sexo, poder e traição. Todas essas personagens estão em movimento, um movimento que não escolheram, mas que se tornou indispensável pelo desencadeamento das forças da destruição, as quais representam ameaças mortais pelas suas próprias existências. Uma leitura um tanto apressada dos filmes de Sergio Sollima pode interpretar essas forças como forças de reação: poder colonial, exército, polícia, organizações mafiosas, capitalismo exacerbado. A bem-dizer elas de fato o são, e o público popular do fim dos anos 1960 não se enganou ao transformar uma personagem como a de Cuchillo em um ícone revolucionário não muito distante de Che Guevara, ou uma personagem como a de Sandokan (encarnada pelo ator indiano Kabir Bedi, rara estrela internacional não-ocidental como Bruce Lee) em símbolo do Terceiro Mundo em revolta. Sollima propõe dessa forma figuras heroicas atípicas de forte carga simbólica e política. Os duelos de Cuchillo armado com a sua faca contra os seus antagonistas de armas modernas são a tradução cinematográfica dessas lutas desiguais entre o Norte e o Sul. Mas seria uma pena se limitar a esta leitura de tipo “luta de classes”. Como seus colegas mais talentosos, Sollima é ao mesmo tempo mais matizado e mais radical. Matizado porque às forças contrarrevolucionárias ele não opõe uma revolução idealizada conduzida por sabe-se lá qual Zorro, mas uma outra forma de violência igualmente temível para o herói, frequentemente pego no fogo cruzado em que o maior perigo pode vir do interior, como para Beauregard ou Sandokan. Mais radical porque, no fundo de si mesmos, seus heróis são antes de tudo individualistas, em luta contra todos os sistemas.
As personagens de Sollima também fogem de alguma coisa dos seus passados, de alguma coisa que têm dentro de si mesmas e que suas aventuras as obrigarão a afrontar. Suas fugas face às figuras de opressão também comportam uma fuga pessoal face às suas responsabilidades, social quando se trata de suas relações com as mulheres e com a família, e o que poderíamos qualificar de moral ou de ética quando se trata de suas relações com os seus semelhantes, com esse povo do qual descendem, e com o dinheiro. Esta dupla fuga é, portanto, alicerçada por uma evolução da personagem rumo a uma tomada de consciência e a aceitação de responsabilidades, pessoais ou coletivas, evolução que nem sempre é sem dor (o assassinato da criança em Quando os brutos se defrontam), mas que ocasionalmente pode se resolver por uma pirueta cômica como na relação entre Cuchillo e sua explosiva noiva, Dolores, interpretada pela vulcânica cubana Chelo Alonso em Corre homem, corre.
O que há de interessante nos filmes de Sollima é que essa evolução é acompanhada por outra, a de uma personagem que acompanha a fuga do herói, personagem que às vezes faz parte do grupo dos perseguidores. São ocidentais, pontos de referência para o espectador europeu ou americano, como o Nathaniel Cassidy interpretado por Donal O’Brien em Corre homem, corre, Lady Marianne Guillonk, interpretada por Carole André, em Sandokan, o xerife Corbett interpretado por Lee Van Cleef em O dia da desforra ou Siringo, interpretado por William Berger em Quando os brutos se defrontam. Em Quando os brutos se defrontam, o mais teórico dos seus westerns, é ainda mais interessante o fato de que Sollima põe em cena um intelectual, o professor Brett Fletcher encarnado por Gian Maria Volontè, cuja evolução transcorre ao inverso da de Beauregard, rumo a uma depravação pela violência e uma falência moral completa.
Esse tema da fuga condiciona a mise en scène de Sergio Sollima e dá uma grande coerência a uma obra que comporta apenas uma quinzena de títulos. O travelling é a sua figura de estilo favorita, e a fuga de Cuchillo na plantação de trigo, o massacre no deserto em Quando os brutos se defrontam, a impressionante perseguição automobilística que abre Cidade violenta, que vale bem as de Mad Max (George Miller, 1977-1979) e as das suas sequências, são as diversas passagens marcantes no seio de um trabalho rigoroso sobre o quadro, o qual confere uma beleza clássica aos filmes de Sollima, menos barrocos que os de Leone ou Corbucci. Pouco interessado pela experimentação formal, o realizador acompanha o movimento geral com suas hesitações, acelerações, pausas, laços, e organiza as confrontações em ajustes de profundidade de campo, de quadros no interior do quadro e de movimentos rápidos que fazem evoluir a leitura de uma mesma imagem, desvelando em várias etapas os diferentes elementos que a compõem, como, por exemplo, uma personagem que observa a outra ou que se esconde atrás de um rochedo. Sollima é um mestre dessas imagens compartimentadas que desempenham um suspense dosado com zelo. As narrativas, nas quais Sollima se implica a si mesmo com frequência, são construídas por ricochete, de um décor a outro, por mudanças de local às vezes brutais, esposando tanto a perseguição da qual o herói é o objeto quanto as armadilhas e emboscadas nas quais cai repetidamente. O mundo foge sob seus pés e o perigo pode surgir de qualquer ponto do quadro, bem como a salvação.
Corre homem, corre foi frequentemente apresentado pelo seu autor como o seu filme mais político, quando na realidade é o mais descontraído dos seus westerns enquanto os dois precedentes possuem uma construção dialética mais evidente. Talvez seja porque para Sollima este filme exprima algo mais profundo quanto à sua concepção pessoal das coisas, liberada desta vez de uma retórica um pouco artificial. Cuchillo desta vez está sozinho em cena. Milian se apropria do fato cantando, a bem-dizer recitando, a canção que abre o filme sobre os desenhos naïfs que ilustram os desastres da guerra revolucionária. Bem-vindo ao seu universo. O contraponto ocidental interpretado por O’Brien é menos marcante, ainda mais porque o ator não tem a força de Van Cleef ou de Volontè. A caça ao tesouro é um pretexto lúdico realçado pela fuga rica em recursos cômicos do herói ante a sua noiva. A personagem de Cuchillo, com um Tomas Milian muito confortável em suas alpercatas de palha, está no centro da confusão geral, caçado por dois agentes franceses, pelo profissional americano Cassidy, pela gangue de bandidos liderados por Reza, pela sua noiva, que quer tirá-lo do mau caminho, pelos revolucionários de Santillana que confiam muito pouco na sua honestidade, pelo exército mexicano e pelos bons cidadãos americanos. Ele é constantemente fustigado de uma ocasião a outra (o roubo do relógio, o encontro com Ramirez, que lhe dá o segredo do tesouro, e mais tarde com a bela Penny Bannington, membra do exército da salvação e que será uma preciosa aliada até certo ponto), de um suplício a outro (atirado na prisão, torturado sobre as hélices de um moinho pelos agentes franceses, arrastado no deserto e depois suspenso por Cassidy, suspenso novamente pelo exército com uma banana de dinamite na boca), de um campo a outro, de uma fronteira a outra.
Castigado dessa forma pelos eventos, vítima de um destino cruel no qual se obstina com prazer, Cuchillo deve sua sobrevivência à sua destreza, sua coragem e sua inteligência instintiva, com uma boa dose de humor. Sozinho no mundo, como diz a expressão popular, com “o seu pau e a sua faca”, ele resiste e permanece si mesmo. Talvez seja essa a verdadeira dimensão política desejada por Sergio Sollima, neste anarquismo visceral, tudo menos intelectualizado, que exalta um homem no seu estado natural. Cuchillo, apesar de suas pequenas covardias, suas pequenas mentiras, suas pequenas malícias, permanece um modelo de integridade muito pessoal. E é unicamente pelos seus atos que influenciará a atitude de Cassidy a seu respeito, como em outras ocasiões as de Siringo e de Corbett. Consequentemente, Sollima propõe através da sua personagem um modelo que tem suas raízes nas lutas revolucionárias, de Garibaldi aos anarquistas espanhóis, passando pelos comunas, e que entra em ressonância com os movimentos desse fim dos anos 1960. Um modelo que não é obsoleto, porque nele sopra o perfume da Aventura e o necessário de derrisão para lhe conservar toda sua humanidade.
Corre homem, corre abre com a chegada de Cuchillo a cavalo, seguido por uma panorâmica mesurada, como se estivesse chegando do filme precedente. Termina duas horas mais tarde, com um travelling a toda velocidade sobre os timbres líricos da música de Ennio Morricone, apanhando Cuchillo em plena fuga, valente ainda assim, ainda a cavalo, desta vez a todo galope, com Cassidy do seu lado e os soldados nos seus encalços. O homem bifurca repentinamente e grita: “Cuchillo se ne va!” Cuchillo segue rumo a novas aventuras, rumo ao início do filme que se torna uma grande elipse sem fim, com obstáculos sempre renovados, como em um desenho animado de Chuck Jones. A corrida, o movimento, a fuga em marcha como essência da existência, como verdade da condição humana. Então, corra, homem, corra!
(Traduzido por Bruno Andrade) |
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